Senhores Acadêmicos,
Tempo houve em que me tomava de certa amargura ao verificar que, em confronto com a de tantos outros povos, parecia curta a História do Brasil e lenta a sua evolução social. Depois, consolei-me um pouco, face à consideração de que, na verdade, também eram nossos o passado e as tradições de Portugal, que acrescentavam, assim, à nossa vida, mais quatrocentos anos.
Hoje, penso de outra forma. Encontro indizível encantamento no estudo de nossa pequena História, pelo muito que ela tem de novo, e pelas demonstrações experimentais que oferece, no que se refere ao contacto e à ocupação de uma grande terra por tão reduzido grupo humano e ao seu comportamento na faina de explorá-la, valorizá-la e defendê-la.
Filiado à formação espiritual paulista, fui principalmente levado a essa nova orientação pelas pesquisas que iniciei sobre a gênese e o florescimento de São Paulo, desde os tempos coloniais até nossos dias.
Em crítica sobre a história dessa região brasileira, sugeri que, para melhor apreciá-la, fosse dividida em cinco fases assinaladas por nítidos fatores dominantes.
Na primeira, São Paulo, através de suas bandeiras despovoadoras, ao mesmo tempo que ia buscar em outras regiões a mão de obra indispensável à sua agricultura, assegurava a delimitação territorial do Brasil.
Na segunda, a da cata de ouro e de pedras preciosas, o planalto criou as bandeiras repovoadoras que espalharam cidades e currais por extensa área territorial, boa parte de cujos habitantes nativos tirara anteriormente.
A terceira fase, que vai da decadência da mineração ao início da cultura cafeeira, de 1780 a 1850, caracteriza-se por várias crises e reajustamentos.
Em todas elas destacam-se índices de feições peculiares, fornecendo grande messe de conhecimentos, que sobremodo apaixonam os que se debruçam sobre a análise dos fenômenos naturais, econômicos e sociais.
Durante o surto da produção cafeeira, na quarta fase da história paulista, compreendida entre 1850 e 1930, sobressaem aspectos fascinantes, com o desbravamento dos sertões. Rasgam-se, na terra virgem, estradas e caminhos. Cresce o “quantum” demográfico e constroem-se cidades. Integram-se, nesse período, os acontecimentos que deram lugar à formação da maior riqueza até hoje forjada pelo homem no Brasil: os movimentos das populações, a substituição do braço escravo pelas grandes levas de imigrantes europeus e toda uma série de fatos de ordem econômica, social e política.
É no final do século XIX que esse impulso do enriquecimento paulista se reflete em sua invicta capital, fundada em 1554, e, por várias vezes, às voltas com imensas dificuldades, sob o signo de uma vida de pobreza. São Paulo começa, então, a sentir os primeiros sobressaltos do seu próprio crescimento.
No pórtico do ciclo do café, o trabalho de abertura das fazendas exigiu que muitos dos habitantes da capital rumassem para o interior. Repetia, assim, a gente de Piratininga, dentro de suas terras, as migrações que anteriormente havia levado a termo através do Brasil. Multiplicaram-se as cidades, e Campinas assumiu, por algum tempo, a liderança econômica, política e social da província.
Mas, com o aumento da imigração estrangeira e em virtude das economias provindas dos grandes lucros da lavoura cafeeira, começaram a refluir para a capital os fartos recursos que iriam promover-lhe o esplendor.
Júlio Ribeiro, em 1887, assim se refere a esse período da vida paulistana:
São Paulo é hoje uma grande cidade. Dou-lhe, sem receio de erro, sessenta mil habitantes. Dia a dia, para norte, para sul, para leste, para oeste, está crescendo, está se alastrando, e, o que mais é, está se aformoseando. Os horríveis casebres dos fins do século passado e dos princípios deste vão sendo demolidos para dar lugar a habitações higiênicas, confortáveis, modernas.
A grande imigração dos primeiros tempos da República não perturbou as características culturais que, tradicionalmente, identificavam os velhos troncos paulistas. Paul Denis, em insuspeito depoimento publicado naquela época, afirma: “São Paulo conservou sempre o traço nacionalista da linha de ascendentes das antigas bandeiras.”
Com efeito, na Assembléia Provincial do Estado, nas últimas décadas do século XIX, deparam-se apóstrofes à mentalidade escravagista dos velhos fazendeiros, que obstava, na opinião de muitos, o desenvolvimento da colonização estrangeira. É de reconhecer-se, porém, que essa mentalidade, dificultando a aquisição de terras pelos colonos e os coagindo, por processos nem sempre suaves, à adoção dos costumes locais, decisivamente concorreu para que se não criassem quistos exóticos no território paulista, e para que se não desnacionalizasse o interior do Estado.
O enriquecimento de São Paulo pelo café produziu a formação de uma grande elite, que teve papel predominante na campanha abolicionista e na implantação da República. Renovaram-se, assim, os fenômenos que já se haviam observado em outras regiões do Brasil. No Maranhão, após mais de 150 anos de atraso e de pobreza, o aparecimento do arroz branco e do algodão explica a Atenas do Norte; em Pernambuco, são os canaviais que criam o escol intelectual e político do Nordeste; em Minas, o período áureo da mineração faz surgir as escolas literárias mineiras; e, afinal, no Vale do Paraíba, forma-se a plêiade dos “barões do café”, tão primorosamente descritos pelo insigne Afonso de Taunay.
FILINTO DE ALMEIDA EM A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO
Paralelamente, pois, à expansão da sua riqueza, São Paulo passou a ter voz ativa na vida cultural e na orientação política brasileira.
Na guerra ao escravagismo e na propaganda pelo advento da República, brilham, na terra paulista, na segunda metade do século XIX, três focos de imorredoura luminosidade: a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o Reduto do Jabaquara e a Convenção de Itu.
Evocar essa constelação é render preito de justiça ao idealismo de que também se impregnava a alma paulista nas lides que empreendeu pelo engrandecimento de sua terra. Desse idealismo e do espírito tradicionalmente nacionalista de suas velhas estirpes, é que se achava dominada a paulicéia quando se proclamou a República.
Favorecidos pela descentralização administrativa, tomados de novo alento, republicanos e monarquistas se fundem em união sagrada pelo progresso da capital bandeirante.
São Paulo era, então, eminentemente agrícola. A indústria repontava apenas em pequenos estabelecimentos de diminuto valor. Todos os grandes recursos provinham do café, e os capitalistas, os homens detentores de fortuna eram fazendeiros na quase totalidade. O progresso da cidade refletia o adiantamento agrícola da província.
Foi em tal clima que Filinto de Almeida, a quem venho suceder nesta Casa, apartou ao meu Estado, para dirigir A Província de São Paulo, o grande órgão de Rangel Pestana. Ia, Filinto, do Rio, onde era correspondente desse jornal e de onde participara da campanha republicana em que estavam empenhados os seus companheiros de A Província. Nessa fase memorável do grande periódico, já aí fulgia o espírito de Julio Mesquita, e, em sua redação, se congregavam os mais altos valores da intelectualidade paulistana. Pode-se dizer que foi assim, no cenário dos próprios acontecimentos, que Filinto completou sua integração na alma brasileira. Quando vem o preceito constitucional de 91, o da grande naturalização, já o encontra pensando e procedendo brasileiramente.
Seu espírito luso-brasileiro sentiu-se perfeitamente identificado com a gente de São Paulo. Convidado para redator de debates da Assembléia Estadual, cargo então de excepcional importância, teve nele que suprir as naturais deficiências de um meio onde a instrução era ainda atrasada. E tão hábil se revelou em suas funções, que o Partido Republicano resolveu elegê-la deputado à Assembléia do Estado.
Filinto viveu em São Paulo o qüinqüênio inicial da primeira década republicana, época que constituiu uma verdadeira “era vitoriana” para a antiga Piratininga. De fato, do esforço coordenado de todos os paulistas, das grandes iniciativas então levadas a efeito, defluíram rumos definitivos para o progresso de sua capital. E esse lustro de vivência, lúcida e combativa, o fez também cidadão do Brasil, cujas angústias e vitórias ele transformava em vitórias e amarguras pessoais.
CULTURA E CIVILIZAÇÃO
Praticam-se, amiúde, confusões no emprego das expressões “Cultura” e “Civilização”.
Cultura é usada, na linguagem comum, para exprimir a posse de um apreciável grau de conhecimentos. Em sociologia, traduz os traços reveladores da vida de um povo em determinada época, ou então, o complexo dos elementos por ele criados para a constituição do meio em que vive. Cultura, neste sentido, seria fruto da criação humana e não ambiente geográfico. Por esta definição, todos os povos, desde os mais primitivos até os mais adiantados, possuem sua cultura característica ou se filiam a outra.
Múltiplos índices que assinalam a cultura dos norte-americanos, povo que notória e indiscutivelmente conquistou uma posição de vanguarda, poderiam, na opinião de Clark Wissler, ser compreendidos dentro de três largos numeradores: a extensa utilização da máquina, desde o simples utensílio de uso pessoal até os mais complexos veículos de transporte; a difusão generalizada da instrução e da educação; e a aplicação intensiva do sufrágio universal, com todos os aparelhamentos institucionais que dele decorrem.
