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Tentação secular

 

O historiador aponta os riscos do projeto de Brasil potência e diz que o país está mais longe dos ideais republicanos do que durante o Império

Ronaldo Soares

O historiador José Murilo de Carvalho, de 68 anos, é um dos mais sagazes intérpretes do Brasil desde o Império. No governo Lula, Carvalho identifica um mal secular, que ele chama de "síndrome de grande potência". O que é isso? É o ideal ressuscitado de grande império, cultivado no Brasil a partir da chegada da família real portuguesa, em 1808, e retomado mais tarde pelos governos militares. No atual governo, ele se manifesta no envio de tropas ao exterior, na pretensão de ter assento no Conselho de Segurança da ONU, nas práticas neoterceiro-mundistas do Itamaraty. Doutor em ciência política pela Universidade Stanford (EUA) e professor titular do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carvalho é autor de uma magistral biografia de dom Pedro II, lançada neste ano. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), esse mineiro de Andrelândia recebeu VEJA para uma entrevista no recinto preferido da ABL: a biblioteca de 22.000 volumes, onde há preciosidades como a primeira edição de Os Lusíadas, de 1572, e um raríssimo exemplar das Rhythmas, também de Camões, datado de 1595.

Veja – Que herança o Brasil deve à transferência da família real portuguesa para o país, em 1808?

Carvalho – A vinda da família real foi, sem dúvida, uma condição necessária para a existência do Brasil. Se dom João tivesse optado por ficar em Portugal, nosso país não existiria tal como é hoje. Aconteceria aqui o que houve na colônia espanhola da América, uma divisão em países, provavelmente uns cinco. O Brasil oscilou entre a fragmentação e a unidade até 1850. Mas não se fragmentou porque, com a transferência da coroa, se estabeleceu no Rio de Janeiro um centro de legitimidade política sobre as subdivisões da colônia. A atuação da corte no Rio foi fundamental para manter nossa unidade, inclusive com o uso da força contra movimentos separatistas. Viabilizou-se o projeto de grande império, que reforçou essa unidade. Entre os pontos negativos há o fato de que a corte portuguesa era uma das mais atrasadas da Europa. Não fez a reforma religiosa do catolicismo, nem a revolução econômica do capitalismo, nem a revolução científica. Outro ponto frágil foi a educação popular, que era um desastre na colônia e continuou desastrosa durante o Império e nos 100 anos de República.

Veja – Esse ideal de grande potência foi retomado em outros momentos da história brasileira.

Carvalho – Esse é um ideal recorrente. Foi retomado pelos governos militares e, ironicamente, está em voga novamente. São versões distintas do mesmo sonho (ou do mesmo complexo) de grandeza. Elas têm como base, naturalmente, o tamanho e as riquezas do país, motivos de orgulho nacional até hoje. No início do século XIX havia o sonho de fazer um império no modelo dos que existiam, sobretudo o da Grã-Bretanha. Nos governos militares esse ideal ressurgiu, mas num conceito de grande potência, a ser construída com a força econômica e militar, a vigilância implacável sobre o inimigo externo e a manutenção incondicional da soberania. O sonho foi retomado pelo atual governo e se manifesta, entre outras coisas, pelo envio de tropas ao exterior, pela pretensão de admissão no Conselho de Segurança da ONU, pelo empenho em exercer um papel de liderança na América Latina. Ainda é um ideal um tanto envergonhado, sem que haja uma clara estratégia de ação. Mas é possível identificar essas manifestações em setores do Itamaraty que praticam o neoterceiro-mundismo. Veja o caso do Centro de Estudos Brasileiros, em Oxford. De uma hora para outra, ninguém mais queria ajudá-lo. Há uma oposição explícita no Itamaraty e em outros setores do governo contra ele. Não que o governo tivesse de mantê-lo, mas era de esperar que se mostrasse interessado em ajudar. Era fácil, é pouco dinheiro. Não só não houve apoio, mas em certos setores houve uma objeção clara. Isso é fruto dessa política de se voltar mais para a América Latina, para a África, e não para os grandes centros. Acho lamentável, uma estratégia míope. Uma coisa não precisa excluir a outra.

Veja – Quais são os riscos embutidos nesse projeto de grande país?

