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O peru do Carnaval ou do Natal?

 

O ex-presidente Fernando Henrique é um homem educado, amável, cordato, esperto, malicioso, simpático e sedutor. Nunca se revela a um adversário, e não sei se algumas vezes a algum amigo. Não o vejo com ares de confissões e de ter confidentes nem dado a confessor. O que o teria levado a entrar em metáfora dos bichos sem chegar à fábula, gênero que tem sempre uma conclusão moral? Disse ele, num rasgo que não é do seu cotidiano, que o governo era um "peru bêbado no Carnaval". A reação foi desproporcional à boutade. Afinal, um peru bêbado no Carnaval está no espírito da coisa, para brincar e divertir-se. Depois veio a correção: "Não é no Carnaval, é no Natal".


A emenda é que prejudica o soneto. Peru bêbado no Natal não é para divertir-se, mas para preparar-se para morrer, girando num círculo imaginário em que se diz que "melhora sua carne para a ceia". Ora, governo "peru de Natal" é destinado à faca, vai morrer e termina na barriga. No Maranhão, vai mais longe: as suas ossadas são, no dia seguinte, aproveitadas num ensopado com repolho e vinagreira que se chama Garibaldi, é gostoso danado e combina com a ressaca.


Não acredito que o nosso estimado ex-presidente esteja, com a metáfora do peru, querendo dizer que o governo vá terminar na faca e no bucho. Acredito mais no Carnaval, censura aceitável de oposicionista ao governo, misturando a pândega momesca como corrupção de costumes, enquanto o outro peru, o do Natal, seria a corrupção em bloco de agentes administrativos.


Aliás, a interpretação carnavalesca das palavras do ex-presidente FHC está mais dentro do contexto, pois, no país, só se fala em corrupção, palavra que o meu saudoso Osório Borba, sempre lembrado, dizia ser a mais feia da língua portuguesa, porque, pronunciada monossilabicamente, levava a coisa feia.


A pesquisa de 2004 sobre esse tema na América Latina, do BID e do Bird, diz que, no Brasil, 34% das pessoas crêem que a corrupção não vá acabar nunca, e 52% acreditam que os policiais são subornáveis, 36%, os juízes, e 39%, alguém nos ministérios.


A corrupção está inserida nas idéias políticas do mundo ocidental: é a decisiva lança que se usa contra um adversário para desqualificá-lo. Adriano Moreira diz que o primeiro discurso que existe sobre democracia é o de Péricles aos mortos na Guerra do Peloponeso, há 24 séculos. Ali já defendia Fídias da acusação do roubo do ouro da estátua de Atenas.


O deputado Roberto Jefferson entrou na onda dos exemplos animais e disse que o PT é o escorpião e o PTB é o sapo sendo picado na travessia do rio. O senador Vitorino Freire -que foi meu adversário no Maranhão-, na véspera de uma eleição, disse de sua luta: "Meu candidato é um chapéu de aparar égua, aparando a correria das éguas da oposição". Se continuarmos assim nesses exemplos, vamos dizer que o PMDB está como "bode na chuva", berrando ensopado.


Mas a verdade é que o panorama político está como "burro doido", como se diz no Nordeste, pulando para todo lado.


Não sei a hora em que se vai surgir "raposa em galinheiro".


Mas há uma parcela otimista em tudo isso. Na pesquisa referida só 17% dos brasileiros acredita que a corrupção pode acabar à em 20 anos (!) desde que haja um esforço de clero, nobreza e povoà


Mas há exageros. Muitas vezes, ela existe e a percepção é menor que ela, e outras, ela é maior do que aparece, coisa de peru no Carnaval ou no Natal.


 


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 27/05/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 27/05/2005