Lendo sobre as mentiras do presidente dos Estados Unidos Donald Trump sobre Covid-19 me veio à mente o livro sobre a mentira como instrumento de política internacional de John Mearsheimer, professor de ciência política e co-diretor do Programa em Política de Segurança Internacional na Universidade de Chicago, publicado no Brasil pela Editora Zahar.
Duas conclusões básicas do livro " Por que os líderes mentem" de Mearsheimer são que líderes de países democráticos mentem mais do que os autocratas, pela simples razão de que os ditadores controlam as informações, e os democratas precisam ganhar o apoio dos cidadãos para tomar decisões; e que líderes políticos e seus representantes diplomáticos dizem a verdade mais do que mentem entre si.
O caso de Trump não se enquadra na primeira, pois ele mentiu não para ganhar o apoio dos cidadãos, mas para transmitir informações falsas na tentativa de dar a impressão de um poder que não tinha. Dizia que os Estados Unidos estavam preparados para combater “o vírus chinês”.
Essa é uma posição costumeira em líderes, que usam contra-informações para espelhar uma imagem de força. Mas fazem isso, geralmente, contra adversários políticos, não contra seus próprios cidadãos. Trump alega que não mentiu, mas omitiu informações para não instalar o pânico na população.
Com essa omissão, certamente não colaborou para que os mortos fossem em número menor do que os quase 200 mil nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, o presidente Bolsonaro cumpriu à risca o roteiro traçado por seu ídolo americano. Saiu sem máscara nas ruas, como Trump, disse que a epidemia no Brasil estava acabando, quando não estávamos nem na metade do caminho, e, como Trump, estimulou a volta à normalidade, culpando os governadores pela quarentena prolongada.
Uma das teses de Mearsheimer é que os governantes mentem menos entre si do que para seus cidadãos, o que estaria revelado nas correspondências oficiais liberadas e até mesmo nos documentos do Wikileaks. Se nesse caso tiver se repetido o comportamento majoritário entre líderes, ficará a dúvida sobre se Trump compartilhou com Bolsonaro suas informações, ou simplesmente enganou nosso presidente, que seguiu seus passos sem se dar conta de que a conversa de Trump não refletia a realidade.
Fora essa intriga lateral, o importante é que, ao mentir ou omitir dados, o líder está tirando dos cidadãos o direito de saber o que fazem e pensam seus governantes. No prefácio que escrevi à edição brasileira ressalto que o livro de John Mearsheimer se debruça sobre “mentiras estratégicas”, que, segundo ele, têm pelo menos “um mínimo de legitimidade”, e analiso a postura de vários filósofos ao longo do tempo sobre a mentira.
Em sua obra ‘A República’, Platão afirma que os governantes têm o direito de não dizer a verdade para os cidadãos, e até mesmo de mentir. "Se compete a alguém mentir, é aos líderes da cidade, no interesse da própria cidade, em virtude dos inimigos ou dos cidadãos", escreveu o filósofo grego.
O pensador francês Benjamin Constant teve um debate famoso sobre o tema com o alemão Immanuel Kant sobre um suposto "direito de mentir". Constant defendeu o uso da mentira em situações "filantrópicas". Para Kant, a mentira era “a maior violação do dever do ser humano para consigo mesmo”.
Há exemplos históricos que ilustram bem as “mentiras estratégicas” a que se refere Mersheimer. Em 1967, o premier da Inglaterra era Harold Wilson, e o Lord Chancellor of the Exchequer (ministro das finanças) James Callaghan. O grande assunto era a possível desvalorização da libra. Os dois afirmavam que não desvalorizariam, em entrevistas e em depoimentos no Parlamento, até que num sábado de noite, dia 18 de novembro, desvalorizaram a moeda em 14%.
Callaghan, o ministro das finanças, teve de renunciar imediatamente. Tempos depois, também o primeiro-ministro Wilson foi derrotado e caiu. Com relação à mentira, há os absolutistas que, como Kant, não aceitam meio termo, e os utilitaristas, que vêm vantagens na prática por razões de Estado.
O perigo, adverte Mearsheimer, além de o tiro poder sair pela culatra, é o que chama de "ricochete". Lideres que mentem para seus cidadãos pelo que acreditam ser boas razões estratégicas podem produzir danos significativos a seu corpo político, fomentando uma cultura de desonestidade.