O conceito de civilização se acha intimamente conjugado tanto aos preceitos de ordem moral, quanto aos que determinam o progresso na sua acepção spenceriana. Guyot avaliava o grau de civilização de um povo pela razão direta da ação exercida pelo homem sobre as coisas e pela inversa da coerção do homem sobre o homem, fórmula que acredito feliz e exata.
Meu querido mestre Afrânio Peixoto, numa das admiráveis páginas de Poeira da Estrada, acentua a diferença existente entre Cultura e Civilização. Mostra, ainda, que esta última está etimologicamente ligada à Noção de “civilidade”, o bom trato e a compreensão dos homens entre si, ou seja, a que chamamos educação.
Assim, se dos norte-americanos se pode dizer que são donos de incontestável cultura e civilizados em alto grau, o mesmo não se dirá de muitos outros povos, cujo imenso desequilíbrio entre uma cultura material e científica adiantada e um grande atraso de civilização a última guerra nos patenteou em toda a sua nudez.
Fernando de Azevedo, em livro recente e erudito, discorrendo sobre a cultura brasileira, salienta os traços marcantes de nossa vida.
Um exame imparcial desta evolução faz ver que, comparados os nossos com os índices que se deparam em nações mais adiantadas, somos mais civilizados do que cultos. Antes assim: a barbárie não é fruto que possa medrar em solo brasileiro.
CULTURA BRASILEIRA E CRIAÇÃO LITERÁRIA
As instituições políticas, sociais e econômicas que melhor sirvam a um povo estão intimamente ligadas ao grau de cultura e de civilização que ele tenha alcançado. Daí, os imensos desajustamentos que continuamente sofremos, resultantes da cópia servil que andamos a fazer de modelos alienígenas.
Foi, aliás, por verificar a impossibilidade do bom funcionamento, entre nós, de muitos desses organismos, julgados essenciais ao progresso de outros povos, que me dediquei a longos e penosos estudos na esfera da nossa economia, da nossa sociologia e da nossa política. Cheguei, assim, à irrefragável conclusão de que para sairmos, quanto antes, do atraso demonstrado pelos nossos índices de cultura, deveríamos lançar mão de um planejamento geral, em que fossem coordenada e eficientemente utilizados todos os conhecimentos que a ciência e a técnica nos oferecem, propiciando ao Brasil um progresso mais rápido do que aquele possibilitado pela sua evolução normal.
Infelizmente ainda não se formou entre as nossas elites uma consciência suficientemente esclarecida sobre a gravidade de nossos problemas fundamentais. Homens públicos de notável relevo preocupam-se, aqui, quase que apenas com os aspectos formalísticos da política doutrinária. Impressionados com tais aspectos em povos de cultura muito diversa da nossa, distraem-se da objetividade e das peculiaridades das nossas condições. Estão eles, o mais das vezes, para as questões brasileiras, como simples disciplinadores de pronomes estarão para a análise de uma obra literária monumental como a de Balzac.
Poderemos, razoavelmente, colocar a cultura brasileira dentro dos postulados básicos que fixam a cultura norte-americana: maquinização, educação geral e sufrágio universal? Poderemos negar a íntima conexão que deve existir entre o grau de cultura de um povo e as instituições políticas que lhe sejam mais adequadas?
As dificuldades do momento nos ensinam, por exemplo, que no combate à inflação, dada a nossa estrutura social e econômica, não podemos aplicar as mesmas medidas drásticas de que se valem outras nações de estrutura social e econômica mais consolidada do que a nossa.
O planejamento, tal como o sugeri num dos conselhos técnicos da administração pública, permitiria o enquadramento, na ciência e na técnica, de todos os nossos problemas básicos, pondo a descoberto o absurdo de pretendermos transplantar processos alienígenas de cura para doentes constitucionalmente diferenciados.
A atmosfera de incompreensão e desajustamento que aqui respiramos só não nos arrasta a conseqüências de maior gravidade porque atingimos, pela nossa formação moral, uma civilização bem acima das nossas condições culturais. Tal estado de cousas repercute, também, sem nenhuma dúvida, nas criações dos nossos homens de letras. E faz melhor compreender o caso de Filinto de Almeida, a sua educação cultural luso-brasileira, o seu contato com a nossa intelectualidade boêmia, a sua cooperação com a elite republicana – geração que fundou a Academia – e, finalmente, o seu refúgio no lar e no culto da arte pela própria arte, tal como a havia entendido em sua mocidade.
O JORNALISTA DE 1892 E O DEPUTADO
Proclamada a República, é em A Província de São Paulo que a ação do homem de imprensa que foi Filinto de Almeida se desdobra com agudeza, oportunidade e perfeito conhecimento dos problemas então em foco. Cabe-lhe, como primeira providência que lhe indica o advento do novo regime, a mudança do título do jornal para O Estado de S. Paulo. E, logo de início, uma de suas campanhas – isto para citar apenas uma delas – a que visava o ensino obrigatório da língua nacional nas escolas italianas e alemãs da terra bandeirante, torna-se vitoriosa.
Deputado à Assembléia Estadual, nunca deixa de estar presente aos debates. Mas, para ligar seu nome, em definitivo, aos fastos da vida cultural paulista, bastaria o projeto, de sua autoria, da criação do atual Museu do Ipiranga, onde a gente do planalto vem carinhosamente acumulando os símbolos mais expressivos de suas tradições. Foi Filinto de Almeida, pouca gente sabe disto, quem tomou essa iniciativa, com a cooperação de Pereira dos Santos, em sessão de 8 de Agosto de 1893, para que se instalasse no próprio do Estado, designado Monumento do Ipiranga, situado na colina do mesmo nome, o Museu Paulista, com a organização legal que lhe fosse determinada e onde se guardassem – vou ler as suas próprias palavras:
As coleções de objetos históricos então a cargo da Comissão Geográfica e Geológica e aí figurassem: 1) o quadro de Pedro Américo, comemorativo da Independência e outros de assunto de história pátria, adquiridos ou oferecidos ao Estado; 2) as estátuas, bustos e retratos a óleo de cidadãos Brasileiros que, em qualquer ramo de atividade, tenham prestado incontestáveis serviços à Pátria e mereçam do Estado a consagração de suas obras ou feitos e a perpetuação de sua memória.
Mas é o jornalista, o comentarista não raro mordaz, atento em verberar os abusos do seu tempo, prejudiciais aos interesses do povo, o que as suas crônicas revelam de modo surpreendente.
Assíduo, vivacíssimo, vemo-lo então, de férula em punho, já naquela época, atacar os negociantes inescrupulosos pela alta dos preços dos gêneros, numa página que poderia ser escrita hoje com a mesma propriedade. “Desgraçadamente”, exclama, “os pobres não podem suprimir o luxo de comer!” – Reclama ele, ao mesmo tempo, contra os aluguéis extorsivos, dizendo:
As casas que, há três ou quatro anos, eram alugadas por 50$000, estão atualmente a 100$000 ou mais. Um horror! Se a polícia não obrigasse a gente a morar – são suas palavras – ou se se pudesse morar sem casa, ainda as coisas se resolveriam. Mas assim, não sei como há de ser resolvido o problema. Uma estatística de 88 dizia que naquele ano foram edificadas nesta capital 756 casas, mais de duas por dia; no ano passado é certo que o número de construções aumentou; entretanto quase não há casas para alugar, e as que aparecem, ou só prestam para cães, ou estão pelo preço... da banha, relativamente.
No mesmo tom, e já num dos seus tópicos intitulados Dia a dia (em 26 de Abril de 1892) falava Filinto sobre as oscilações do câmbio, e dizia com raro senso crítico:
Há cinco meses, desde a queda da ditadura, que o câmbio oscila entre as taxas de 11 a 12 sobre Londres. Parece, portanto, que o nosso comércio já poderia ter uma base para os preços correntes dos vários gêneros de consumo. E todavia essa base não existe ainda. Perdeu-se inteiramente a noção do valor mercantil dos artigos de consumo, e reina ainda a maior e mais deplorável anarquia nos preços, o que dá lugar às mais violentas especulações e a uma verdadeira e calamitosa extorsão feita à pobreza por muitos negociantes retalhistas.
“REFLEXÕES CRISTÃS”
Ainda em 92 profliga o congestionamento da Alfândega de Santos e as dificuldades de transporte da Central do Brasil, “duas instituições que – assevera – estão sendo paralelamente fatais a São Paulo”.
E aduz estas reflexões a respeito, a que chama de “reflexões cristãs”:
O que é a Alfândega de Santos já com muita eloqüência e energia disse o extinto Diário da Manhã, que ali se publicava. A campanha movida pela brilhante folha santista àquela medonha e perigosíssima repartição federal deu causa a alguns melhoramentos; e a grande comissão do comércio organizada aqui, há meses, creio que por sugestão do governo, conseguiu um arrasamento completo. Por mais gatos que para lá mandem, não há meio de extinguir os ratos que a devastam .
