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Fico com os dois

 

Verissimo chega aos 80 anos como nosso cronista maior, mas isso não é novidade. O que nem todos sabem é que, como amigo, Luis Fernando é ouro também. Os dois, o escritor e o homem, se dão bem e convivem em harmonia, a não ser quando o segundo briga com o primeiro por passar mais tempo diante do computador do que de um bom prato. Fora os excessos de trabalho e de apetite, ambos são muito econômicos — de palavras e gestos, de fala e escrita. Detestam a grandiloquência e a ênfase, e abominam o decorativo — dos enfeites na linguagem à salsinha no prato, esse “supérfluo verde”. Fizemos juntos muitas viagens, e tão bom quanto viajar com Luis Fernando é ler depois o relato de Verissimo. 

Dizem que ele é tímido, lacônico e que por isso se refugia no silêncio. Não acho, e ele também não, porque diz: “eu não sou quieto, sou é muito interrompido”. Do que não gosta mesmo é de jogar conversa fora. Sua parcimônia não é por sovinice ou por estilo, mas porque é do seu feitio ficar vendo, ouvindo, prestando atenção para mais tarde devolver tudo em forma de crônicas antológicas, pois percebe o que ninguém percebeu: os detalhes, os pequenos gestos, os acontecimentos menores, as miudezas. Lembra um colega seu, o cronista Machado de Assis, que afirmava: “gosto de catar o mínimo e o escondido”. 

Onde parece não haver nada a dizer é que Verissimo se revela mais criativo. Com uma pequena notícia sobre a descoberta de que na verdade o ovo não faz mal à saúde, ele é capaz de construir em 30 linhas uma obra-prima, cobrando indenização pelo tempo que foi proibido de comer claras e gemas. Sua genialidade não se contenta apenas com o que observa; ele recria e inventa. Muito do que se encontra de mais divertido na comédia de nossa vida pública e privada foi inventado por ele, ou poderia ter sido. É comum, diante de uma cena real do dia a dia, a gente dizer: “isso é coisa do Verissimo”. O que recolhe do cotidiano devolve enriquecido. Está para nascer quem conheça mais a fundo os mistérios do ser urbano — suas zonas de sombra, seus recônditos, infidelidades, hipocrisias, mentiras, alegrias, grandezas e pequenas patifarias.

Tudo em Verissimo — a emoção, o lirismo, o drama e até a erudição de quem leu, viu, ouviu e assistiu do bom e do melhor — é contido e temperado pela autoironia e por um humor sem rancor, fino, generoso e irresistível. Trata-se de um caso raro de humorista que pode ser ao mesmo tempo engraçado e sério, leve e profundo. Insuperável criador de situações e de tipos — Ed Mort, O analista de Bagé, Dora Avante, As cobras, A velhinha de Taubaté — ele é também uma adorável criatura.

Por isso é que, entre Verissimo e Luis Fernando, fico com os dois.

O Globo, 24/09/2016