A vossa eleição, Sr. Roberto Cochrane Simonsen, era tão lógica, que a recepção de hoje se nos afigura estranhamente retardada no tempo, um fato novo que nos parece antigo, tantos são os vossos títulos à dignidade acadêmica.
Coube-me a mim receber-vos e, nesta hora festiva em que vos falo, sinto-me plenamente satisfeito com a nobre incumbência que me conferiu o ilustre Presidente da Academia, o eminente Sr. Cláudio de Sousa, pois terei o ensejo, perante uma assembléia tão ilustre, de algo dizer sobre a personalidade e sobre a obra do novo acadêmico que vem contribuir para aumentar o brilho deste augusto Cenáculo.
A Ciência e a Ficção
Aqui, Sr. Roberto Simonsen, encontrareis em amistosa convivência homens de ciência e homens de letras: sociólogos, historiadores, professores, juristas, poetas, romancistas, teatrólogos ou, melhor, aqueles que mais se distinguiram entre nós, no campo da produção intelectual. A Academia Brasileira de Letras acompanhou passo a passo desde sua fundação o desenvolvimento cultural de nossa época. Não permaneceu, apenas como casa de estetas e de amigos exclusivos da arte e da ficção. Tornou-se indiscutivelmente o maior centro de cultura nacional. Aqui vereis cientistas ao lado de poetas, ou, por outras expressões utilizando as velhas imagens, vereis de mãos dadas a Musa e a Ciência. Aliás, hoje em dia, a ciência e as letras vivem intimamente entrelaçadas, reagindo uma sobre a outra. O cientista moderno, para bem dizer o que pensa e tornar-se claro, compreendido e acessível, é forçado a estar a par do desenvolvimento da técnica literária, da evolução da linguagem e do estilo. Da mesma forma, o poeta, o romancista, o teatrólogo necessitam conhecer as grandes conquistas científicas no terreno da natureza e da história. Já Eça de Queirós asseverava no século passado: “A antiga inspiração, que em quinze noites de febre criava um romance, é hoje um meio de trabalho obsoleto e falso. Infelizmente, já não há musas que insuflem num beijo o segredo da natureza! A nova musa é a ciência experimental dos fenômenos”. Sim. Contemplemos a realidade como ela própria se apresenta. Que seria do poeta e do romancista de nossos dias que desconhecessem as inovações trazidas pelas ciências físicas, biológicas, psicológicas, econômicas, jurídicas, políticas, permanecendo inatingívelmente em sua torre de marfim? Já não estamos na época da inspiração pela inspiração, da arte pela arte. Ao poeta moderno não lhe basta apenas o temperamento artístico nem a convivência com as obras dos grandes mestres; precisa conhecer a sociedade em que vive, auscultar o espírito da época, sentir e compreender, não romanticamente, mas de fato, as aspirações e os anseios do homem contemporâneo, familiarizar-se com as invenções extraordinárias da técnica e assimilar eficientemente as principais descobertas da ciência.
O Poeta e O Homem de Ciência
Certamente que existe – e é interessante registrá-la – uma leve rivalidade entre o poeta e o homem de ciência. O poeta, em geral, zomba do cientista pelo simples motivo de ele ser cientista assim como o cientista ri do poeta apenas por ele ser poeta. É uma rivalidade instintiva, sem razão, sem fundamento, vaga, frívola, sorridente e quase amável. Nela há qualquer cousa de bom-humor, de irônico e de espirituoso. O homem de ciência em face do homem de letras – quantas vezes tivemos oportunidade de assistir a este episódio! – sorri desdenhosamente e diz com superioridade: “É um poeta.” O poeta, por sua vez, ante o cientista consagrado, olha com certa condescendência e exclama ironicamente: “É um sábio.” Entretanto, neste solar, Sr. Roberto Simonsen, o sábio, ao que parece, é mais tolerante para com o poeta e o poeta mais gentil para com o sábio. Esta Academia, ambicionada igualmente pelos poetas e pelos homens de ciência, mostra que eles podem viver em paz, alegremente, e são capazes de se compreenderem e se estimarem.