E assim prossegue em seu picante libelo:
Para se livrar das garras aduncas e da falta de espaço da alfândega de Santos, o comércio de São Paulo recorreu à do Rio de Janeiro e lá fazia desembarcar as suas inúmeras mercadorias, que vinham para aqui pela Estrada de Ferro Central. Mas parece que a administração da Estrada não gostou da freguesia, porque logo começou a desorganizar com imenso cuidado todos os seus serviços, de modo a não poder conduzir nem num mês, nem em dois, as cargas que recebia a despacho. Com uma paciência verdadeiramente evangélica e com incalculável sacrifício, o comércio, que é a corporação mais imaginosa de quantas no mundo sonham, descobriu uma tangente, inventou um novo meio de se salvar da alfândega de Santos; começou a despachar as cargas como encomenda, ao triplo do frete, e em volumes nunca mais pesados que cem quilos. Pois nem assim! Logo que a administração da Estrada percebeu que estava de algum modo satisfazendo o comércio, zás! torna a precisar de meses para conduzir um caixote qualquer do Rio para São Paulo; e agora, segundo li na Gazeta, nem assim quer continuar, e vai recusar-se a receber encomendas.
E conclui:
Para que diabo serve então a estrada de ferro?
Só para transporte de passageiros? Mas isso mesmo é feito por ela com a maior indecência, porque os trens nunca chegam na hora da tabela, mais do que uma ou duas vezes por semana, e a viagem, já penosíssima, com treze horas, é quase mortal com dezesseis e vinte que às vezes consome. Precisamos, pois, e com a maior urgência, não só de uma alfândega em S. Paulo, mas também de outra estrada de ferro para o Rio. A Central poderá ficar como monumento e para fazer parelha com a alfândega de Santos. Reservemo-las para a posteridade, bem unidinhas (sic) e com esta inscrição comum: Isto foi uma Alfândega de ratos e um Caminho de Ferro de tartarugas. Povos venerai estes dois animais!
AINDA SÃO PAULO E UMA PEQUENA HISTÓRIA LÍRICA
Poderia eu – creio – resumir a passagem de Filinto de Almeida por São Paulo sob um tríplice aspecto: do homem de idéias, do deputado estadual, do comentarista. Como homem de idéias, defendeu ele, ao lado de grandes paulistas, as causas da Abolição e da República. Deputado, assinalou a sua presença na Câmara, por um traço de operosidade, inteligente e altiva. Comentarista, soube interpretar, com suas “reflexões cristãs”, as verdadeiras aspirações do povo.
Mas o seu contato com a terra de Piratininga teve, também, a redourá-lo, um aspecto afetivo, mais lírico, mais particular. Refiro-me ao amor do poeta por D. Júlia, cuja família – a família do Dr. Silveira Lopes, depois Visconde de São Valentim – residiu algum tempo em Campinas.
“1887”, diria ele já cinqüenta anos mais tarde, “foi o ano mais venturoso de minha existência. Os deuses me sorriram... Era a realização de um sonho longamente almejado. A dedicatória de Lírica, datada de outubro de 1886, vos dirá, nas simples iniciais do rosto – J. L. – qual foi esse sonho mirífico.”
Lírica, a que se referia Filinto, é o seu primeiro livro de versos. As iniciais J. L..., são de Júlia Lopes, e na dedicatória o poeta procura atenuar – aos olhos de quem? – os pecadilhos de sua primeira mocidade:
Os versos que aí vão
Lançados hoje ao vento,
Fê-los o sentimento,
Disse-os o coração.
Neles encontrarás
Muito mistério – oculto,
E muito amor sepulto,
Que não compreenderás.
É que a Poesia tem
Destas anomalias:
Escrevem-se poesias
Sem se saber a quem!
Há nomes de mulher
Que nós nem conhecemos,
E nomes que escrevemos
Em vez de outros quaisquer.
Não fiques a cismar
Em tanto desconforto,
E de um passado morto
Desvia o teu olhar.
O que passou, morreu:
Lei é fatal e assente.
É teu o meu presente,
E o meu futuro é teu.
Poesias – é comum
As damas escrevê-las.
Certo há muitas estrelas...
Mas sol? apenas um.
Do teu amor em prol
São todos os amores.
Crestaste-os como a flores,
Ó meu único sol!
Contam os seus biógrafos como se deram as coisas. Embora nascida nesta capital, é em Campinas que D. Júlia passa grande parte de sua mocidade, pois é aí que reside o seu pai, o Visconde de São Valentim. De Campinas é que ela envia um dos seus primeiros trabalhos literários para A Semana, de Valentim Magalhães, em cuja redação, antes de sua ida a São Paulo trabalhava Filinto. Este descobre a escritora, ainda provinciana e desconhecida e entusiasma-se por ela. Certo dia tem notícia de que Júlia Lopes se encontra no Rio, em visita a uma irmã, Adelina Amélia Lopes Vieira, e vai procurá-la; quer vê-la, quer ouvi-la, quer dizer-lhe o entusiasmo de que se acha possuído. O seu coração de poeta, porém, já não se contenta com ouvi-la e vê-la. Fossem quais fossem as dificuldades a vencer, aquela seria a sua companheira de destino. Em 1887, quando o Visconde de São Valentim embarca para Lisboa levando a família, Filinto mobiliza todos os seus recursos e, a 12 de Outubro desse ano, embarca no John Elder para o mesmo destino. O intuito dessa viagem, segundo uma informação de João Luso, está claro: “D. Júlia o esperava para se casarem.”
NO RIO AO TEMPO DE A SEMANA
Antes, porém, de ser redator de A Província de São Paulo, havia Filinto de Almeida iniciado, no Rio, para onde viera com dez anos apenas, a sua vida jornalística; antes de ser o companheiro de Rangel Pestana e de Júlio Mesquita, fundara A Semana, com Valentim Magalhães; trabalhara em A Folha da Noite, de João Alves Mendes da Silva, ao lado de Serpa Pinto e Lourenço Leal e fora companheiro de Lopes Trovão, em O Combate, órgão de propaganda republicano-radical; antes de se casar com a filha do visconde, exercera o ofício de simples caixeiro na Rua da Quitanda – aquele que trabalhava de dia e passava a noite a ler e a estudar “à luz de uma vela metida no gargalo de uma garrafa”; antes de publicar Lírica, publicara composições esparsas; publicara o seu primeiro poema na Folha Ilustrada, de onde sairia depois a Gazeta de Notícias. (É quando ele remete pelo correio – como nos conta – o seu trabalho de estréia para as Fábulas Instantâneas. E quando lê, com alegria, a resposta à sua carta: “F. Almeida: não são maus os seus versos. Vão ser aproveitados”).
É o Filinto dessa época que Valentim Magalhães retrata vivamente:
Ele faz crônicas, as mais engraçadas e criteriosas que se lêem no jornalismo fluminense. Ele faz a local do momento, curta, incisiva, hilariante; ele faz a crítica, sem farfalhices de erudição catalógica, sem pedantescos rigores; ele faz o artigo sério sobre o fato grave do dia; ele faz crítica teatral, e como poucos; ele faz o necrológio e traça, em prosa ou em verso, o artigo de censura e o artigo de aplauso; ele faz o diabo! Ele faz tudo o que um jornalista – que o seja – deve fazer. E tudo com a mesma facilidade e limpeza; com critério, naturalidade e gramática.
E acrescenta Valentim Magalhães: “A gramática é a sua mania. Nunca a estudou e por isso é que a sabe como trezentos corujas.”
Como entrou Filinto para o Jornalismo? Ainda é Valentim Magalhães quem nos conta o episódio, numa crônica de 30 de outubro de 1886:
– Deixo hoje de ser seu empregado.
O patrão empalideceu. Aquele rapaz era um verdadeiro ímã à freguesia de varejo, que ele atraía com a delicadeza do seu trato e comunicativa alegria de sua conversa. À custa de uma simples pilhéria, vendia o artigo mais caro do que outro qualquer, e isso sem dificuldade e sem que o freguês o desconfiasse.
– Mas, porque é que sai?
– Eu... – e Filinto tomou um ar imperativo de embrionário Girardin – eu abandono o comércio.
– Hein?
– Entro para o Jornalismo.
No outro dia o ex-caixeiro estava sentado à mesa de redator do Domingo. “Este jornal, então, viveu um bom número de domingos”, diz Valentim, “graças ao prestígio que o seu redator (chapeau bas) gozava entre os antigos colegas.”
Dois atributos já se lhe notam, no comentário da época: um, para as ações generosas: o coração grande; outro, para o pitoresco das anedotas: uns pés enormes. “O seu coração é tão grande”, gracejava o amigo inseparável, “que não cabe dentro de um só dos seus sapatos.”
O coração lhe explicaria, mais tarde, toda uma concepção filosófica e cultural da vida. Os pés avantajados, objeto de curiosidade para os amigos e de graça para os maledicentes, rimavam bem com a firmeza dos seus passos e das suas decisões.
Mas não só isso enriquece a maledicência daquele tempo. Não escapou à verve dos cariocas o aparente paradoxo do comerciante dublê de poeta. E um jornal irreverente noticiava: “Faz anos hoje o Sr. Filinto de Almeida, conceituado poeta, estabelecido nesta praça.”
O SENTIMENTO DE FAMÍLIA
Mas, ia dizendo, Lírica é uma coleção de sonetos, escrita aos 28 anos. Nela, um critico da envergadura de Ezequiel Freire notou o “sabor dos clássicos portugueses do período seiscentista, no que concerne a estilo e imaginação”. Petrarca e Camões são os seus paraninfos espirituais.
Em Cantos e Cantigas já Filinto registra produções de uma fase de vida mais tranqüila. Dedica-as a seus filhos e a sua mulher.