Carvalho – É quase impossível um país como o Brasil não exercer um papel de liderança regional, pelo menos em relação a nações menores e de médio porte. A idéia é tentadora, exatamente pelo tamanho do país e seus recursos. O risco é que acabemos por desviar a atenção dos problemas internos em busca do sonho de grandeza externa. Hoje, não há liderança externa sem que a casa esteja arrumada. Não só na economia, mas principalmente no bem-estar da população. Nos Estados Unidos, falava-se em Destino Manifesto, e eles construíram um império. Nós sempre falhamos.

Veja – As tentações autoritárias que rondam setores do partido no governo decorrem desse ideal ressuscitado de grande potência?

Carvalho – A relação entre essa tentação e o sonho de grandeza atual não está clara. Os nacionalismos, que freqüentemente estão associados aos ideais de grande potência, sempre foram fortes aliados de autoritarismos, quando não seu instrumento. Lembremo-nos do Estado Novo. Mas no atual governo não está nítida a relação entre as duas coisas. As tentações autoritárias de natureza ideológica talvez venham mais de setores do PT do que do presidente. A motivação de Lula parece mais de natureza política. Diante do grande apoio popular que ele conquistou, imune a todas as denúncias surgidas de 2005 para cá, deve ser grande a tentação do autoritarismo populista diante dos obstáculos criados pela oposição. Um sinal que poderia apontar nessa direção é a aproximação com Hugo Chávez. Lula certamente está observando com atenção o comportamento de Chávez, que combina populismo, petróleo e uma política externa agressiva com claras pretensões de liderança na América do Sul. Se há de fato alguma intenção brasileira de exercer a liderança nesta parte do mundo, em algum momento haverá uma trombada com Chávez.

Veja – O senhor vê em Lula alguma inclinação a arroubos autoritários como os de Chávez?

Carvalho – Há uma armadilha aí. Os escândalos políticos não colaram no presidente porque ele é um distribuidor de benefícios. No atual mandato, a instituição que mais se desmoralizou foi o Congresso. Se você tem uma economia melhorando, um presidente com apoio popular e um Congresso desmoralizado, qual o resultado? A América Latina está nos mostrando o risco. Isso tem a ver com a discussão sobre o terceiro mandato. Um plebiscito como Chávez fez, para saber se a população quer ou não mais um mandato para Lula, pode acontecer aqui. Vai depender de quais são, do outro lado, os fatores de contenção. Creio que temos uma maturidade democrática bem mais sólida do que a Venezuela. Mas a minha impressão é que o presidente vai jogar com essa dúvida até bem próximo da eleição. Politicamente, é interessante para ele, para desorganizar a oposição, deixar no ar se vai se candidatar ou não.

Veja – Por que o Brasil ainda patina no atraso, muito atrás de países tão jovens como nós, caso dos Estados Unidos?

Carvalho – Porque somos um país sem revolução, sem rupturas. Não houve ruptura na Independência, e as guerras civis que aconteceram depois foram regionais. A proclamação da República foi menos agitada ainda do que a Independência. Outro exemplo: a escravidão. O próprio imperador era contra, mas aquilo foi se arrastando, se arrastando, até sermos o último país a promover a abolição. Foi tudo feito de forma tranqüila, com flores. Com essa falta de rupturas internas, a gente perde tempo e vai se atrasando nas reformas que precisam ser feitas. Se por um lado fomos poupados da violência de guerras civis, por outro as coisas caminharam com muita lentidão aqui. São raros os momentos em que houve algo parecido com um processo de ruptura.

Veja – Qual é o principal exemplo?

Carvalho – A Revolução de 1930. O Brasil moderno começou ali. Até então, o governo central estava praticamente desarmado, não tinha condições nem de pensar em adotar políticas públicas no país. A proclamação da República significou um fortalecimento do federalismo e a conseqüente perda de relevância do governo central na vida nacional. Mas a partir de 1930 o país começou a se mexer. Houve uma retomada da centralização imperial, não mais com um imperador, mas com um político muito hábil à frente do poder. Iniciou-se uma política de industrialização para o país, já no segundo mandato de Getúlio Vargas. A legislação social entrou com muita força. Adotou-se uma política econômica de substituição de importações. Ou seja, passou a haver um governo central com diretrizes nacionais.

Veja – Lula gosta de se comparar a Getúlio. A comparação faz sentido?

