Quem deveria estar processando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes por tê-lo acusado de genocídio era o presidente Jair Bolsonaro, não as Forças Armadas. Quando disse que o Exército se associou ao genocídio, em crítica à maneira como o governo vem tratamento da pandemia do Covid-19, o ministro alega que estava justamente alertando que os malefícios das decisões governamentais cairiam inevitavelmente na conta dos militares, pois estamos, há meses, na maior crise sanitária já registrada no século, sem ministro da Saúde.
A pasta está sendo comandada por um General de Brigada da ativa, Eduardo Pazuello, e é inegável que os erros cometidos atingem a imagem do Exército. O debate sobre genocídio tem cunho político, apesar de existirem queixas em tribunal internacional acusando o presidente Bolsonaro de genocídio contra os povos indígenas muito antes da pandemia, pela política de fim da demarcação das reservas e permissão para garimpo em terras indígenas.
Com a Covid-19, justamente devido à falta de proteção durante a pandemia, essas acusações foram reforçadas. Há também acusações de crimes contra a humanidade devido às políticas de combate à Covid-19 contrárias às orientações da Organização Mundial de Saúde. O próprio ministro Gilmar Mendes já teve conversas pessoais com o presidente Bolsonaro advertindo-o de que a política de meio ambiente coloca o Brasil em posição fragilizada na Europa, e alcança ainda a política indigenista brasileira, que é classificada por ONGs e organismos internacionais de genocida.
Em uma dessas conversas, Gilmar Mendes chegou a lembrar que o caminho está aberto para uma denúncia no Tribunal Penal Internacional, em Haia. O ministro Gilmar Mendes preocupa-se com a imagem do Brasil na Europa, onde se encontra no momento. “Brasil se tornou tóxico”, lamenta.
Sua crítica ecoou um sentimento que existe nas Forças Armadas, de que militares da ativa não deveriam ocupar postos civis, e por isso o General Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, anunciou que foi para a reserva este mês.
A crítica do ministro tem o mesmo sentido das que advertiam os militares palacianos de que não deveriam avalizar as manifestações antidemocráticas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo. Sobrevoar as manifestações de helicóptero junto ao presidente Bolsonaro, como fez o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, passa a ideia errônea de que estava ali apoiando uma manifestação política, o que não poderia fazer.
Na live em que fez essa crítica que levou as Forças Armadas a uma representação junto à Procuradoria-Geral da República, o ministro Gilmar Mendes ouviu o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta fazer duras acusações ao desmonte do ministério da Saúde, citando que já estão alocados lá mais de 20 militares, que substituíram os quadros técnicos que estavam à frente das ações contra a pandemia.
Os ministros militares e o da Defesa tiveram a anuência do presidente Bolsonaro para fazer a representação contra o ministro do STF, e esta crise representa mais um passo na confrontação do governo Bolsonaro com o Judiciário.
O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, já provocara a irritação dos militares, e do próprio Bolsonaro, ao comparar o período que vivemos no governo Bolsonaro, sem citá-lo diretamente, àquele em que Hitler destruiu a ordem democrática da Constituição de Weimar.
Esse confronto teve seu ponto alto quando o STF decidiu que governadores e prefeitos têm autonomia para definir suas políticas contra a Covid-19. Com isso, o presidente Bolsonaro perdeu a capacidade de impor suas idéias de como combater a pandemia, especialmente o uso da cloroquina e seus derivados, e a abertura mais rápida da economia.
A presença de um general da ativa à frente do ministério da Saúde seria, na percepção de Gilmar Mendes, uma maneira de Bolsonaro usar as Forças Armadas como um escudo para suas decisões que se tornaram exemplares de como não agir no momento da maior crise de saúde publica que já tivemos.
O Globo, 14/07/2020