É em Santa Teresa, então, que reside o casal feliz. Aquele casal feliz que João do Rio descreveu em luminosa página do seu Momento Literário:
Uma criança loira, de uma beleza de narciso, aparece à porta. É a Margarida. As suas longas mãos no ar, chamando a mãe, são tão finas e rosadas que recordam as pétalas dos crisântemos. D. Julia levanta-se.
– Vou ver o Albano, coitadinho... já não o vejo há muito tempo.
Ficamos sós, um instante.
– Há muita gente que considera D. Julia o primeiro romancista brasileiro.
Filinto tem um movimento de alegria.
– Pois não é? Não era eu quem devia estar na Academia, era ela.
Esse sentimento de mútua admiração – diz o fascinante cronista que foi João do Rio – é um dos encantos daquele lar. Filinto esquece os seus versos e pensa nos romances da esposa. Leva-a a certos trechos da cidade para observar o meio onde se desenvolverão as futuras cenas, é o seu primeiro leitor, ajuda-a com respeito forte e másculo. D. Júlia ama os versos do esposo, quer que ele continue a escrever, coordena o volume prestes a entrar no prelo. E ambos, nessa serena amizade, feita de amor e respeito, envolvem os filhos numa suave atmosfera de bondade.
Forte razão havia, pois, para um soneto como este:
Quando penso que és minha, eu estremeço
De grande e íntimo orgulho e de alegria.
Sei que tu és um bem que eu não mereço...
Mas nenhum homem te mereceria.
Por que me coube um prêmio de tal preço,
A mim tão imperfeito e sem valia?
Benigna sorte dadivosa e pia,
Magnânima fortuna, eu te agradeço.
Flor de bondade, fonte cristalina
Da Virtude e do Bem, que o Bem sugeres,
E cuja alma impoluta me fascina,
Bendita sejas tu, que bem me queres,
Bendita sempre sejas, ó divina,
Ó única Mulher entre as mulheres!
É esse mesmo ambiente de ternura, de gosto pelas coisas da Arte, que se repete – já na sua nova residência da Avenida Atlântica – onde o “lar de artistas” tem a sua constituição feliz. Os filhos já estão crescidos. D. Júlia Lopes e Filinto constituem um modelo de mútua compreensão comovente pela lição de beleza que encerra. Margarida é, então, a grande declamadora; Albano, o pintor de “paisagens estranhas”; Afonso é diplomata, além de escritor e poeta de fina sensibilidade, e Lúcia, musicista e cantora; e todos formam a família ilustre, o recanto de afeto, onde nós, afinal, iríamos encontrar um trecho de paisagem humana em seu mais puro sentido de solidariedade e crença nos valores da vida.
CANTOS E CANTIGAS
Mas já aos 45 anos preocupa-se o poeta com os pródromos da velhice. Em “Crepuscular” encontram-se estrofes como estas:
..............................................................
Envelhecer é ver chegar a própria ruína,
Pender as ilusões que doiram a existência,
E provar esta coisa amarga – a experiência,
Que destrói longamente a loucura divina.
Só o artista resiste ao desastre medonho,
Só o poeta é que vê calmo a ruína da vida,
Porque ao sentir que está com a fronte encanecida
Recomeça a viver a vida do seu sonho.
..............................................................
Em “Conselhos” traduz, com fidelidade, a compreensão que tinha da vida:
És um homem. Caminha. A vida é uma batalha,
Uma batalha rude e sem tréguas. Conquista
Palmo a palmo o teu posto, e não percas de vista
Que é esforço perdido o esforço que se espalha.
A um só escopo dirige a vontade, e trabalha;
Vê que sempre, na luta, ampla razão te assista,
Teme a imaginação da tua mente de artista
E nutre as ilusões que a tua alma agasalha.
..............................................................................
Contêm Cantos e Cantigas uma série de poemas, sonetos e trovas, nos quais se encontram sempre, com firmeza e sinceridade, os seus pontos de vista sobre os quadros mais correntios da vida.
Muitas das suas produções são realmente felizes. Em “Looking backwards”, dedicada a Alfredo Pujol, deparamos com esta:
..............................................................
A memória é uma corrente
Da imaginação febril;
Liga o passado ao presente,
Como uma ponte sutil.
..............................................................
Em Dom Quixote, dedicado a Leopoldo Bulhões, ao fixar a ética da figura imortal do cavaleiro de Cervantes, assim remata os seus versos:
..............................................................
Deixai-o caminhar assim mesmo, irrisório,
Propugnando a Justiça e combatendo o crime;
Deixai-o na ilusão do grande esforço inglório,
Que a bizarra loucura é que o torna sublime.
Não o acordeis jamais; deixai-o na ebriedade
Do áureo ideal pertinaz que as mágoas não consomem:
Sonhar a Glória, o Amor, a Justiça, a Bondade...
Só quem sabe sonhar é digno de ser homem.
E a expressiva e tocante delicadeza destas estrofes contidas em “Cintilas?”
V
A minha esposa perguntou alguém
Qual era o sentimento mais profundo,
Mais vasto e mais humano deste Mundo.
E a pergunta foi feita a mim também.
Cada um de nós de pronto respondeu
Da feição mais segura e mais singela.
Que era o amor de mãe, respondeu ela;
Que era o amor de pai, respondi eu.
POESIA “À MODERNA” E POESIA “À ANTIGA”
Já houve quem classificasse os homens em duas grandes categorias. A primeira abrangia aqueles que quase exclusivamente se deixam dominar pelos acontecimentos e pelo ambiente, vivendo, pois, e principalmente, ao sabor do meio, e levando a vida por um quotidiano imediatismo dedutivo. A segunda incluía os que, dotados de imaginação criadora, procuram, constantemente, indagar da natureza das coisas e plasmar, durante a existência, algo de próprio.
Só na última categoria, acredito, se podem encontrar os verdadeiros artistas, os que logram transmitir o fruto da sua riqueza imaginativa, através de produções que impressionam aos nossos sentidos.
A Arte não pode ser convertida em preceitos dogmáticos, sejam quais forem as formas de que se revista; e estas, por sua vez, não podem ser limitadas no espaço e no tempo.
A Arte, para ser verdadeira, precisa adornar-se de predicados essenciais de compreensão e beleza. E por maior que seja o gênio criador, estará ele fatalmente subordinado às condições da sociedade em que aprofundou as raízes da sua cultura, para a qual produziu, e dentro de cuja perspectiva terá de ser entendido. Daí, para o julgamento de uma obra literária, como de qualquer realização artística, o ser preciso fixar os traços culturais característicos da época em que o artista viveu. Encarada a Arte sob os aspectos da sua origem, da sua razão de ser e da sua finalidade, verificamos que, a rigor, não pode haver um conflito entre a substância e a forma, ou entre a verdade e a Beleza. Fixadas essas premissas, podem-se livremente alinhar as várias escolas e teorias em que as lucubrações de críticos e doutrinadores têm procurado dividir e subdividir a produção artística.
Na Literatura, a vida dos sentimentos parece denunciar-se mais intensamente pela Poesia que pela Prosa. A verdadeira Poesia provoca reações mais fortes que as outras formas literárias. É esse, aliás, um dos seus objetivos.
Afastando-nos, no entanto, da apreciação de obras admitidas como eternas, deparamos com as fundas divergências existentes entre os poetas de hoje, principalmente quanto à técnica da manifestação do seu espírito. Diante, porém, da revelação da poesia verdadeira, parece-me que não pode passar para o primeiro plano a querela entre os defensores e os detratores da rima, entre os partidários ortodoxos do verso metrificado e os que almejam maior liberdade de ritmos.
As odes, que na poesia eram em regra consagradas às grandes forças da natureza, tendem hoje a evolver, naturalmente, em cânticos votivos aos lances da técnica moderna.
Mas enquanto o homem antigo se sentia pequeno diante daquelas forças, o de hoje, ao influxo, às vezes ilusório, das conquistas da técnica, chega a admitir uma concepção de domínio e de possibilidade de sua interferência na própria modificação do organismo social em que se integra.
Este estado de espírito reflete-se na poesia moderna, em que o poeta assume uma liberdade de ação, coadjuvante da necessidade de transmitir ao meio as reações da própria sensibilidade, diante da natureza e da multiplicidade dos novos fenômenos que ele defronta.
À medida que se processa uma associação mais inteligente do homem com a Ciência e com a máquina, surgirão, naturalmente, novas contribuições para o enriquecimento da linguagem literária.
Estávamos habituados – escreveu Paul Engel – com moinhos de vento mas não com dínamos. Estávamos familiarizados com arados puxados por cavalos, mas não por tratores, e, além do mais, era uma velha tradição o uso, em poesia, do moinho de vento e do arado. Mas isso sofreu alteração. As crianças de hoje brincam com aeroplanos, com trens elétricos e com um sem-número de engenhos mecânicos que não lhes serão mais estranhos quando crescerem.
Os poetas modernos cantam, de preferência, a vida ativa ou a mecânica. Filinto prefere as “Harmonias da noite velha”. Não o seduzem os temas da poesia moderna ou revolucionária. Ao contrário. “A máquina das máquinas”, “Arte passadista”, “Arte atualista”, e nos sonetos dedicados A um jovem poeta e A um jovem poeta futurista, o que ele nos demonstra é a sua aversão à bizarria e aos exageros de algumas escolas avançadas:
O simulacro abstruso da Poesia,
Salpicado na atual literatura,
Obliterou do Verso a forma pura
E suprimiu-lhe o encanto da harmonia.
