Como sou do tempo em que golpe se dava com tanques nas ruas, prisões e censura, custei a entender que havia outro tipo mais moderno, sem qualquer aparato militar, e que se chamava “golpe parlamentar”. Quem me ensinou isso foi sua autodeclarada vítima, a ex-presidente Dilma Rousseff. Confesso que as 14 horas que ela passou enfrentando seus algozes no Senado me fizeram esquecer seus malfeitos e chegaram a me comover, principalmente quando reiterava suas juras de inocência. Por isso, minha surpresa ao descobrir que havia outro tipo de golpe — genuinamente brasileiro, uma espécie de “golpe jabuticaba”, coroado por um acordão que envolveria acusadores, a acusada e até o magistrado que presidiu o processo.
Quem descreveu com todas as letras, sem desmentido, esse cambalacho para “atenuar a punição de Dilma” foi o colunista Josias de Souza, na “Folha”, para quem a manobra regimental “foi negociada em segredo por parlamentares leais à presidente cassada com o mandarim do Senado Renan Calheiros”. E mais: “Embora chame o impeachment de ‘golpe’, Dilma concordou com o acerto que lhe assegurou o direito de assumir cargo público mesmo depois de deposta. Lula avalizou a articulação. Informado com antecedência, o presidente do STF, Ricardo Lewandowski (...), deferiu o fatiamento da votação, em desacordo com o que prevê a Constituição”.
Não me escandalizei vendo Renan brandindo um exemplar dessa mesma Constituição, nem ouvindo Levandowski tentando justificar o que ia permitir ser feito. Mas não pude deixar de sentir saudade daquela jovem que, outrora altiva e resistente, foi incapaz de ceder à ditadura militar, nem para aceitar qualquer gesto benevolente que a livrasse da tortura. O discurso comprometedor da senadora Kátia Abreu defendendo o polêmico fatiamento, constrangera ao apelar à solidariedade dos colegas com o argumento de que sua amiga ia “se aposentar em breve recebendo pouco mais de R$ 5 mil mensais”. Fiquei lembrando recentes afirmações da ex-presidente como a que fez logo após o impeachment: “Ouçam bem: eles pensam que nos venceram, mas estão enganados. Sei que todos vamos lutar. Haverá contra eles a mais firme, incansável e enérgica oposição que um governo golpista pode sofrer.”
A “enérgica oposição” que a ex-presidente promete vai ter uma certa dificuldade em explicar por que não recusou o favor que o “segundo golpe” lhe concedeu magnanimamente para, entre outros benefícios, complementar sua aposentadoria. Sem falar que, se o STF não anular a medida, Dilma corre o risco de aparecer na indesejável companhia de Eduardo Cunha em algum panteon pouco edificante da história. Sua biografia não merece.