Ação e Reação
Aliás, vós sabeis tanto quanto nós, a Poesia sempre acompanhou a evolução da Ciência e, muitas vezes, a Ciência se inspirou na Poesia. Depois de Copérnico, nenhum poeta de mérito iria dizer que o Sol gira em torno da Terra. Por outro lado, na obra de Shakespeare, de Goethe, de Rousseau, de Dostoiewsky e de tantos outros, a Ciência encontrou uma fonte inesgotável de preciosos ensinamentos. O Professor Sigmund Freud, de cujas idéias podemos divergir, embora reconhecendo o seu gênio, pois se mostrou profundo conhecedor da alma humana, dizia que em todo poeta há um pouco de cientista e em todo cientista um pouco de poeta. Ele mesmo foi um dos cientistas que mais influência exerceu sobre a Literatura contemporânea, trazendo com suas investigações no domínio do inconsciente uma série de temas novos, ao mesmo tempo que introduzia uma terminologia toda própria, que não tardou em se tornar universal.
Um conceito de Sílvio Romero
Um dos nossos grandes pensadores, que pertenceu a esta Companhia, Sílvio Romero, autor da história mais substanciosa até agora publicada sobre a, Literatura Brasileira, escrevia na introdução de sua obra prima:
Para mim, a expressão Literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e historiadores alemães. Compreende todas as manifestações da inteligência de um povo: Política, Economia, Arte, criações populares, Ciências... e não, como era de costume supor-se no Brasil, somente as intituladas belas-artes, que afinal cifravam-se quase exclusivamente na poesia.
Este é, sem dúvida, senhores acadêmicos, o verdadeiro conceito de Literatura. O conceito que devemos aceitar, se quisermos de fato compreender a evolução cultural do povo brasileiro. A Academia, aliás, interpretou na prática o pensamento do eminente historiador e crítico de nossas Letras e, por isso, hoje nos podemos sentir orgulhosos de terem passado por esta Casa e continuarem a passar tantas personalidades notáveis, vindas dos mais variados ramos da atividade intelectual do Brasil. A Academia Brasileira é igualmente de Machado de Assis e de Oswaldo Cruz, de Rio Branco e de Olavo Bilac, de Rui Barbosa e de Santos Dumont, de Clóvis Beviláqua e de Euclides da Cunha, enfim, de quase todos aqueles que, nestes últimos cinqüenta anos, contribuíram com seu gênio, nas ciências e nas letras, para o esplendor intelectual de nosso povo.
O Novo Acadêmico
As ciências econômicas no Brasil, Sr. Roberto Simonsen, têm em vós, o mais conspícuo de seus representantes. Fostes vós, até agora, quem reuniu os melhores elementos para o estudo sistemático dos verdadeiros alicerces sobre os quais objetivamente se apóia a sociedade brasileira. Historiadores de grande mérito e renome passaram por esta Academia, que tem sabido sempre valorizar a preciosa contribuição de todos eles. Mas creio que, devido à vossa especialidade no terreno das ciências econômicas, concorrestes mais do que ninguém para dar, entre nós, uma base material às ciências históricas e sociais. Fizestes mais, o bastante para que a interpretação da realidade brasileira não ficasse inteiramente sujeita à imaginação arbitrária e caprichosa de um grande número de historiadores e sociólogos que tendem a olvidar a questão econômica, encaminhando-se metafisicamente para o terreno das deduções idealistas. Depois de vossa História Econômica do Brasil, abriu-se uma perspectiva toda nova para quem efetivamente procura conhecer os nossos problemas fundamentais. E de vossa obra capital disse o nosso eminente Confrade Sr. Afonso de Taunay: “Livro absolutamente digno de crédito, em que sobreleva, ainda, à argúcia penetrante do analista ilustrado, cheia de pontos de vista originais.”
Esse livro é o pináculo de vossa bagagem cultural, que representa algumas dezenas de trabalhos, desde a monografia sobre o Município de Santos, publicada em 1911.
Homem de pensamento e ação
É de se notar desde logo que vós, Sr. Roberto Simonsen, sois, ao mesmo tempo, homem de pensamento e de ação. Desde cedo vos dedicastes à vida de negócios e chegastes a ser um dos maiores industriais do País. Tudo que conseguistes foi o produto do vosso esforço, do vosso talento, da vossa persistência, da vossa capacidade individual. Mas a atividade no terreno dos negócios jamais prejudicou o homem de cultura que sempre fostes. Vós sempre tirastes proveito de vossa cultura para vossa ação e de vossa ação para vossa cultura. Agites simultaneamente no campo da vida prática e da vida intelectual. Em ambos mostrastes a força da vossa personalidade, atingindo plenamente os objetivos desejados. Soubestes transpor magnificamente os obstáculos que encontrastes em vosso caminho. E podeis dizer que sois um triunfador, pois em grande parte realizastes os vossos sonhos de industrial e de homem de letras.