Chamaram-lhe a princípio “arte futura”
Não sei tomo lhe chamam hoje em dia.
Salta aos pedaços prosa correntia
Em linhas sem medida e sem censura.
Nem a audição assim, nem mesmo à vista
Nos dão do ritmo a mais exígua parte,
E manquejam os versos com o versista...
Mas deixa-os lá! Por que hão de preocupar-te?
Onde o poeta deixou de ser artista,
Deixou logo a poesia de ser arte.
É perfeita e compreensível a atitude de Filinto de Almeida. Poeta lírico, ateve-se de preferência à forma clássica, refugiando-se na apreciação de eternos problemas, que, sendo velhos, são sempre novos: o amor, a mulher, a mocidade, a saudade, o sofrimento...
DO ESTOURO DA BOIADA AO PÂNICO DA BOLSA
Aliás, pergunto, a circunstância de nos deleitarmos com as produções de um Manuel Bandeira, de um Cassiano Ricardo, de um Ribeiro Couto, de um Menotti Del Picchia, ou de um Múcio Leão – para só citarmos poetas da Academia – impedirá que reconheçamos o valor das obras de um Olegário Mariano ou de um Adelmar Tavares?
Ainda hoje emociono-me relendo Vicente de Carvalho e Olavo Bilac, evocadores de muitas horas felizes da minha mocidade.
Os chamados “poetas modernos” são fruto de uma insatisfação mental que a inquietação do universo traduz e transmite a espíritos sonhadores, comovidos pelo espetáculo do mundo à procura da própria alma, e que buscam interpretar essa perplexidade pela adoção de novas formas poéticas. A diferença que os aponta como adeptos de escolas distintas será conseqüência da maneira por que, em dois instantes históricos, é considerado o conceito da Poesia.
Estamos, ainda agora, neste período de rescaldo de guerras, assistindo a uma evolução da Poesia, dentro do mesmo terreno de que os nossos grandes modernistas se tornaram pioneiros. Talvez por isso é que se acreditava Filinto, em seu tempo, um revolucionário autêntico, dizendo: “Desde moço sempre fui um revolucionário no sentido estético. Com Valentim Magalhães pelejei pelo advento do parnasianismo. Trabalhamos nos jornais por dois ideais dos maiores: a Abolição e a República.”
E que dizer de sua iniciativa – tão revolucionária que os modernos a adotaram – de se reabilitar o nosso originalíssimo “ao”? “Não estranharás”, (dizia ele a Augusto de Lima), “que eu a defenda (a língua) pelo fato dos que consideram desprimor um som que as suas irmãs não contam em sua fonética”.
Será, pois, natural, que coexistam na nossa literatura poemas que colhem seus motivos nas mais diferentes demonstrações da cultura humana, como aqueles que buscam ainda suas raízes nas bravias manifestações da natureza e do nosso homem do campo. Para uns, os que habitam os centros do comércio e da indústria, a tradução de um desajustamento ou de uma descoordenação violenta encontrará o seu símbolo no espetáculo de um pânico da Bolsa; para outros, os das regiões agrárias, mais atrasadas, a mesma hipótese encontrará a sua expressão mais sugestiva e inconfundível no estouro da boiada.
HARMONIAS DA NOITE VELHA
Ainda sob esse aspecto justifica-se a coexistência, no país, sem razão para desentendimentos ou atritos, das duas poderosas escolas dos poetas “à antiga” e “à moderna”.
Filinto de Almeida foi um poeta filiado à primeira delas. O livro Lírica representa o momento mais alto da sua interpretação dos valores poéticos, e Harmonias da noite velha sua derradeira produção em versos.
Acredito ser fiel à verdade, acentuando o fato de que, poeta, Filinto esteve perfeitamente à altura de responder ao gosto do seu tempo. Os versos que escreveu, considerados à luz de uma crítica imparcial, são dignos de figurar, como tantos outros, em nossas antologias.
Manuel Bandeira, em seu estudo sobre os parnasianos, transcreve a conhecida “Balada Medieval”:
Por noite velha no castelo,
vasto solar dos meus avós,
foi que eu ouvi, num ritornelo,
do pajem loiro a doce voz.
Corri a ogiva para vê-lo,
vitrais de par em par abri
e ao ver brilhar o meu cabelo,
ele sorriu-me, eu lhe sorri.
Venceu-me logo um vivo anelo,
queimou-me logo um fogo atroz.
E toda a longa noite velo,
pensando em vê-lo e ouvi-lo a sós,
Triste, sentado no escabelo,
só com a aurora adormeci...
Sonho, e no sonho, haveis de crê-lo?
Inda o meu pajem me sorri!
Seguindo a amá-lo com desvelo,
por noite velha, um ano após,
termina enfim o meu flagelo.
Felizes fomos ambos nós...
Como isto foi, nem sei dizê-lo!
No colo seu desfaleci...
E alta manhã, no seu murzelo,
o pajem foge e inda sorri.
Dias depois, do pajem belo,
junto ao solar, onde eu o ouvi,
ao golpe horrível do cutelo
rola a cabeça, e inda sorri...
Teve ele, muito nítido, o sentido da forma. Esse sentimento da plástica literária era a última conquista do tempo em que versejou.
Da impassibilidade parnasiana, Filinto de Almeida evadiu-se pela mais cômoda das evasões, dando um cunho pessoal às suas meditações líricas. E, como não podia deixar de ser, os clássicos temas impessoais e mitológicos da tradicional poética do Parnaso foram sendo substituídos, na lira do nosso poeta, por um temário bem mais próximo da emoção do público: o amor, os encantos do lar, o sentimento de pátria, e – por que não dizê-lo? – os fervores da sensualidade. Suponho que, engenheiro que sou, poderia, por meio de gráficos, descrever, através de curvas ascendentes e descendentes em paralelismo com o seu vigor físico e com o seu estado de alma, a importância que na obra de Filinto tiveram as manifestações do amor, vistas de um ângulo quase que exclusivamente pagão.
O CAMONIANO CONVICTO
Com a maturidade, os ardores estéticos arrefecem sensivelmente. Filinto torna-se, então, um trovador enternecido pelo que há de impessoal nos grandes temas de Camões. Transforma-se em camoniano convicto, menos pela realização que pelas intenções postas comovidamente em seus versos de outono.
Este é o Mestre, este é o Guia, este é o que ensina.
Tomou-me pela mão e na adolescência,
Deu-me os primeiros lumes da consciência,
Fez-me a luz que ajuda agora me ilumina.
Guiou-me pela estrada diamantina,
Transmitiu-me os avisos da experiência;
Abriu-me ao ar e ao sol a inteligência,
Mostrou-me a forma e a idéia peregrina.
Vulto humilde – segui-o a vida inteira;
Luz clara – ele o meu nome determina;
Soberba nau solar, vou-lhe na esteira.
E quando escrevo surge, repentina,
a sua augusta sombra sobranceira.
– Que ainda é o Mestre, ainda é o Guia, ainda é o que ensina.
Da sua camoniana merece ainda referência o soneto que dedica ao salvamento de Os Lusíadas:
Imenso Mar, oceano misterioso,
Por quem se entrega o marinheiro à lida
Que escondes a Procela adormecida,
Para o perigo e a morte, ou para o gozo.
Um dia visto sobre ti caída
A figura de um náufrago ansioso
Que tentava salvar mais do que a vida,
Preso aos dentes um rolo volumoso
Tu, potência maior da Natureza,
O deixaste vencer as águas bravas,
Aplacando das ondas a braveza...
E que, se o não sabias, suspeitavas
Que era a glória da gente portuguesa
E a tua própria glória que salvavas!
Mas um motivo deve destacar-se em toda a poesia do autor de Lírica: o da plenitude da vida, interpretada pelo lirismo, sem grandes audácias, à feição da época.
Filinto nunca deixou de amar a vida. Era um otimista, e sua poesia, toda tocada de claridades, no-lo documenta. Amava a natureza e, em certos instantes, abandonava o estro à pura contemplação da paisagem, onde o seu espírito bom se sentia à vontade, numa espécie de panteísmo reconhecido à sabedoria do Criador.
Em 1934 experimenta o golpe que mais o terá ferido. Morre-lhe a esposa amantíssima, a grande musa que o inspirou, tantas vezes, durante a vida.
A sua dignidade se revela, então, na própria forma de sofrer. A morte de D. Júlia lhe arranca da alma novos e sentidos cantos, porém esses cantos são agora guardados para si e para os seus íntimos. Moço, abrira ao grande público as páginas mais íntimas da existência lírica e amorosa; distribuía com todos a alegria de ser feliz. Precisava a todos contar a sua história pessoal, entremeada de uma ventura quase dionisíaca. Assaltado, agora, pela amargura, defende a grandeza da sua dor moral, mantendo-a em recato e transformando-a – como demonstra em D. Júlia, livro de circulação restrita – em culto à memória daquela que fora, para ele, “a única mulher entre as mulheres”.
...........................................................
E eu cri, da Vida, na ventura imensa.