Carvalho – O que Lula fez foi uma guinada getulista. Ele manteve a política econômica de Fernando Henrique Cardoso e expandiu extraordinariamente a política social que seu antecessor havia iniciado. Isso mudou seu eleitorado na segunda eleição e passou a marcá-lo como líder popular, que muitos chamam de líder populista. Getúlio promoveu a inclusão social, introduziu a legislação trabalhista, a CLT, o que foi um marco extraordinário. A diferença entre ele e Lula é que a legislação de Vargas era para os operários sindicalizados do setor formal. Hoje, o setor formal da economia corresponde a 40%. As políticas de Lula se destinam aos 60% que constituem o setor informal da economia. O povão está sendo atendido. Essa foi a base do apoio de Lula em sua reeleição.

Veja – Na comparação com Fernando Henrique, quem se sai melhor?

Carvalho – Lula teve uma sorte enorme. O segundo mandato de Fernando Henrique foi um desastre, e contribuíram muito para isso os fatores externos, como as crises financeiras internacionais, que jogaram os juros lá para cima e desvalorizaram o real. Já o governo Lula pegou um período sem turbulências, com o aquecimento da economia mundial. O que não havia no primeiro mandato de Lula era desenvolvimento econômico. Mas as condições dadas pela manutenção da política de Fernando Henrique começaram a dar resultados agora, porque as taxas de crescimento econômico estão começando a subir.

Veja – Lula ainda teve a sorte da descoberta do campo de petróleo de Tupi...

Carvalho – O campo de Tupi caiu do céu para o sonho de grandeza. É uma boa notícia, mas também representa um alto risco, pois o petróleo pode ser uma maldição. Se as reservas forem do tamanho previsto e puderem de fato ser exploradas, haverá uma tentação muito grande: a de usar os recursos para fins paternalistas dentro do Brasil e projetos aventureiros fora do país, como faz Chávez. Temo pelo afogamento da República num mar de petróleo quando penso nas conseqüências internas: uma política populista-distributivista, um consumismo generalizado, um país transformado num imenso INSS, a antítese do ativismo cívico. Será necessária muita maturidade para o país não se lambuzar no ouro negro, para que ele resista ao "distributivismo" interno e ao "aventureirismo" externo.

Veja – Que conselhos o senhor daria ao político que quiser desbancar o candidato de Lula em 2010?

Carvalho – Assim como Lula teve de adotar o compromisso com a estabilidade econômica para se eleger pela primeira vez, quem quiser derrotá-lo terá de convencer o povo de que não vai mexer nas políticas sociais. Esse candidato vai ter de dialogar com o povão. Se ele se pautar apenas por temas de apelo junto à classe média, à opinião pública, como o combate à corrupção, estará perdido. Opinião pública não elege mais presidente. A reação contra a corrupção é algo muito específico da classe média, de gente que paga imposto e não vê nada sendo retribuído. Do ponto de vista de quem está recebendo o Bolsa Família, a questão da moralidade política vem em segundo lugar. Para quem vive em um mundo de necessidades, moralidade é luxo.

Veja – Hoje existe mais corrupção no Brasil ou há mais controle e mais transparência nos atos públicos?

Carvalho – A corrupção aumentou, sim. Quando os republicanos falavam em corrupção no Império, a referência não era às pessoas, mas ao sistema em si, no sentido de que ele não funcionava. Em 1930 se chamava a República Velha de corrupta, mas também no sentido de que o sistema era corrupto, não as pessoas. A idéia de corrupção individual entrou no Brasil sobretudo contra Getúlio, quando a UDN começou a acusá-lo. Essa reação a Getúlio se estendeu a Juscelino, que foi o primeiro presidente real-mente gastador da história do Brasil. Com os governos militares, o estado cresceu. Quando crescem o estado e os bens disponíveis nas mãos dele, as oportunidades de corrupção aumentam enormemente. E, atualmente, ela é mais extensa e mais sistemática do que em outros tempos.

Veja – O senhor vê alguma saída para esse problema?

Carvalho – O que aconteceu no caso do mensalão mostra que o problema da corrupção perpassa praticamente todos os setores da sociedade, do governo e fora dele. Ocorre então essa sensação quase de fatalismo, de que a gente não tem o que fazer, de que isso é nosso, feijão-com-arroz, coisa brasileira. Quando tomamos a expressão república no sentido preciso da palavra, de coisa pública, como no modelo antigo, romano, de república, percebemos que estava presente a preocupação com o bem público, com a honestidade no trato com o bem público. Paradoxalmente, esses ideais republicanos estiveram muito mais presentes no Império, com dom Pedro II. A nossa República está muito longe disso. Não vejo solução a curto prazo.

Revista Veja (SP) 23/12/2007

02/01/2008 - Atualizada em 02/01/2008