Aos quinze anos, entrastes na Escola Politécnica de São Paulo, então dirigida pelo vosso saudoso mestre Paula Sousa, figura de notável significação no magistério paulista, a quem devotais até hoje um sentimento puro e nobre de reconhecimento e admiração. A Engenharia exerceu em vosso espírito um poder magnetizante. Logo no início de vossa vida, compreendestes o que a técnica pode fazer em benefício do Mundo, e vistes claramente o papel que está destinado ao engenheiro nos tempos prodigiosos em que vivemos. Não foi em vão que definistes a engenharia como sendo a “preocupação de servir a humanidade, proporcionando-lhe o máximo de conforto pelo uso inteligente das grandes forças da natureza que ela pesquisa incessantemente”.
Assim, vossa inteligência esteve sempre aberta para a técnica e as realizações de grande vulto.
Já em 1919, em O Trabalho Moderno, lançastes as bases de uma política social de conciliação de classes, preconizando a organização do trabalho, a racionalização da produção e a administração cientifica. Soubestes sempre querer e agir com audácia, já que a audácia é um privilégio das almas empreendedoras. Vistes a necessidade de vos apoiardes na ciência, de cultivar um ideal, mas também de não deixar que este ideal se transformasse muna figura de retórica. A vitória das vitórias é ver que os nossos ideais correspondem exatamente à realidade e que eles tomam corpo com o decorrer dos tempos, adquirindo vida própria. Vós mesmo sentenciastes em certo dia: “Não é bastante criar agindo. É preciso agir criando. E para isso é necessário ter um Ideal.”
Era justa a vossa sentença. Era justa e vós a pusestes em prática. Para que vossa ação pudesse dar frutos proveitosos e não fosse empregada de modo empírico, procurastes conhecer profundamente a economia nacional. E percebestes que, antes de tudo, era mister conhecer as suas origens. Fostes até lá. Mas não vos perdestes na floresta do passado nem ficastes à margem dos acontecimentos atuais. Ao contrário, vós mesmo dissestes: “No terreno econômico não houve problema nacional que não despertasse a minha atenção, e nunca poupei energias para colaborar em sua solução e na formação da consciência de nossas verdadeiras necessidades.”
Assim os vossos estudos só fizeram aumentar a vossa atividade. O valor do conhecimento está na possibilidade de ser aplicado imediata e diretamente. Não ficastes jamais na especulação pela especulação, deixando que o vosso pensamento pairasse abstratamente nas altas regiões das conjeturas transcendentais. Vistes sempre, na ação a própria razão do conhecimento e da vida e, enriquecido pela experiência própria, pudestes ser útil aos vossos patrícios, não sendo poucas as vezes em que vos dispusestes a colaborar ativamente na causa pública, mostrando edificantemente a vossa abnegação patriótica.
As Ciências Econômicas
Pouco a pouco, as ciências econômicas vão conquistando um lugar de relevo excepcional no estudo dos fenômenos históricos e sociais. O historiador e o sociólogo de hoje não podem deixar, em parte, de ser economistas assim como os economistas se vêm obrigados a invadir constantemente o terreno do historiador e do sociólogo.
Estudando, como historiador e sociólogo, a abolição da escravatura nos Ensaios Sociais, Políticos e Econômicos, examinastes, com acerto, o complexo econômico-social da Lei da Redentora. A economia política veio firmar o solo em que as ciências sociais deveriam apoiar-se. Era preciso que se desviassem os olhos das regiões siderais e o homem fosse visto com suas necessidades reais. A descoberta das leis econômicas que regem o processo histórico vieram desfazer o caráter empírico da Sociologia clássica, a fim de lhe dar uma base rigorosamente científica.
Os ortodoxos do materialismo histórico
É nesse ponto que tropeçamos com os ortodoxos do materialismo histórico. Para eles, o fator econômico é o único determinante na história, e sobre ele se ergue toda uma superestrutura política, jurídica, filosófica, religiosa, literária e artística. Para mim, este ponto de vista unilateral deforma a realidade, pois esconde uma face do problema, caindo no erro oposto dos que teimam em negar a importância da economia na história. A razão, porém, nos leva a dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Com efeito, o que se verifica é um processo de ação e reação entre os fatores materiais e os fatores espirituais. Não se pode divorciar o objetivo do subjetivo, pois um atua sobre o outro, formando um só todo. O homem é, igualmente, pó da terra e sopro de Deus. Querer separar do real o ideal para negar este é uma utopia cândida. No desenvolvimento da sociedade humana, a inteligência desempenhou sempre e continua a desempenhar uma grandiosa missão. Se a História faz o homem, o homem faz a História.