Mas veio a Morte e entrou no nosso abrigo
E num momento me levou contigo
A última luz, a derradeira crença.
Em suma, não me cabe esboçar neste discurso uma explicação do fundamento histórico e cultural da poesia de que, num Brasil apenas ensaiando a vida republicana, foi Filinto de Almeida um dos representantes mais insignes. Desejaria, contudo, ponderar que, embora tolhido por várias limitações que o enquadramento histórico justifica, ele soube, desde o início, trilhar o verdadeiro caminho da nossa Poesia, ainda por libertar-se de tantas superstições formais, que lhe imprimiam o cunho de uma imitação passiva do estrangeiro.
Nem lhe faltou, já em nossos dias, na comemoração do cinqüentenário da Lírica, este louvor exaltado de Martins Fontes:
Portugal e o Brasil tal homenagem
te deviam. Porém, não me contenta
este louvor, tão-pouco representa
o que, em verdade, és tu, pela linhagem.
Festejamos-te a “Lírica”, as cinqüenta
rosas que nimbam a sagrada imagem
da linda eleita de quem foste pajem,
da noiva eterna que o teu nome ostenta.
Que São Luís de Camões as sobre-humanas
bênçãos te dê, perpetuamente puras,
Ao canglorar de trompas e campanas.
Mostra a ti, Mestre-amigo, nas alturas!
Glória a ti, que concentras e que irmanas,
Poeta imortal, duas literaturas!
Filinto fez versos até os últimos instantes de sua vida. Abatido por longa e insidiosa enfermidade, nunca perdeu o contado com os amigos e nunca a memória o traiu. Morreu serenamente, tendo a morte dos justos, pois, sem professar declaradamente a doutrina de Cristo, cumpriu o seu postulado fundamental, amando o próximo. Foi e se conservou até o fim um poeta “à antiga”. Mas um poeta profundamente sincero e verdadeiro para consigo mesmo.
O ROMANCJSTA DE A CASA VERDE
Filinto de Almeida não se limitou à prática do Jornalismo, da Poesia ou do Teatro. Foi, também, romancista. E o foi quando, em associação com a esposa, D. Júlia Lopes de Almeida, escreveu A Casa Verde. Escrito em 1896, esse romance, longe, como tantos outros, de perder a sua seiva sob a ação destruidora do tempo, reveste, ainda agora, aspectos de incontestável atualidade, tanto que, há pouco, um editor paulista o reimprimiu, com expressivo sucesso de livraria e de público.
Não é novidade a produção de livros em colaboração resistir à passagem dos anos. Os irmãos Goncourt constituem um exemplo do quanto pode ser fecunda essa literatura a duas penas, como o seria, mais tarde, a dos irmãos Tharaud. Mas o que torna excepcional o romance A Casa Verde é o fato de ter sido escrito, a um tempo, por marido e mulher, por um casal que sempre viveu na mais perfeita comunhão espiritual. Esse fato deve ser proclamado pela sua expressiva raridade. Nas letras portuguesas, acredito ser um caso singular. E o que o torna mais singular: os autores conservaram sempre um perfeito entendimento no trato dos personagens. A Filinto, parece ter sido atribuída a parte das situações predominantemente resolúveis à luz da psicologia masculina e o desenho das figuras em que o conhecimento da vida é menos produto da intuição divinatória. Esta é típica do chamado sexo frágil. A suave e meiga companheira do nosso poeta deverá ter cabido a análise de todas aquelas passagens romanescas em que a intuição feminina, par droit de conquête, é chamada a depor.
Não vos direi do enredo de A Casa Verde, de vosso velho conhecimento. Apraz-me, contudo, recordar que esse romance em sua despretensão constitui belo documentário de certo estilo de nossa vida social, que o chamado progresso vem implacavelmente aniquilando.
O TEATRÓLOGO
Mas à inteligência polimorfa de Filinto de Almeida não deveriam permanecer, como uma tentação distante, as seduções da dramaturgia. No Rio da época, ainda colonial, sob tantos aspectos, os espetáculos teatrais eram dos mais fascinantes centros de interesse da vida urbana. E, como não podia deixar de ser, o gênero em voga, de modo geral era a comédia de costumes. Aí, sob a aparência inocente de apenas divertir uma platéia disposta ao riso fácil, diante da exibição desses pequeninos ridículos de que se tece a vida social, o autor dispunha, às vezes, de poderoso instrumento de análise dos valores da comunidade, com o intuito, ora moralizante, ora simplesmente humorístico. Quando alguém, com vagares suficientes, se dispuser a escrever uma interpretação crítica e política de nosso teatro de costumes, há de encontrar nessas peças, erroneamente consideradas “ligeiras”, mais de um passo em uma situação psicológica ou uma observação imprevista, que encerram análise pouco desdenhável da evolução de nossas instituições culturais principalmente daquelas que o Segundo Reinado legou à República nascente. Quanto aos dias de hoje, nesse trabalho de compreensão de nosso teatro, há de avultar a obra variada e inteligente de Viriato Correia, a quem deve a arte cênica nacional singulares momentos de beleza.
Filinto de Almeida contribuiu para o teatro brasileiro com peças originais e como tradutor. Dos autores estrangeiros cujas obras, em colaboração com o seu inseparável amigo Valentim Magalhães, traduziu para a nossa língua, suas preferências se dirigiram para o dramaturgo espanhol Echegaray, esse complexo Echegaray, que dividia os seus pendores intelectuais entre o mundo dos números, como engenheiro e professor de matemática pura e aplicada, e o mundo estranho e fascinante da imaginação artística.
É bem certo que, hoje, o nome de Echegaray não desperta, como antigamente, as memórias e os entusiasmos de muitos. A arte teatral, pelo menos a que encontra maior ressonância na apreciação das elites, sofreu uma transformação tão grande, que é difícil, se não impossível, encontrar qualquer relação de semelhança entre as ásperas dissociações psicológicas de um Pirandello ou o simbolismo carregado de intenções mágicas de um O’Neill e a arte de Echegaray.
Mas, como dissemos, a atividade de Filinto não se limitou à tradução. Foi também um autor original, e é possível afirmar que era dotado de um senso bem agudo dos valores da sociedade em que vivia. Comprazia-se, não raramente, nas suas fabulações, em tocá-las de sutis malícias...
Vindo para o Brasil ainda criança, e desde logo, como na advertência bíblica, obrigado a ganhar o pão com o suor do próprio rosto, pôs-se a garatujar peças, monólogos, pequenas comédias, que encenava, depois, principalmente aos domingos, nos teatros cariocas. Narram os conhecedores da história do teatro brasileiro que Filinto chegou a ser, enquanto autor, a figura mais importante daquele grupo de rapazes que representavam comédias para o enlevo das famílias cariocas, naqueles pequenos teatros do Rio ainda não de todo contaminados pelo espírito diabolicamente frascário dos vaudevilles franceses, que tanta sedução e tamanho horror punham na alma jovial, mas policiada da cidade.
Das peças que deixou, é lícito recordar: O defunto, Amostra de Sogra e a revista Mulher-Homem. Os próprios títulos constituem o melhor comentário ao gênero versado. Deles deflui, natural e lógica, uma evidente intenção satírica.
Em Mulher-homem se esboça, com agilidade de traços, uma crítica àquelas mulheres dotadas de masculinidade de tal modo agitada, que para explicá-las, do ponto de vista do comportamento social, os biólogos se têm visto na contingência de recorrer a teorias de uma engenhosidade quase feminina.
O Defunto é uma peça em que andam de permeio o riso e a lágrima. Nenhuma preocupação essencial diante do fato da morte em si mesma, como uma espécie de porta que se abre para o mistério. O Defunto será apenas alguém que, tendo deixado de viver, nem por isso deixa de ter uma influência sobre os vivos, sendo sua lembrança invocada a todo instante pela viúva, em defesa de uma escolha para novos esponsais.
E Amostra de Sogra é, como as outras, uma comédia de intenções satíricas, muito ao sabor da época, e em que Filinto, graças, talvez, ao seu trato com o teatro echegarayano, revela, com certo brilho, as qualidades desse gênero de arte: construção sólida, mecânica bem comportada dos detalhes cênicos, e fácil inteligência do tema. Focaliza, na imagem popular da sogra, um personagem que tem feito, em todos os tempos, a delícia das platéias e o desencanto dos genros...
PARADOXO APARENTE
Senhores acadêmicos:
Poderia parecer parodoxal que, espírito mais afeito aos estudos econômicos e sociais, tenha sido escolhido para suceder a um poeta, cujos devaneios se podem afigurar antagônicos com as preocupações de um homem de ciência.
Não me abalanço à explicação da generosa decisão acadêmica. Lembro apenas que há mais de um ponto de contato entre as atividades de um economista e as de um poeta.
Sem me ater a pormenores, permito-me acentuar que ambos, economista e poeta, se confundem no mesmo anseio de conhecer, são sacerdotes da mesma religião e daquela “alegria de compreender” de que o gênio de Leonardo da Vinci dizia ser “o mais nobre dos prazeres”. Um, para a sublime exaltação do espírito, se desvelará com as chamas que ardem na seara poética. O outro se empolgará com as frias abstrações dos números e das estatísticas, emprestando-lhes, com a mesma inquietação, o calor de sua paixão de cientista.
