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Agora é por dinheiro

 

Dez anos depois, Passarinho se insurgia: ‘Sinto-me entre revoltado e indignado quando vejo signatários do AI-5 posando hoje de madalenas arrependidas’

Alguns sobrevivem na memória coletiva mais pelo que disseram do que pelo que fizeram. É o caso de Jarbas Passarinho, que morreu domingo, aos 96 anos. Senador por três mandatos, governador do Pará, ministro do Trabalho, da Educação, da Previdência Social em quase todos os gabinetes militares, e da Justiça, de Fernando Collor, tornou-se tristemente famoso por uma frase — “Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência” — pronunciada na sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, em apoio à instauração do AI-5, que cancelou o habeas corpus, impôs rigorosa censura a todos os meios de expressão, disseminou a tortura a presos políticos, fechou o Congresso por tempo indeterminado e autorizou que funcionários públicos fossem cassados, demitidos, transferidos e reformados à vontade do poder.

Naquela 43ª reunião do Conselho de Segurança Nacional, 22 dos 23 ministros presentes praticaram a mesma ação do então ministro do Trabalho. A exceção foi o vice-presidente, Pedro Aleixo, que, além de votar contra, tentou sem sucesso mudar a opinião dos outros conselheiros. Os que disseram “sim” ao que Costa e Silva propunha sabiam que a farsa significava o início de uma ditadura explícita e declarada. Mas foi Passarinho quem teve a franqueza de confessar: “Repugna enveredar pelo caminho da ditadura, (mas) é esta que está diante de nós”. As demais falas da reunião de duas horas, registrada em dois gravadores colocados à vista sobre a mesa (não havia celular), não apresentaram objeções nas suas justificativas de voto, defendendo a medida com pretextos indefensáveis.

Dez anos depois, Passarinho se insurgia: “Sinto-me entre revoltado e indignado quando vejo signatários do AI-5 posando hoje de madalenas arrependidas”. Era mesmo tarde para arrependimentos. Em uma década, o Ato tivera tempo de retirar da vida pública, suspendendo seus direitos políticos, dezenas de senadores, deputados, vereadores, prefeitos. Só do Supremo Tribunal Federal, três ministros foram afastados, o mesmo acontecendo com vários professores universitários. Um deles, Caio Prado Júnior, foi condenado a quatro anos de prisão por uma entrevista a um jornal estudantil. Paralelamente a essa caça, o AI-5 desenvolveu um implacável expurgo na cultura artística. Durante a sua vigência, cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, cem revistas e jornais, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovelas foram censurados.

Passarinho foi estigmatizado pela frase, pagando assim pelo erro cometido por convicção ideológica. Isso não diminui sua culpa histórica, mas o torna mais respeitável do que aqueles que hoje mandam os escrúpulos às favas por convicção fisiológica, por dinheiro.

O Globo, 08/06/2016