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O legado paralímpico

 

Se a pretensão dos organizadores era realizar uma Paralimpíada que rivalizasse em emoção com a Olimpíada, eles obtiveram êxito pelo menos na cerimônia de abertura, obrigandonos a rever nossos conceitos, ou preconceitos, em relação à deficiência, ainda carregados de discriminação. Foi, por exemplo, difícil pensar em deficiência física como defeito que incapacita vendo a deslumbrante medalhista americana Amy Purdy, biamputada aos 19 anos (hoje com 36) como consequência de uma meningite, dançando e até sambando magnificamente sobre duas próteses em lugar dos pés.

A sua mensagem foi a possível “integração” com a tecnologia e o uso desta a seu favor. Definida pelo escritor e cadeirante Marcelo Rubens Paiva, um dos idealizadores do espetáculo, como “a Gisele paralímpica”, a apresentação dessa também modelo, atriz, designer de moda não ficou devendo em beleza e elegância, muito menos em eficiência artística, à da nossa modelo universal. As duas protagonizaram dois dos momentos mais graciosos desses nossos festejos esportivos.

Por essas e outras é que entendi quando li a declaração de uma paratleta recusando, provavelmente em nome de toda a categoria, os sentimentos de “pena”, de “coitadinho”, por mais bem intencionados que possam ser, pois escondem embutida uma boa dose de complexo de superioridade. Como já observou o nadador Clodoaldo Francisco da Silva, “a pessoa com deficiência não necessita de piedade, mas de oportunidade”.

Para quem luta pela inclusão social através do esporte, essa visão piedosa reforça o paradigma médico que trata o “paciente” como um ser incapaz de exercer sua autonomia. E também lembra o critério eugênico do nazismo que, num extremo insano, levou a um programa de extermínio dos que não contribuiriam para o “aprimoramento genético” da espécie humana, como judeus, negros, ciganos e, também, portadores de “defeitos”.

O Brasil avançou e, graças a uma prática politicamente correta que combate a linguagem do preconceito, não permite mais que se refira a alguém como “defeituoso” ou, pior, “aleijado”, como no meu tempo. Mas ainda falta muito para que o mesmo país, que assiste com admiração às proezas dos atletas paralímpicos, trate com respeito 45 milhões de cidadãos considerados deficientes físicos.

Eles enfrentam diariamente as dificuldades de nossas cidades, que não lhes oferecem as mínimas condi- ções de acessibilidade e locomoção, transformando o seu dia a dia em corridas com obstáculos sem medalhas. Esse respeito como direito seria o melhor legado da Paralimpíada 2016 à cidadania.

O Globo, 10/09/2016