Quando, em 1985, encontrei-me com o presidente Reagan, durante visita oficial a Washington, depois de discutirmos problemas bilaterais, disse-lhe que não desejaria encerrar nosso encontro sem falar um pouco sobre a Bolívia. Era um país sofrido, cujas riquezas se exauriam e, no seu balanço de recursos naturais e estabilidade, poderia tornar-se problemático. A Bolívia necessita de uma atenção sem retórica, rigorosamente especial por parte da comunidade internacional. Suas cicatrizes históricas e algumas revoltantes injustiças criaram um caldo de cultura e justificados ressentimentos. Acrescentei -naquela época em que as guerrilhas estavam em moda- que a desestabilização da Bolívia teria repercussões em toda a América do Sul. Certamente pensando na geopolítica foi que Che Guevara escolhera aquele país para testar seu heróico misticismo revolucionário.
Não senti que as minhas palavras motivassem Reagan. Acrescentei que o Brasil estava disposto a assumir responsabilidades nesse projeto. Fui à Bolívia e firmei com Paz Estenssoro - um notável patriota - acordos na direção de um tratamento especial. Depois, no dia da posse de Paz Zamora, realizamos, na Embaixada do Brasil, um encontro histórico, cujo relato fez parte de seu discurso, entre ele e o presidente do Paraguai, General Rodríguez, e daquele encontro nasceu a solução do problema secular da livre navegação para acesso à bacia do Prata.
A "saída para o mar" da Bolívia, perdida na Guerra do Pacífico (1879-1883), tem que ser uma causa comum latino-americana, de modo que se possa saldar essa hipoteca do passado numa grande negociação.
A verdade é que o martírio da Bolívia continua. Mais de 150 golpes marcam sua violenta história, com uma sociedade dividida por etnias, renda, pobreza e costumes.
Bem antes de ser criado o país com a evocação de Bolívar, pelo general Sucre, já a violência reinava naquelas altas planuras. Para marcar o fim das guerras dos vice-reis do Peru, Alonso de Mendoza foi mandado a fundar uma cidade no Alto Peru em 1548. La Paz foi o nome escolhido. O brasão da cidade, dado por Carlos 5º de Espanha, era circundado com a seguinte frase: "Os contendores em concórdia, em paz e amor se juntaram e a cidade de La Paz fundaram para perpétua memória". Foi o que nunca tiveram ao longo de cinco séculos. O Palácio Queimado, sede do governo, onde em pouco tempo tomará posse Evo Morales, é a própria síntese da história boliviana: palco de violências, assassinatos, fuzilamentos, incêndios, que lembram nomes ferrados pela brutalidade e tirania, como o de Mariano Melgarejo.
Evo Morales, assim, vem numa onda de esperança, parte da ascensão dos líderes de esquerda na América Latina. Ele poderá sofrer a sedução de muitos "demônios-ismos" que, se não exorcizados, levam ao inferno: o populismo, o nativismo, o demagogismo e o narcisismo. Que não lhes ergam estátuas.
E que o protejam os "anjos arcabuzeiros", aqueles belos e eternos quadros, o sublime da arte boliviana, a única coisa duradoura que deixaram os saqueadores das montanhas de prata de Potosí.
E, finalmente, um conselho prudente ao presidente Morales: (que não me ouça o Saramago) use o paletó. Não chego ao exagero de pedir um jaquetão...
Folha de São Paulo (São Paulo) 13/1/2006