A minissérie na televisão sobre o presidente Juscelino Kubitschek desperta curiosidade sobre sua figura humana e sua participação na história do Brasil. A linguagem do cinema e da TV é uma leitura diferente. A realidade é uma outra ficção.
Sou um dos poucos políticos que viveram no Congresso Nacional aqueles tempos e tenho autoridade maior para falar sobre ele, porque fui seu adversário, vice-líder da oposição ao seu governo, a famosa "banda de música" comandada por Carlos Lacerda.
Não tive nenhum contato com o presidente durante seu governo. Ao contrário, fui duro nas críticas, hoje por mim consideradas injustas. Mas juntei-me a um pequeno grupo de deputados - Ferro Costa, Seixas Dória, Haroldo Carvalho, Edílson Távora e outros - para divergir da UDN clássica e fixar o combate a Juscelino no seu abandono da parte social. Lançamos, de maneira pioneira no país, o tema do "Desenvolvimento sim, mas com justiça social". Era o tempo da bossa nova na música, e Carlos Castello Branco, o grande jornalista, foi no embalo da marca e apelidou aquele grupo de "UDN Bossa Nova"; Murilo Melo Filho chamava-a "UDN de Macacão". Foi em grande parte com esse enfoque que Jânio Quadros montou o seu discurso de campanha.
Fiquei amigo do presidente Juscelino depois que deixou o governo e mais ainda quando foi perseguido. Ele mesmo dizia ser eu o seu amigo "do ostracismo". Nossa aproximação aconteceu por tê-lo recebido no Maranhão, na véspera do AI-5. Ele foi preso e foi aberta uma sindicância contra mim por tê-lo recebido e homenageado sendo ele cassado e inimigo do regime.
A grande marca do Juscelino foi ter mudado a mentalidade do país. Até sua presidência, o país não tinha visão de planejamento e caracterizava-se pela cultura do famoso "abismo", condenado a nada dar certo, à luta de facções. Juscelino foi o ponta-pé da modernidade.
Por outro lado, sobressai sua competência em lidar com a democracia. Ele assumira condenado a ser deposto. Os perdedores do golpe de 55 estavam com as feridas abertas. O Exército, dividido com a perseguição aos oficiais envolvidos na República do Galeão e no Onze de Novembro. Daí as revoltas de Aragarças e Jacareacanga. Juscelino as enfrentou com a anistia, com o lenço branco da conciliação. Soube dividir a então monolítica e raivosa oposição. Criou condições de estabilidade. Juntou os melhores cérebros na economia, pôde realizar um programa de metas modernizadoras da estrutura do país e partiu para a construção de Brasília, saindo do Rio, como dom João 6º saíra de Lisboa.
Tudo isso não evitou que, naqueles anos, provasse o desgosto da impopularidade e das calúnias pessoais.
Lidou com os partidos com o estilo de encantá-los em vez de aliciá-los.
Era uma figura humana encantadora. Era um homem bom. Não tinha nem despertava ódios. Nossos presidentes de temperamento forte deram-se mal: Deodoro, Floriano, Arthur Bernardes, Jânio, Collor.
E, para mitificar sua imagem, teve a morte trágica, que tanto comoveu o país.
Ele mesmo disse em suas memórias que o melhor que fez foi preservar a democracia, não deixar que o país se partisse. Graças a ele, o Movimento de 64 foi adiado por dez anos. E só veio porque Jânio e Jango não eram Juscelino. Mas essa é outra história.
Folha de São Paulo (São Paulo) 6/1/2006