O dia político ontem girou em torno do (ainda?) presidente do Senado Renan Calheiros, assim como terminara a quarta-feira, com a tentativa desesperada do mesmo Calheiros de aprovar a toque de caixa um pedido de urgência para analisar as medidas de combate à corrupção que a Câmara desfigurara na madrugada anterior.
Renan reuniu no Senado o juiz Sérgio Moro e o ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral Gilmar Mendes, para debater o projeto de lei que trata do abuso de autoridade, mesma designação que foi dada à emenda da Câmara que objetiva constranger a atuação da Justiça punindo supostos “abusos de autoridade” de magistrados e procuradores.
A presença de Gilmar a defender a proposta, que originalmente foi concebida por um grupo de trabalho do qual fazia parte, já era inusitada pela coincidência de datas. No mesmo dia, à tarde, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou um processo contra o senador Renan Calheiros que acabou tornando-o réu por crime de peculato, colocando-o em posição moralmente questionável como veremos adiante.
A proximidade de idéias de Gilmar e Renan, que já ficara patente na discussão com o juiz Sérgio Moro sobre as medidas de combate à corrupção, prosseguiu no julgamento do STF, quando Gilmar foi dos três únicos juízes que livraram o presidente do Senado de todos os crimes de que era acusado: peculato, falsidade ideológica e uso de documento falso. Os outros dois foram os ministros Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.
Toffoli, por sinal, revelou com seu voto de ontem as razões profundas de seu pedido extemporâneo de vista de outro processo, aquele que define que políticos na linha de substituição do presidente da República não podem ser réus. Essa decisão já tem maioria em plenário, mas Toffoli pediu vista e, passadas nove sessões, não devolveu o processo, embora o regimento do STF seja expresso quando diz que o processo deve ser devolvido até a segunda sessão ordinária subseqüente.
Como no Supremo já houve casos em que um processo ficou anos sob a guarda de um dos ministros, não há possibilidade de que Toffoli libere o processo que afeta Renan Calheiros antes do recesso do Judiciário, permitindo que ele permaneça na presidência do Senado até o fim de seu mandato, em fevereiro. Às favas as questões morais.
Paralelamente, na Câmara, o deputado Miro Teixeira apresentou um projeto de lei que veda a candidatura a presidente e vice-presidente da República de alguém que seja réu em processos, o que, se aprovado, pode impedir muitas candidaturas, inclusive a de Lula.
As críticas feitas pelos três ministros à investigação da Procuradoria-Geral da República, que levou nada menos que nove anos e não produziu, na visão deles, material consistente para a aceitação da denúncia, foi compartilhada por diversos outros ministros, que no entanto não foram tão rigorosos e viram indícios para que o processo prosseguisse.
A benevolência com que Gilmar Mendes, Toffoli e Lewandowski trataram as acusações contra o senador Renan Calheiros foi um ponto fora da curva no plenário do STF, pois nada menos que 8 dos 11 ministros aceitaram a denúncia por peculato, e vários aceitaram outras denúncias, sem obter porém a maioria.
O senador Renan Calheiros, ao receber pela manhã o juiz Sérgio Moro para debater o projeto de abuso de autoridade, estava tão afoito quanto na véspera e fez questão de alfinetar o juiz, sempre ressalvando que a Operação Lava Jato era “sagrada” e que a atuação de Moro era importante e relevante, “um avanço civilizatório”.
O ambiente estava tão carregado contra Moro, embora com palavras macias, que deu margem a que um ofegante senador petista Lindbergh Farias avançasse o sinal e passasse a acusar Moro da tribuna de “abuso de autoridade” pela condução coercitiva de Lula para depoimento na Polícia Federal e pela liberação das gravações de conversas entre a então presidente Dilma e Lula.
Ao juiz Sérgio Moro restou apenas constatar que para o senador petista, e provavelmente vários outros, a aprovação do projeto de abuso de autoridade era uma oportunidade de criminalizar sua atuação nos julgamentos do Lava Jato. Moro advertiu que esse talvez não seja o melhor momento para tratar dessa nova lei, que pode ser vista como uma tentativa de "tolher a magistratura". E apelou para que seja colocada uma ressalva, de que a interpretação, mesmo que equivocada, da lei, não pode ser considerada crime de abuso de autoridade.
De todas as manobras do dia, ficou clara uma cumplicidade de ideias entre o ministro Gilmar Mendes, secundado pelo ministro Dias Toffolli, e o (ainda?) presidente do Senado Renan Calheiros, que pode render frutos políticos mais adiante nessa novela de nossa crise política.