Seria simplificação atribuir à incompetência política do governo o novo adiamento do anúncio do programa social de renda que ampliará o Bolsa Família para abrigar os quase 40 milhões de “invisíveis” que vieram nos assombrar na pandemia.
Tirem-se os que não deveriam receber, os bandidos que receberam na cadeia, os fraudadores. Sobram ainda milhões de “invisíveis”. Esse número assombroso de pessoas que dependem do apoio do governo no momento em que o país parou de girar sua economia é formado na maioria por trabalhadores autônomos informais que entraram em situação de miserabilidade por absoluta falta de trabalho.
São ambulantes, biscateiros, flanelinhas que perderam na pandemia seus clientes habituais, e hoje dependem do governo para a transição econômica, que promete ser mais demorada do que se esperava. Onde achar dinheiro para alimentar esses milhões de bocas?
Não há solução sem que alguma categoria sofra prejuízos, sem que interesses de castas sejam feridos. Não é impressionante que existam cerca de R$ 15 bilhões por ano no pagamento indevido de salários acima do máximo de R$ 39 mil?
Mas para cortar esses supersalários e outras distorções da gestão pública, é preciso encarar desafios que só mesmo um presidente reformista poderia fazer. Mas Bolsonaro não é reformista, apenas finge. Os adiamentos do anúncio das reformas e do Renda Cidadã só refletem essa dificuldade: como arranjar dinheiro para garantir a reeleição sem prejudicar as corporações que o apóiam?
O auxílio emergencial, que o governo queria que fosse de R$ 200 e acabou sendo elevado para R$ 600 pela pressão do Congresso, deveria terminar em dezembro, já reduzido para R$ 300 nesses últimos três meses do ano. Mas a existência desses milhões de “invisíveis” não permite que se interrompa o apoio da renda mínima a esses brasileiros.
A questão é que também não é possível manter-se programa social desse tipo indefinidamente, nem rodar a maquininha para fabricar o dinheiro necessário. Na pandemia, foi necessário, mesmo que a dívida pública chegue a 100% do PIB. Tempos de guerra.
O governo vê-se agora em uma armadilha. O auxílio emergencial aumentou a popularidade do presidente Bolsonaro, tornando-se um instrumento político tão forte quanto o Bolsa-Família foi para o PT, especialmente nas regiões mais pobres do país.
Assim como Lula fez, Bolsonaro está em transição de eleitorado, perdendo apoiadores nas grandes cidades e capitais, especialmente na classe média, e se aproximando do eleitor do norte-nordeste. O programa Renda Cidadã é o que vai lhe garantir a sobrevivência política.
Tendo chegado ao Poder circunstancialmente, passando-se por quem nunca foi, ele já perdeu todas as fichas que o diferenciavam, mesmo enganosamente, dos demais políticos. Já não combate a corrupção, mas se uniu aos políticos mais fisiológicos em ação para salvar-se de um impeachment provável se continuasse na rota de colisão com o Supremo e o Congresso.
Abandonou seus seguidores mais radicais, que não entendem que é preciso mudar para sobreviver. O sonho do golpe de Estado por dentro, acalentado por Bolsonaro até recentemente, foi abortado diante da evidência de que as instituições republicanas funcionam como contrapeso aos ataques extremistas.
Para tentar se reeleger, Bolsonaro teve que retornar ao velho jogo político, assim como Lula fez com o mensalão. Os dois se retroalimentam para sobreviver, e jogam nas regras do jogo pré-estabelecido. Lula, que antes acusava a Justiça brasileira de conluio contra ele, está aguardando que o novo ministro do Supremo indicado por Bolsonaro ocupe o lugar de Celso de Mello e garanta a maioria a favor da parcialidade de Moro.
O presidente Bolsonaro, que se valeu do prestígio de Moro para estabelecer-se como o grande guardião da moralidade pública, agora depende da desmoralização de seu herói para salvar a si e aos seus no mesmo Supremo Tribunal Federal que ameaçou fechar.
O grito de “basta” dado em frente ao Alvorada, como um sinal a seus seguidores de que a guerra seria desencadeada, transformou-se em uma amizade fraternal com ministros que anteriormente eram execrados. Tudo está como sempre foi em Brasília.
Provavelmente em dezembro, depois das eleições municipais, saberemos de onde sairá o dinheiro, se do corte de outros gastos, ou do malabarismo para ultrapassar o obstáculo que é o teto de gastos.