A Economia, As Letras e As Artes
Para a compreensão exata, como bem sabeis, Sr. Roberto Simonsen, de qualquer fase do desenvolvimento literário e artístico da humanidade, é preciso buscar os fatores econômicos que atuaram sobre ela. A história da Literatura e da Arte não pode apartar-se da evolução dos fatos econômicos. De outro modo, jamais perceberíamos o papel que os grandes artistas e os grandes poetas desempenharam em sua época. A decadência da instituição da cavalaria, à urbanização da nobreza que abandonou o campo pela cidade, o desenvolvimento do comércio e das riquezas fizeram da Itália, onde tudo isso se processou antes do que em qualquer outro país, o lugar fadado para o renascimento das Letras e das Artes. Se a Itália foi, cronologicamente, a primeira nação capitalista não é de surpreender que fosse ela quem desse também o primeiro grande poeta do mundo moderno. Não é de surpreender que ali, naquela terra magnífica, florescessem tantas inteligências criadoras que ainda hoje assombram o Mundo com o poder de seu gênio. Depois do poeta, era natural que surgisse uma plêiade de pensadores e de vates como Petrarca, Boccacio, Maquiavel, Tasso e Ariosto. A Nação que produziu A Divina Comédia, O Decameron, O Príncipe, Jerusalém Libertada e Orlando Furioso, teria também que produzir A Gioconda, a Flora e o Moisés. Leonardo da Vinci, Ticiano, Michelangelo, Rafael traziam em si toda a potência juvenil de um mundo novo, em plena ascensão econômica, que triunfalmente surgia das ruínas da Idade Média, quebrando os diques da tradição e pondo bem alta a independência e a liberdade da criação artística.
O mundo medieval começava a se decompor. Uma sociedade não sucumbe resignadamente sem defender os seus interesses por todos os meios possíveis. O feudalismo agonizando à medida que no seu seio medrava a burguesia. Foi uma longa gestação que durou vários séculos. Surgiu a Reforma. Desencadearam-se as lutas religiosas. A ciência principiou a se desenvolver independentemente, procurando sobrepor-se às paixões e ao sectarismo das diversas correntes em conflito. Copérnico lançou a base da teoria heliocêntrica. Depois dele, apareceu Giordano Bruno, Kepler, Galileu, aceitando os mais duros sacrifícios por amor da Ciência. Veio então o período das empresas marítimas. A descoberta da América e do Brasil, a circunavegação da África e do Globo criaram novos mercados: o comércio colonial, desenvolvendo os meios de troca e o aumento das mercadorias, possibilidades ilimitadas à indústria e à navegação. A conquista dos mares e a expansão comercial pela colonização dos povos distantes encontraram em Camões o seu poeta, que cantou, em Os Lusíadas, a epopéia acerca dos que ousavam enfrentar, por ambição ou espírito de aventura, a fúria apavorante dos ventos e das ondas.
Aliás, todos os grandes acontecimentos da humanidade tiveram o seu grande poema e o seu grande poeta. Sem a decomposição do feudalismo não se poderia imaginar Lutero nem a Reforma. Sem a Reforma, não teriam existido Shakespeare e Milton. Milton foi essencialmente o poeta do protestantismo. O mesmo já não acontece com Shakespeare, que, embora produto desse movimento, se manteve acima das contendas religiosas, filosóficas e políticas, erguendo-se, solitariamente, até o zênite, onde o seu gênio, numa vertiginosa resplandecência, abarcou todos os aspectos vivos de sua época. Nela viveram Shakespeare e Cervantes. Cervantes, em Dom Quixote, zomba da tendência humana para a aventura e mostra um ceticismo tremendo no tocante às iniciativas audaciosas. Shakespeare, ao contrário, é o poeta da ação, pois nela, segundo o seu pensamento, está o segredo da vida. Mas facilmente se explica o antagonismo que havia entre Shakespeare e Cervantes. A obra de Cervantes coincide com a decadência do império espanhol que, senhor dos mares e do Mundo, começava a perder a sua hegemonia econômica e militar. A obra de Shakespeare reflete toda a potencialidade da Inglaterra, que se prepara decididamente para a conquista do Mundo.
A guerra, o despotismo, a intolerância política, a reação ao progresso exigiam um pouco de bom senso, de equilíbrio e de razão. Mas a razão nem sempre tem razão. E o racionalismo, na França, simbolizado pelos seus grandes poetas e prosadores – Voltaire, Diderot, D’Alembert –, em vez de procurar a solução para os antagonistas sociais por meio de um possível entendimento dos representantes dos três estados, contribuiu para apressar a explosão das forças revolucionárias que haviam minado, sorrateiramente, o subsolo do Feudalismo e da Monarquia absoluta.
