Dilma Rousseff pode ser nomeada para qualquer cargo público do país, mas não pode ser a presidente da República. Poderia também ter sido, ao contrário, condenada à inabilitação para qualquer cargo público, mas continuar sendo Presidente da República.
Esse despautério deveu-se a um acordo implícito entre o presidente do Senado Renan Calheiros e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski que acabou dando um bônus à presidente definitivamente afastada Dilma Rousseff, passando por cima da definição expressa da Constituição, mostrando cabalmente como nossas leis não apenas podem colidir umas com as outras, como basta uma interpretação para que seus sentidos sejam distorcidos em benefício de alguém ou algum grupo.
Já há quem chame a gambiarra de "pedalada constitucional". Mas não é apenas Dilma que se beneficia dessa benemerência, e há indícios de que esse acordo entre Calheiros e Lewandowski pode favorecer também os políticos que respondem a processos, como Renan Calheiros no STF, ou o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que buscarão certamente isonomia de tratamento.
Não importa que, pela legislação a cassação de mandatos parlamentares os transforme naturalmente em candidatos inelegíveis. A esta altura, não há mais garantia constitucional, pois interpretações podem mudar até mesmo a Constituição.
Foi o que aconteceu ontem na sessão do Senado que decidiu pelo impedimento da presidente Dilma mas, surpreendentemente, não aprovou sua inabilitação por oito anos para o exercício de função pública, como está expressamente definido no artigo 52 da Constituição de 1988.
Também a lei do impeachment, de 1950, define que os crimes de responsabilidade são passíveis de pena de perda de cargo, também com inabilitação para a função pública. Para conseguir a mágica de ultrapassar a Constituição e a legislação em vigor, o Senado usou seu regimento interno, também interpretado de maneira ampliada pelo senador Randolfe Rodrigues, da REDE.
O presidente da sessão, ministro Lewandowski, revelando afinal sua benevolência com a “presidenta”, acatou a interpretação que transformou o documento de pronúncia em uma “proposição”, que é sujeita a destaques de votação. Sendo assim, foi vitoriosa a proposta de separar do texto principal a punição acessória de inabilitação, que acabou sendo recusada.
A agora ex-presidente Dilma Rousseff, se quiser, poderá se candidatar a qualquer cargo público, pois a Lei da Ficha Limpa não se refere ao Presidente da República quando trata da inelegibilidade, ao contrário do que faz com governadores, prefeitos, deputados, senadores.
Só cabe restrição de ordem eleitoral fixada pela Ficha Limpa se o Presidente da República renunciar. Na lei 64, que acabou se transformando na Lei de Ficha Limpa, havia a possibilidade de atingir os que tivessem processo transitado em julgado, mas na redação final esse ponto desapareceu, alegadamente porque a Constituição já tratava do assunto.
Mas há quem desconfie que uma mão de gato retirou da lei essa punição para proteger presidentes. Há na lei de Ficha Limpa vários pontos que podem atingir a presidente impedida, mas sempre de maneira indireta. A alínea "e" do artigo 1 se refere aos “que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 1. “contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público”.
Além disso, não se deve esquecer o mandamento da alínea "d", que se refere às contas eventualmente rejeitadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), bem como que basta o Congresso rejeitar as suas contas para ela ser inelegível por ainda outro item.
Tudo indica que ainda teremos muitos capítulos nessa novela, mas esse acordo feito nos bastidores, que necessitou de uma aliança entre parte do PMDB com o PT para se realizar, minou a confiança entre as principais forças políticas da nova base aliada.
O PSDB, num primeiro momento, rebelou-se, mas continuará na base governista até que fique explícito o objetivo do novo governo. Se for para fazer as reformas, os tucanos vão junto. Vamos ter uma prova brevemente: o PSDB pretende obstruir as sessões para não aprovar o aumento dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que seria um ponto fundamental do acordo entre Calheiros e Lewandowski.