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Alice no país dos lixões

 

Em 2012, o aterro foi fechado, uma boa iniciativa com efeito perverso: como não houve inclusão social dos catadores, mais de mil famílias ficaram sem fonte de renda.

Domingo, minha neta de 6 anos foi ao Lixão de Gramacho, em Caxias, levando presentes de Natal para as crianças daquela favela. Seu pai quis lhe dar um choque de realidade, mostrando que existe outro mundo além do país das maravilhas que ela habita. Eles participaram da caravana da ONG Corrente pelo Bem, uma iniciativa do jovem advogado Rodrigo Freire, que costuma trocar a praia por visitas a favelas, asilos, orfanatos, levando alimentos, roupas e brinquedos. Ela resistiu um pouco, alegando que já tinha ido com a escola a uma creche para crianças pobres e, assim, cumprido sua boa ação. Mas acabou cedendo diante da explicação de que a solidariedade com os mais necessitados nunca é demais. Cheguei a pensar em voltar àquele lugar aonde fora nos anos 90 com o deputado Miro Teixeira e Betinho, durante sua campanha contra a fome. Desisti ao constatar que não dispunha mais da disposição física de 20 anos atrás. Na época, o Lixão era o maior aterro sanitário dos 1.700 existentes no país e um dos maiores da América Latina. Ali, homens, mulheres e crianças disputavam com urubus e porcos o seu sustento, recolhendo material reciclável. O que não era lixo era luxo. Aproveitavam até o pó do café que tomavam. Em 2010, o cineasta João Jardim e o artista plástico Vik Muniz fizeram o documentário “Lixo extraordinário”, com catadores que trabalhavam no meio daquelas dez mil toneladas de resíduos que o Rio depositava ali diariamente. Em 2012, o aterro foi fechado, uma boa iniciativa com efeito perverso: como não houve inclusão social dos catadores, mais de mil famílias ficaram sem fonte de renda. Como disse Tião, um incrível personagem do filme, “era onde as pessoas excluídas conseguiam ser incluídas, pelo menos para sobreviver”. Outra dele: “Erradicar por erradicar é a exclusão da exclusão”.

Três anos depois do fechamento oficial do aterro, as condições de vida ali, sob certos aspectos, até pioraram, como constatou a expedição de agora. Além do desemprego e da falta de saneamento básico, cuidados com a saúde, prevenção e moradias dignas (barracos feitos com restos de madeira), há dificuldade em conseguir água potável. Com o fim das fábricas de reciclagem que funcionavam no entorno, os moradores não têm mais como desviar água que os canos levavam para as indústrias. Têm que pagar R$ 200 por galão.

Alice voltou impactada com o que viu durante o dia e preferiu não comentar: “Não quero falar”. Mas reclamou que um garoto lhe pisou o pé. Quando minimizei o incidente — “deve ter sido sem querer” — ela retrucou convicta: “Não, foi com querer”.

Se o pai pensava que lhe daria um choque de realidade, não há dúvida de que conseguiu.

O Globo, 16/12/2015