O domínio político da burguesia mudou inteiramente o panorama intelectual da Europa o do Mundo. Despontou a época da livre concorrência e do mais desenfreado individualismo que já se vinha desenvolvendo sobretudo nos meios intelectuais, podendo Goethe e Schiller, na Alemanha, servir de exemplo. É então que o Romantismo vitoriosamente se impõe ao mesmo tempo como afirmação da personalidade humana e como protesto contra as novas formas de opressão que já se faziam sentir na sociedade alvorecente. Byron, Hugo, Lamartine, Musset e tantos outros representam a mesma inquietação pessoal que, por vezes, chega a assumir caráter doentio.
Mas a indústria rapidamente se desenvolvia e já se começavam de verificar os milagres da técnica. A burguesia adquirira uma consciência maior de si própria e a classe operária se apresentava com a sua ideologia filosófica e política. A Ciência, em todos os ramos, progredia extraordinariamente. A intuição, o empirismo, a sensibilidade não bastavam para que o poeta pudesse interpretar o mundo em que vivia. Era preciso que, nas letras, se utilizassem os mesmos processos empregados nas ciências naturais, na técnica, na indústria, no comércio. Era mister o domínio da observação, da análise, tomando como base o método experimental. O realismo de Flaubert, de Zola, de Maupassant, de Eça de Queirós não é mais do que o resultado de tudo isso. Por sua vez, os pintores deixaram a sua oficina para trabalhar ao ar livre. Abandonaram os processos convencionais, o academicismo e viram-se obrigados, como disse alguém, “a adotar um colorido desconcertante para o público habituado aos quadros de um museu”, mas sem se proporem outra cousa “senão dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade”. Manet, na pintura, representava um papel revolucionário semelhante ao de Zola no romance e ao de Rodin na escultura.
Em resumo, meus senhores, sem a compreensão do desenvolvimento econômico dos povos não poderemos jamais compreender o seu desenvolvimento cultural. As variadas tendências e correntes que hoje se encontram no domínio da Filosofia e das Letras não são mais, como vós sabeis, do que a conseqüência das tremendas contradições econômicas que agitam a sociedade moderna.
Sílvio Romero e o fator econômico
Na História da Literatura Brasileira, Sílvio Romero valorizou devidamente o fator econômico, dando-lhe uma alta significação no estudo das Letras e das Artes.
Não é hoje uma simples suposição, mas um fato confirmado na História, que o estado de riqueza ou pauperismo de um povo influi diretamente na formação de sua literatura. As nações sem descanso, ocupadas exclusivamente em adquirir o indispensável à vida, não podem ter uma cultura que exija uma classe de indivíduos que estejam resguardados da obrigação punível de conquistar o pão quotidiano. Por isso, a civilização antiga só apareceu em países favorecidos pela natureza, onde a produção da riqueza foi fácil e pronta, e o bem estar pôde reinar nas classes superiores da sociedade. O primo vivere é tão certo para os povos como para os indivíduos; o homem antes de ser um ente histórico é um indivíduo biológico.
Nada tenho a tirar nem a acrescentar às palavras de Sílvio Romero. Coincidem exatamente com os pontos de vista aqui expostos. Sei o que os fatores econômicos representam para a dinâmica intelectual do País, como sabemos também, Sr. Roberto Simonsen, o que fizestes para facilitar entre nós o estudo destes mesmos fatores que vinham sendo mais ou menos subestimados. Com efeito, é relativamente pequena a nossa bibliografia sobre a história econômica no Brasil. Vós fostes, como já disse e não hesito em repetir, um dos que, contemporaneamente, mais concorreram para enriquecê-la.
O Brasil foi colonizado numa época em que o feudalismo estava em plena agonia. Contudo, ele foi introduzido entre nós e tomou um aspecto todo próprio, atípico, de acordo com as condições do ambiente e o espírito da época. Até hoje a nossa economia se caracterizou pela combinação de vários estágios de cultura. Desenvolveu-se e desenvolve-se aos saltos determinados pela própria confusão de diversas etapas que, coexistindo, atuam uma sobre a outra, pois as mais envelhecidas não foram de todo superadas. O Brasil não teve, economicamente, uma evolução harmoniosa e, portanto, não acompanhou o desenvolvimento orgânico do capitalismo industrial. O nosso atraso econômico sempre se refletiu e continua a se refletir em nossas atividades intelectuais e não foi sem razão que Sílvio Romero salientou que “a despeito de nossa riqueza aparente, somos uma nação pobre em sua generalidade”. Partindo daí é que o grande historiador de nossas Letras expõe em poucas palavras o que elas foram durante o período colonial.
