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O desfile da crise

 

Não sou nenhum Marcelo de Mello, que publicou uma indispensável antologia comentada de “15 sambas-enredos imortais”, nem Leonardo Bruno, que escreveu um artigo nesta página explicando o “carnaval da crise”. Adoro escolas de samba e durante mais de 40 anos as assisti desfilando, mas estou longe de ser um entendido (meu guru foi sempre o velho amigo Sérgio Cabral). Tudo isso para, com licença deles, cometer uma paradoxal ousadia e afirmar que a crise econômica, que faz tanto mal ao país, é capaz de fazer bem aos desfiles. Para os que acham que estou exagerando, me justifico. O que quero dizer é que a criatividade artística não depende da riqueza dos meios utilizados. Senão, o Brasil não teria produzido o Aleijadinho de esculturas como os 12 Profetas, já que, em vez de mármore, ele dispunha apenas da perecível pedra-sabão. É bom advertir, no entanto, que os artistas geniais o são não por causa da adversidade ou da pobreza, mas apesar delas.

A seleção das obras-primas feita por Marcelo, que começa com “Aquarela brasileira”, de 1964, e termina com “Explode coração”, de 1993, mostra que a imortalidade dessas composições não se deve ao custo, mas à excelência de seus compositores: Silas de Oliveira, do Império Serrano, e Demá Chagas, Bala, Arizão, Celso Trindade e Guaracy, do Salgueiro. Sei que Joãosinho Trinta exaltou a riqueza ao afirmar que “povo gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual”. Mas o seu mais famoso enredo, o mais revolucionário, não foi sobre o luxo, e sim sobre o lixo, “Ratos e urubus”, quando apresentou na avenida personagens sujos e maltrapilhos, além do polêmico “Cristo mendigo”. E, como uma ironia à sua afirmação, o povo gostou tanto quanto os intelectuais.

No seu artigo, Bruno atribui as dificuldades financeiras das escolas nestes últimos anos à mudança de orientação do julgamento, que passou a “privilegiar agremiações com mais dinheiro”, que, assim, podem investir em fantasias e carros luxuosos. Graças a esse modelo excludente, a tradicional Império, por exemplo, que há sete anos tenta voltar ao Grupo Especial, já se acostumou com as injustiças. Basta dizer que o seu clássico “Aquarela brasileira” não ganhou a nota máxima do júri, o que, segundo Marcelo, “mais do que uma avaliação equivocada, foi um escândalo”.

Este ano, as escolas reclamaram da escassez de recursos, pela diminuição dos patrocínios e subvenções. Como a situação deve piorar, elas terão que aprender a economizar e a racionalizar despesas. Mas será preciso também mudar o modelo e a mentalidade dos jurados. O espetáculo visual é bonito de ver, mas o que imortaliza uma escola na Sapucaí, o que lhe garante a posteridade, o que emociona e empolga a arquibancada é o conjunto — a evolução, o desempenho dos passistas, o ritmo da bateria e, sobretudo, um belo samba-enredo.

O Globo, 06/02/2016