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Saddam e Sofie

 

A única coisa boa que podia acontecer na Guerra do Iraque aconteceu: a prisão de Saddam. Ele foi um ditador cruel, uma sanguinária presença, invadiu o Irã e o Kuwait, usou armas químicas contra os curdos e provocou um terror internacional ameaçando com armas de destruição em massa, que não tinha. Esse blefe foi argumento para a invasão do seu país. Assassinou adversários e fez expurgos entre seus próprios adeptos, com a liquidação até mesmo de membros de sua família, como os genros. Deve ser julgado pelos crimes que cometeu, para exemplo de todos os tiranos. Na minha cabeça não passa a pena de morte, pois contra ela sou contra.


Esse conflito teve aspectos de toda ordem, dos mais cruéis, como Saddam, até à linguagem usada para suas batalhas. Veja-se o nome que deram à operação da captura do ex-ditador iraquiano: Alvorada Vermelha. Por que não dizer Prender Saddam? Não necessitaria de interpretações. Outras denominações são entre ridículas e sádicas: Causa Justa (invadir o Panamá), Restaurar Esperanças (Somália), Justiça Infinita, mudada em Liberdade Duradoura (no Afeganistão), Tempestade no Deserto (Guerra do Golfo). Nesse terreno consideram Choque e Pasmo o maior sucesso do que chamam de sloganeering! A engenharia do slogan. O marketing da guerra.


Mas nome é sempre uma coisa complicada. Está na cabeça das pessoas. A primeira vez que seriamente deparei-me com isso foi na fazenda do meu pai, com um vaqueiro de quem ele muito gostava, que tinha o nome de Ludgéro. Um dia, ele começou a explicar como o tratavam: ''Uns me chamam Lúdgero, outros Ledgéro, outros Ledegéro, mas meu nome mesmo é Lodegero!''


Uma filha de uma amiga nossa era Raimunda. Vivia triste, como se carregasse uma sina. Todo aquele banzo era o nome. Não aceitava ser Raimunda. Quiseram chamar-lhe de Mundica, Dica, Diquinha e ela foi ficando cada vez mais revoltada. Quando chegou a puberdade, houve uma crise. Ameaçava matar-se: ''Já sou mulher, quero ter nome.'' Sua mãe disse-lhe para escolher outro, e ela o fez: Sofie Marie Flor da Conceição. Como Sofie ficou feliz, casou e só nós, os mais velhos, lembramos que era Diquinha.


Na política é pior. Programa carimbado como de um governo não tem sobrevivência em outro. O Programa do Leite sobreviveu porque era do leite e leite é leite. Já a tal Lei Sarney não durou seis meses. Durante 20 anos trabalhei por incentivos à cultura. Os generosos artistas brasileiros, sem que estivesse na lei, deram-lhe o nome de Lei Sarney. O presidente que chegou não fez outra. Colocou logo o nome de Lei Rouanet, que foi excelente ministro da Cultura e é meu amigo. Acredito que a causa da campanha contra a ferrovia Norte-Sul foi o nome. Se tivesse sido Sul-Norte, ou São Paulo-Belém, tudo seria diferente.


Em 1894, Machado de Assis avançava no estudo das mudanças de nome, maneira de dar ''sola nova e tacão direito''. É o que vão fazer com o Calha Norte, que cresceu, viveu, morreu e ressuscitou. Projeto para ocupar as fronteiras vazias da própria calha norte do Amazonas e assistir suas populações pobres.


Como a Raimunda que se tornou Sofie, vai ser Projeto Fronteira, e, assim, terá mais vida. Bom que seja assim. Os nomes podem ir, mas que fiquem as idéias. Como Sofie que continuou vivendo e feliz.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 19/12/2003

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em, 19/12/2003