Basta abrir a nossa História de quatrocentos anos malbaratados por aqueles que deviam dirigir a Nação e ver que a quatro se podem reduzir os movimentos mais acentuados da Literatura do Brasil: a Escola Baiana do século XVII, que se aureola com o nome de Gregório de Mattos; a Mineira do século XVIII, que se assina com a firma de Gonzaga e Durão; a Fluminense da primeira metade do XIX século, desenvolvida principalmente na corte do Império, sob a inspeção do governo, com fluminenses, como Gonçalves de Magalhães e Macedo; e finalmente sobre estes movimentos isolados de uma ou outra província, o grande abalo nacional, que aí vem marulhoso de todos os cantos, do Pará como do Rio Grande do Sul, torrente ainda mal definida, hasteando todas as bandeiras, mas tendo um só alvo: – a mutação social.
E, justificando as duas observações, apresenta uma razão de caráter econômico: “Míope será”, “continua ele, “quem não reconhecer por trás destes acontecimentos literários outros tantos momentos econômicos do país: nos primeiros séculos da colônia o açúcar; no século XVIII o ouro; mais tarde o café e, agora que todos estes produtos estão desacreditados nos mercados europeus, onde não podem lutar com rivais aperfeiçoados”. Bem perto andou Sílvio Romero da verdade. E apesar de formular muito sinteticamente o seu ponto de vista, estabeleceu as premissas que, desenvolvidas com pequenas alterações, terão uma poderosa importância para a interpretação científica da estrutura cultural do Brasil.
O desenvolvimento econômico-literário do Brasil
Na realidade, tanto maior o progresso material do Brasil quanto maior o seu progresso cultural. O desenvolvimento geral, nos tempos coloniais, é claro, aguçou o sentimento da independência e de amor ao solo nativo. Basílio da Gama escreveu o Uraguai, tomando o índio como tema, e Santa Rita Durão O Caramuru, supondo provavelmente que o seu poema seria para o Brasil o que Os Lusíadas foram para Portugal. Na arquitetura e na escultura, o Aleijadinho criava uma escola própria, impressionante, inovadora e original. Em toda parte, havia um espírito de acentuada revolta contra a Metrópole que se tornava odiada. Mas em Minas Gerais, em Vila Rica, a velha cidade do ouro, foi que se estabeleceu por algum tempo o quartel general da rebelião contra o domínio português. Organizou-se um estado maior composto de cidadãos instruídos onde os poetas tiveram uma influência decisiva. Mas, ao lado dos poetas, viam-se indivíduos de iniciativa e de ação que tinham o dom de convencer e de sublevar.
Tiradentes, como Danton e Robespierre, surgia inesperadamente do seio do povo. Não se tratava de um cidadão de renome e de prestígio por influência de riqueza, posição e família. Era um simples alferes que trazia na cabeça um grande ideal e, cheio de fé e confiança em si próprio, ia levando de povoado em povoado, de cidade em cidade, a sua mensagem insurrecional ao mesmo tempo que ia agrupando em torno de si um número enorme de adeptos, que se deixavam levar pela tumultuosa eloqüência de suas ardentes palavras de rebelde e agitador. Atuavam em Cláudio Manuel da Costa, em Gonzaga, em Alvarenga Peixoto, e no Cônego Luís Vieira da Silva, os mesmos princípios que nortearam a guerra da independência, na América do Norte e a grande revolução na França. Na lista dos livros pertencentes ao Cônego Luís Vieira da Silva, seqüestrados após a descoberta da conspiração, encontravam-se L’Esprit des Lois de Montesquieu, La Enciclopédie, Le Paradis Perdu de Milton, as Oeuvres de Voltaire, Le Droit Public de l’Europe de Mably, entre várias outras obras de alta capacidade explosiva para a época, sobretudo para o Brasil. Hoje, tenho invocado, por mais de uma vez, a autoridade de Sílvio Romero a fim de fortalecer o meu ponto de vista. Quero citá-lo de novo, mas agora para divergir de sua opinião. O mestre não considerava a Inconfidência “um grande movimento”, muito embora reconhecesse que se tratava de “uma nobre aspiração expiada no cadafalso e no desterro”. Para mim, entretanto, a Inconfidência mineira não foi apenas uma conspiração romântica, preparada por um grupo de idealistas. Foi um movimento de larga extensão que ultrapassou as fronteiras de Minas, contando com apoio no Rio, em São Paulo e na Bahia. É mesmo provável que contasse com a promessa de ajuda de algumas das nações que procuravam entrar em relações comerciais com o Brasil. Todos nós sabemos que o estudante brasileiro José Joaquim da Maia chegou a entrar em entendimentos com Thomas Jefferson, em Paris, fazendo um relatório magnífico da situação econômica do Brasil, e nos autos da devassa se falou de uma nau francesa, carregada de armas que deveria vir socorrer o movimento emancipador. A fim de consolidar a independência e defender a nova república, Alvarenga Peixoto, que deixou a magistratura para se dedicar com êxito à mineração, vivendo abastadamente no seio de uma família feliz, chegou a apregoar a Abolição dos escravos. Com a vida ou com o exílio, sacrificando os bens, as posições e as criaturas mais queridas, é que pagavam os poetas, que imaginaram um Brasil econômica e politicamente emancipado. Marília, todavia, viveu o tempo suficiente para ver a proclamação da Independência e compreender que Tomás Antônio Gonzaga não fora um lunático que tudo sacrificara inutilmente, até o seu amor, por um ideal longínquo e inatingível.