O poeta não tem, como o homem de ciência, o oficio de pensar o mundo, mas o de repensá-lo, em moldes de um lirismo ideal e sonhador. O cientista é mais humilde e objetivo. Aceita a estrutura das coisas e procura conhecê-las para torná-las mais accessíveis ao pragmatismo das formas de convivência social. A missão de um é repensar criticamente uma realidade, cujo sentido derradeiro a linguagem e a sintaxe comuns são incapazes de traduzir. O outro, o cientista, habituado às flutuações de todas as relatividades, contenta-se com isolar determinados fragmentos dessa realidade cambiante e esquiva, para que possa o homem, compreendendo-os, extrair deles elementos que lhe tornem menos áspera a vida e menos opressivo o seu sentimento de desamparo no mundo.
Um e outro, porém, prisioneiros da vida, aspiram ao conhecimento puro. Um e outro indagarão dos seus mistérios e do sentido da história. As respostas que oferecem diferem qualitativamente, mas não em sua substância. O poeta dirá de seu universo povoado de criações metafísicas, onde o homem se pode perder, porque a luz de sua razão lógica é pequena demais para devassar as sombras absorventes do cosmos. O cientista aludirá também à fragilidade do destino humano, às suas perplexidades diante de tantos problemas que lhe excitam a inteligência. Mas a sua mensagem será tocada daquela ânsia de conhecer, que não abandona o homem. O Homem, que, no conceito do filósofo, sabe ser a vida uma litania de memento mori, mas sente também, para que haja vida, a necessidade de enfrentar os impassíveis desafios do destino.
Aliás, tanto têm as ciências sociais e econômicas de poético, quanto a poesia de especificamente científico. Quando, há anos, Paul Valéry inaugurou, na Sorbonne, o seu curso de poética, teve ocasião de aturdir artistas demasiadamente conservadores com a demonstração de que um poema pode ser estruturado com a previsibilidade própria da experiência cientifica ortodoxa. Vale ainda aqui rememorar o exemplo ilustre de Poe, cujas teorias sobre a mecânica da composição iriam influir sensivelmente na obra desse outro grande cientista da poesia que foi Mallarmé.
Penso, por isso, que me devo sentir à vontade, como estudioso da Sociologia e das disciplinas econômicas, para suceder, nesta Casa, a um poeta. E se não fora, acaso, convincente o argumento invocado, ponderaria a críticos mais exigentes que Filinto de Almeida foi também uma inteligência afeiçoada aos assuntos econômicos, a que, é certo, não consagrou livro, mas com os quais se preocupou ao tempo em que, moço e pobre, fora obrigado a exercer atividades comerciais, e, mais tarde, como jornalista, debatendo questões ligadas à economia da época. Na vida de Filinto, o comércio tourt court antecederia o seu mais íntimo comércio com as musas.
A própria Academia nos dá exemplo de que, às vezes, se compraz no jogo de contradições interessantes, elegendo médicos, engenheiros e juristas, de incontestável mérito literário, para a substituição de valores que se dedicaram a atividades intelectuais completamente diversas.
Nem sempre se dá ocaso das Cadeiras 15 e 39. Na primeira, de que é patrono Gonçalves Dias, o nosso insigne poeta Guilherme de Almeida sucedeu a Olavo Bilac e Amadeu Amaral; na segunda, um grande mestre da nossa História, como Rodolfo Garcia, substitui outros historiadores como Oliveira Lima, Alberto de Faria e Rocha Pombo, tendo como patrono um Varnhagen. O mais freqüente, sem nenhuma idéia de confronto, é um Osvaldo Cruz substituindo Raimundo Correia e um Oliveira Viana sucedendo a Alberto de Oliveira.
Mas não cabe alinhar exemplos. Cumpre galhardamente esta Casa ilustre a sua dignificante função de inspiradora e guardiã da Cultura brasileira, chamando a si as expressões que reputa mais dignas de representar o pensamento nacional, sem o exclusivismo de mau gosto de considerar homens de espírito apenas aqueles que fazem das belas letras a finalidade única das suas cogitações. Com essa atitude, mostra ela que os padrões de cultura no Brasil já podem ser considerados suficientemente complexos e diferenciados para que ao mais alto cenáculo cultural do país tenham também acesso aqueles que, não sendo propriamente literatos, servem, cada qual na esfera de sua especialização, à causa da emancipação da inteligência brasileira. Servem, portanto, à causa da Pátria, porque como nos ensinou aquele Mefistófeles a serviço da Igreja, que foi Chesterton, “Pátria é espírito” e só o espírito é imortal.
O PATRONO DA CADEIRA 3
Por que teria escolhido Filinto o nome de Artur de Oliveira para patrono da cadeira que iria fundar?
Não quero terminar sem alusão a esse fato, mais significativo do que se pensa.
Realmente, do grupo de intelectuais que formava a boemia literária do Rio de Janeiro, no último quartel do século passado, foi Artur de Oliveira, por algum tempo, uma figura central. Digo, por algum tempo, porque morreu aos 30 anos. Dos depoimentos de todos os que com ele privaram, verifica-se que era, sem dúvida, um dos mais poderosos causeurs daquela época, empolgando e dominando a conversação. Educado em Paris, onde conquistou, pelo seu talento, ilustres amizades entre escritores de reputação mundial, possuía Artur de Oliveira, a par de sólida cultura, uma riqueza de imaginação que levou Machado de Assis a classificá-lo como “saco de espantos”.
Afrânio Peixoto, em prefácio à obra em que Vieira Souto reuniu os dados biográficos de Artur de Oliveira, mostra que o seu prestígio era fundado, exclusivamente, na arte de conversar, sob a luz intensa da sua palavra e da sua variada erudição.
Não será, acredito, mera conjectura, ver dois motivos na escolha: o caráter afetivo de Filinto, para quem a arte era uma “ciência do coração”, e o dom de “saber conversar”, que identifica perfeitamente o patrono com o fundador. O poeta de Cantos e Cantigas era, também, como todos sabemos, um causeur encantador, tão encantador que poderíamos ouvi-lo longas horas, sem dar pela traição do tempo.
“Sócio fundador da Academia”, agora é ele próprio quem o confessa, “escolhi Artur de Oliveira por ser um grande admirador de suas palestras. Lembro-me bem de que, comparecendo à primeira reunião preparatória e dizendo aos colegas o nome do meu patrono, Machado de Assis me abraçou efusivamente.”
FILINTO NA ACADEMIA
Aliás, Filinto não foi só um dos fundadores, uma tradição legítima desta Casa. A sua atividade acadêmica era uma espécie de devoção jamais esmorecida. E que evocativas páginas não nos despertam a sua dedicação à Academia, a sua intransigência a respeito do sigilo do voto – intransigência que o fez passar para o anedotário – e o seu culto à língua, que ele considerava “a mais sonora, a mais rica e, portanto, a mais bela de quantas se originaram do latim”.
A reforma ortográfica teve nele um ardente propugnador. Conta-se mesmo que um dos seus colegas, de ponto de vista contrário, lhe dissera, certa vez, amistosamente:
– Isso de se escrever cavalo com um “1” só dá-me uma triste impressão... Parece-me um cavalo com uma perna só...
– Como é que v. escreve?
– Com dois “ll”.
– Está errado. Devia escrever com quatro. Um para cada pata.
NASCER E RENASCER
Já vos dei notícia do ambiente em que Filinto “nasceu” para o Brasil. Retratei, com a possível fidelidade, a situação de São Paulo, quando marcava, na década inicial do regime republicano, os primeiros e decisivos ímpetos do extraordinário surto do seu progresso.
A essa hora, de tão profundo sentido histórico, Filinto atirou-se, como participante, às lutas e à ação. Desde logo demonstrava ele a verdade de que, às vezes, o decisivo não será o lugar onde se nasce, mas a terra onde renascemos. Sua adaptação ao novo meio se operava com os bons presságios de um legítimo renascimento de espírito e de coração. É que, pelo fato de ser luso, nem um instante sequer teria motivos para deixar de ser brasileiro.
Hoje, depois das sábias investigações sociológicas de Gilberto Freyre, sabemos perfeitamente que se desejarmos preservar aquilo que a nossa civilização possui de mais original e íntimo, faz-se mister, assimilando embora os valores de outras correntes culturais, defender a cultura luso-brasileira, enriquecida por sua adaptação nos trópicos. Ela é que nos proporciona a chave da interpretação de nossos mais recônditos anseios de povo e de Nação.
Filinto de Almeida assume, para nós, as peculiaridades felizes de um símbolo de duas culturas que se interpenetram e se trocam valores numa dinâmica histórica tecida de harmonias que se completam.
Português, mas brasileiro; ou melhor, e mais expressivamente, brasileiro, porque português.
Ainda mais: o único membro efetivo desta Casa ilustre que dela fez parte sem ser brasileiro de nascença. Mas nós o tivemos como brasileiro. Tanto assim que foi, como vimos, um dos mais ativos deputados à Assembléia Republicana de São Paulo, a que serviu com desassombro de atitudes, numa exata compreensão dos verdadeiros interesses nacionais, situando-se na categoria de quantos melhor serviram o Brasil e São Paulo na esplêndida alvorada da República.