Em 1808, fugindo de Napoleão, que invadira Portugal, chegaram ao Brasil D. Maria I e sua corte. Na Bahia, o Príncipe Regente D. João, influenciado pelo Visconde de Cairu, abriu, por carta régia, os portos do Brasil ao comércio universal, abolindo, dessa forma, o monopólio da Colônia. Logo que desembarcou no Rio de Janeiro, levantou a proibição que pesava sobre a indústria. Fábricas e oficinas abriram-se por toda parte. O comércio tornou-se livre, o que favoreceu o trabalho e a prosperidade do País. Muitos estrangeiros se estabeleceram em nossas cidades marítimas. Fundaram-se escolas, academias, museus e bibliotecas. Surgiu o Banco do Brasil, e, com a fundação da Imprensa Régia, teve origem, entre nós, a Imprensa e o Jornalismo. Finalmente, o Brasil foi elevado a Reino em 1815. Este impulso dado pela chegada da família real concorreu infinitamente para mais se caracterizar e definir o espírito brasileiro. Sete anos depois, já não era possível impedir a emancipação da Colônia. A independência política do Brasil, coincidindo com a sua independência cultural, acompanhou o grande passo que deu o Brasil para sua independência econômica que, por sua vez, contribuiu poderosamente para sua independência política. Antes do governo D. Maria I – D. João VI, a literatura entre nós se caracterizava pela sua feição colonial, quase sem vida própria. Salvo raras exceções, os nossos poetas mais emancipados continuavam, ao menos na forma, anacronicamente presos aos preceitos tradicionais, adotados na Metrópole, utilizando-se de processos artificiais que não estavam de acordo com a realidade ambiente. Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e Porto-Alegre, na poesia, José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo, no romance, Martins Pena, no teatro, Monte Alverne, na eloqüência sacra, citando apenas os mais conhecidos, muito fizeram para a formação de uma Literatura tipicamente brasileira, vigorosa e original, pela qual se pudesse expandir, artisticamente, um povo novo, imaginativo, que desejava criar e produzir. Mas uma nação não vive só, e, embora consiga firmar a sua individualidade, chegando a madurês intelectual, não pode fechar-se às influências das demais nações. O caráter fundamental da Cultura, isto é, das ciências, das letras e das artes, é o seu sentido universal. Uma Nação, como um indivíduo, deve ter a sua personalidade definida. Isso não quer dizer que se volte solipsamente para si própria. Nem por ter conquistado a sua independência econômica, política e espiritual, iria o Brasil desligar-se da comunidade cristã ou pretender livrar-se da interdependência das demais nações. Muito expressivas sobre nós foram as influências das grandes descobertas científicas do século XIX, bem como as das correntes filosóficas e literárias. O desenvolvimento industrial do País, cada vez maior, exigia uma rigorosa conjuntura e conseqüente reforma dos meios de produção. O trabalho servil já não correspondia às novas necessidades, tornando-se um entrave que era preciso afastar. Houve o choque natural entre a cidade e o campo; entre a burguesia nascente e os grandes proprietários dos latifúndios, geralmente conservadores. José Bonifácio, verdadeiro gênio político, dizia, por ocasião da Independência, que o Brasil não devia ser apenas um país agrícola: devia tornar-se industrial. E sem a Abolição dos escravos e a fragmentação da terra, este objetivo não seria conseguido. Ele compreendeu que chegara a oportunidade do desenvolvimento orgânico do capitalismo industrial e que, se o Brasil permanecesse economicamente atrasado em comparação com as outras nações industriais, não alcançaria inteiramente a sua independência econômica. Gonçalves Dias manifestara-se a favor da Abolição, mas de modo frio e discreto. Fora principalmente o cantor dos Índios para os quais exigia um lugar ao sol na civilização brasileira. O Negro, no