O MEU PARANINFO
Senhores acadêmicos:
Para completar a graça que me concedeis, quisestes que eu fosse aqui recebido, em vosso nome, pela nobre e inconfundível figura do Sr. José Carlos de Macedo Soares, ornamento desta Casa e sentinela vigilante das suas glórias.
Justifica-se a minha satisfação porque, além do velho afeto que nos une e que se não exaure, é ele, sem favor, uma das mais altas expressões desta Companhia. Escritor ilustre, está o seu nome definitivamente ligado à vida do País, na Pedagogia, na Economia, na Sociologia e na História.
Dotado de largo espírito público e de raros sentimentos filantrópicos, esses atributos se têm feito sentir por todo o Brasil. Como estadista, seu nome transcendeu nossas fronteiras, tendo sido consagrado como Embaixador da Paz e Cidadão da América.
Neste instante de tão amargas e intransponíveis dificuldades para a gestão da coisa pública, dirige ele com superioridade e exemplar espírito de justiça os destinos do grande Estado de São Paulo.
A ACADEMIA EM CINQÜENTA ANOS
Outra alegria, além dessa, me assalta o espírito, em hora de tamanha significação para a minha vida.
Cabe-me a honra, que reputo insigne, de aqui ingressar no ano em que a Casa de Machado de Assis completa o seu cinqüentenário de atividades fecundas, prestigiada, cada vez mais, pela simpatia que lhe consagram as nossas elites e pelo respeito que lhe vota, merecidamente, o povo brasileiro.
Há, entretanto, um profundo contraste entre a ambiência de 1896, quando foi fundada a Academia, e a que se fixa no drama espiritual de 1946. São duas épocas distintas, quase se poderia dizer, dois mundos que se desconhecem.
Em 1896, apesar das agitações revolucionárias decorrentes da transformação de nosso regime político, o Brasil ainda podia se embeber das mansidões de alma e dos ceticismos de espírito que, aos nossos olhos de homens vividos, caracterizam a resposta sentimental dos brasileiros ao crepúsculo do último século.
E hoje? Hoje aí estão as apreensões que o mundo moderno oferece aos homens de pensamento. Hoje vemos que se as várias culturas possuem, na sua acepção sociológica, a mesma finalidade de propósitos, a melhor utilização da natureza para assegurar as melhores condições de vida ao homem, diferem, profundamente, quanto aos meios e quanto às fórmulas para alcançar os seus objetivos.
Assim, quanto mais atrasada a cultura de um povo, maiores os seus apelos ao ignoto, para dirimir suas dificuldades. As superstições, os amuletos, as evocações aos deuses, as imprecações aos demônios, a adoração às forças da natureza, substituíram, no passado, muitos dos preceitos que hoje a ciência aponta, com precisão e presteza, para a solução de um sem número de problemas de nossa vida quotidiana.
O reconhecimento generalizado dessas circunstâncias conduziu os povos de culturas mais avançadas a uma demasiada confiança na Ciência, a um envaidecimento excessivo dos homens, levando-os à crença de que só por ela, com os conhecimentos que prodigaliza, seria a humanidade capaz de resolver satisfatoriamente as questões básicas que mais a preocupam. Alguns, obliterados pelas conquistas já realizadas, chegam a negar Deus, admitindo a forma simplista: Deus é igual à nossa ignorância.
A fé exagerada nos resultados do que os norte-americanos chamam de educação, nela compreendendo a sistematização de todos os conhecimentos, a pesquisa de novos e a sua aplicação ao serviço do homem, levou-os ao fetichismo da iniciativa privada, à ampliação do conceito de liberdade e ao fortalecimento dos postulados do individualismo.
A educação, assim compreendida, seria a superfórmula, capaz de assegurar uma constante e permanente elevação do padrão cultural do povo. O homem norte-americano, educado dentro de sua grande democracia, deveria então encontrar, no livre debate das idéias, na livre iniciativa das empresas, a justa solução para a totalidade de seus problemas.
Repetem-se, porém, às nossas vistas, os ensinamentos da velha filosofia da Torre de Babel...
Não há doutrina humana – é o que vemos hoje e sempre – cuja aplicação se possa verificar indefinida e sempre harmoniosamente, dentro do processo da evolução social. Surgem, com o tempo, e inexoravelmente, fatores de desagregação e de desajustamento. É que não se compuseram em justo equilíbrio os elementos de ordem científica, moral, social, psicológica e política. E verificado o predomínio exclusivo de um ou de apenas alguns desses elementos, dá-se, forçosamente, o desequilíbrio na sociedade.
A exclusiva preocupação com o espiritual arrastou o homem do continente europeu ao misticismo da Idade Média, às intermináveis procissões religiosas e às fugas para os conventos, em completo desacordo com a sua natureza e expondo-o ao domínio do guerreiro bárbaro.
A absorvente propensão materialista nos conduz ao coletivismo, com todos os seus horrores, e às técnicas fascistas, com o seu irritante desprezo pela liberdade e pela dignidade humanas.
A exaltação individualista nos conduz a uma hipertrofia da sua própria destruição.
AS DIFICULDADES DO MUNDO MODERNO
Atingido tão elevado grau de progresso, a cultura norte-americana – relevai-me o insistir no exemplo que mais de perto nos interessa – está a exigir o reajustamento de todos os seus valores, para uma indispensável harmonia social. E esse reajustamento, a nosso ver, pode ser alcançado sem prejuízo da verdadeira natureza do homem, dos seus anseios de ordem moral e espiritual, para que possam ser atingidos, sob a égide da justiça social, a paz necessária e o maior bem estar distribuído pelo maior número.
Impõe-se, assim, hoje e ainda, acreditamos, um planejamento econômico e social dentro dos próprios Estados Unidos, para que, sob a inspiração dos postulados fundamentais da democracia cristã, possa ali ser retomado o ritmo de progresso que todos almejamos para essa nação amiga. Caso contrário, assistiremos, como conseqüência, a eclosão de dolorosas crises específicas e o estranho espetáculo de uma nação a se martirizar pelos próprios instrumentos criados para o impulso da sua grandeza, que sem a constante subordinação à idéia de Deus nunca se poderá harmoniosamente afirmar.
Aliás, na Conferência de Yalta, Roosevelt, Churchill e Stalin chegaram à conclusão de que se impunha um planejamento mundial, no após-guerra, dentro do qual e sob a inspiração dos grandes princípios enunciados na Carta do Atlântico, pudessem ser reduzidos ao mínimo os impasses de interesses que inexoravelmente haveriam de surgir com o termo do conflito.
Na avançada cultura norte-americana, como na modesta cultura brasileira, não será, pois, pelo fetichismo, em diretrizes doutrinárias de ordem meramente política, que encontraremos soluções para os problemas das duas civilizações.
Já o povo inglês, o que talvez possua, em mais alto grau, o sentimento de uma consciência coletiva de suas verdadeiras necessidades e de sua posição internacional, nos dá um caminho diferente, com as grandes reformas que está empreendendo. O trato das questões sociais assume a vanguarda, em relação às preocupações de ordem econômica ou imperialista, que durante tanto tempo orientaram predominantemente a política da Inglaterra.
É assim, pelo reajustamento dos vários fatores que lhe fundamentam a organização social, que a Inglaterra garante a sobrevivência do seu povo, assegurando-lhe um máximo de bem-estar, mantendo as suas tradições de pioneira, à hora em que o mundo se debate entre a inquietação e a incerteza.
O BRASIL DE 1946
Estará, talvez, obediente ao seu sentido predestinatório, o espírito do povo inglês presente aos ensinamentos da História, tão bem fixados nas palavras de Ernesto Renan, quando observava: “Pela difusão de uma civilização superior, houve, em vários povos da antiguidade, mais cultura e mais liberdade individual; essas conquistas, porém, sem as necessárias precauções, acarretaram a dissolução da disciplina social, a incapacidade de defesa e a queda dessa civilização, sob os golpes dos bárbaros”. Pois não foi, ainda há pouco, o que aconteceu à civilizada e martirizada França?
Diante, pois, da lição moderna, e em relação ao Brasil, não seria demais – e este é o ponto a que desejava chegar – que os nossos homens cultos se procurassem orientar no sentido de, continuamente, somarem todos os esforços, em benefício do País, melhor e mais sistematicamente se conjugando para um maior aproveitamento dos esclarecimentos de que ele tanto precisa.
Num mundo trabalhado por tantos agentes de dissolução dos valores humanos, cresce e avulta o nobre papel de uma Casa como esta, que, salvaguardando o que o espírito possui de mais digno e mais útil ao enriquecimento do patrimônio intelectual do Brasil, realiza a preservação da própria alma da nacionalidade.
Nestes cinqüenta anos de trabalho, a Academia Brasileira de Letras, sem alarde nem vanglórias inúteis, tem sido, para todos os brasileiros, um foco luminoso de espiritualidade, dignificante expressão do pensamento nacional, sentindo e amando o Brasil em termos de inquebrantável união e de inflexível fraternidade entre os seus filhos.
JURAMENTO DE FIDELIDADE
E é assim, sob a sagrada invocação desse passado de glórias e desses objetivos, para um futuro de glórias ainda maiores, que eu, comovidamente, transponho os umbrais desta Casa, num solene juramento de fidelidade a essas tradições e a esses anseios, sob o compromisso de que podereis, para isso, senhores acadêmicos, contar com a constante sinceridade do meu concurso!