entretanto, não tardaria em ter um poeta de gênio, que, embora pertencendo à raça branca, a raça dos senhores, ergueria bem alto a sua voz inspirada para reclamar, numa linguagem hugoana, a sua emancipação social. Revelando todos os sofrimentos, todas as humilhações impostas ao Negro escravo, colocou-se ao seu lado para fulminar, com estrofes de fogo, os que procuravam manter a escravidão. Não é preciso dizer que eu vos falo de Castro Alves. Castro Alves, como Gonzaga e Alvarenga Peixoto – este último seu precursor na luta pela abolição –, morreu sem ter visto a realização de seus sonhos. Mas a idéia não morre com o indivíduo. O fogo sagrado não foi extinto. E com a mesma vibração, o mesmo ardor, surgiram Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Rui Barbosa, para levar avante o seu ideal emancipador. Estes, sim, estes viram a concretização dos sonhos de Castro Alves que eram também os sonhos deles.
A escravidão em pleno século XIX era uma nódoa. A Abolição da escravatura recolocou o Brasil no mesmo plano moral das nações civilizadas. Para objetivar os ideais dos inconfidentes, a Independência, a Abolição e a República – só faltava esta última. E, finalmente ela se fez quase mecanicamente, sem atrito e sem luta. Euclides da Cunha escrevia em A Margem da História sobre o 15 de Novembro: “Uma parada repentina e uma sublevação; um movimento refreado de golpe e transformando-se por um princípio universal, em força; e o desfecho feliz de uma revolta, porque a revolução já estava feita.” Toda essa evolução que se processou na sombra, silenciosamente, sem alarido, sem ostentação, a Literatura Brasileira, tanto na quantidade como na qualidade, em nada ficava a dever à dos povos mais adiantados do Globo.
Sem os economistas, meus caros confrades, sem a vossa obra, Sr. Roberto Simonsen, eu não poderia chegar a tantas deduções sobre as letras e as artes. Podeis, portanto, de coração aberto, entrar para esta Casa e conviver com os poetas que, decerto vos estimarão. Os homens de ciência que chegaram aqui logo se confraternizaram com eles.
A Imortalidade
Sr. Roberto Simonsen, esta Casa é vossa. Viestes ocupar uma Cadeira que pertenceu quase meio século a Filinto de Almeida, um dos mais notáveis poetas líricos da língua portuguesa. Ainda estou a ver a figura empolgante do velho acadêmico a declamar neste recinto, no Curso Camões, esplêndidos versos do mais puro estilo camoniano. A Cadeira ficará como símbolo da correlação que existe entre a Poesia e a Economia. Um economista, na Academia, pode normalmente substituir um poeta, como vós próprio demonstrastes na magnífica oração que viemos de ouvir. Para terminar, eu vos quero dizer que o homem vale pelos serviços que presta à sociedade e pelo que deixa de duradouro. Vós tocastes, como já dissestes, em quase todos os problemas econômicos e financeiros do Brasil. Vistes o que havia de fundamental em nossas necessidades agrícolas e industriais, e procurastes atuar para minorar as nossas crises, estudando as questões de nossa moeda, a racionalização do trabalho moderno, do baixo nível de vida das populações urbanas e rurais, do aperfeiçoamento da técnica, enfim, da possibilidade de uma planificação da economia brasileira. Vós, portanto, não só atuastes em benefício prático de nosso país e de nossos compatriotas, mas também sois autor de uma obra histórica que se tornou imprescindível para a compreensão da realidade nacional. E penso, com fé em Deus, que continuareis a enriquecer com vossos trabalhos o nosso patrimônio cultural. Tendes, além de tudo, uma alma nobre, profundamente humana, e, em meio das crises do mundo contemporâneo, não perdestes a esperança no futuro, mas, ao invés, permaneceis no campo da luta, otimista, sempre, trabalhando por um mundo melhor, dentro dos postulados da civilização cristã.
Novamente vos digo: esta Casa é vossa. Podeis entrar tranqüilamente na imortalidade.