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Discurso de posse

SENHORES:

Um dos fundadores desta Casa, Valentim Magalhães, cuja memória nesta ocasião me é grato evocar, fez que eu certa vez, cativo de sua insistência, lhe prometesse candidatar-me à primeira vaga que se abrisse na Academia. De ânimo leve, um tanto fascinado, prometi; mas apenas acabara de fazê-lo, tamanhos se me afiguram os óbices por vencer na íngreme subida a que me convidava o amigo, que achei conveniente ir-me logo afeiçoando à idéia de uma evasiva, com qualquer pretexto, no momento oportuno, isto é, no momento crítico. Essa oportunidade, aliás, por efeito e para gáudio da minha intenção secreta, distanciava-se tanto mais quanto ao meu espírito, intimamente dissuadido, repugnava corvejar sobre hipóteses lutuosas. Ao tempo, afinal, à ação imprevista do tempo, o liquidatário de tantas esperanças e tantos compromissos, entreguei a incumbência de desatar mais este e restituir-me à paz de uma abstenção muito avisada e concorde com a minha consciência.

Valentim Magalhães possuía aprimorado, no melhor sentido da expressão, o espírito de camaradagem. Nunca lhe pude ouvir as razões que o induziram a considerar plausível a minha entrada, desde aquela época, para a Academia.  Pessoalmente nunca nos conhecemos. E somente em honra do seu caráter afetivo assinalo a simpatia com que sempre distinguiu o autor que dezenove anos antes estreara nas letras sob os auspícios de sua brilhante nomeada. Outros, tendo-o conhecido de perto, acordam com Euclides da Cunha em atribuir-lhe certo exagero no modo de admirar os talentos da sua e da nova geração, abrangendo no círculo de uma “afabilidade radiante” não só escritores de qualidade, “mas até os mais obscuros escrevedores da província”. Este testemunho satisfaz-me. Provavelmente desses seus hábitos de pródigo, e mais da nossa falta de convivência, proveio não ter ele sentido quanta fantasia lhe invalidava as boas intenções a meu respeito. Latino Coelho, escrevendo com chiste a psicologia dos pretendentes, subordinou-lhes o êxito à condição de terem o necessário estro, sem o qual não haverá mais que a ínfima capacidade de aspirar, quando muito, a ser guarda da alfândega ou escrivão de juízo de paz. Trate-se de emprego ou honraria, essa afinidade dos pretendentes com os poetas em lucubração julgo-a mais que uma agudeza humorística. O portador de grandes ambições tem alguma analogia com os inspirados: vive em um estado agudo da vontade, possuído de um hóspede divino que lhe segreda lisonjas entontecedoras; todas as suas energias, monopolizadas, convergem para aquele ato de criação de que resultará sua própria imagem nobilitada e engrandecida. Mal dos que se deixam contaminar de humildades, ascéticas ou filosóficas, sempre fatais a qualquer espécie, ainda a mais razoável, de ambição.

O tempo, para quem eu, com tão pouca fé pessoal e desvalido de “estro” havia apelado, deu a mais desconcertante resposta aos meus desígnios. Vi-me forçado a contrariá-los, a pensar seriamente, com outro ânimo, talvez até supersticioso, em um compromisso que de súbito se me impunha, entre surpresa e dor, sagrado pela morte. Em março de 1903 dizia-me em carta o saudoso acadêmico: “Escreva-me, dando notícias suas, e decida-se a apresentar-se à primeira vaga da Academia Brasileira.” Em menos de dois meses, em 17 de maio, verificava-se a vaga.  Era a de Valentim Magalhães...

Assim é que fui candidato, sem ilusões, quando razão não tinha para esperar senão um justo revés: candidato por um desses motivos irraciocinados do sentimento, que às vezes nos levam a arcar com aparências audazes e emprestam colorido extravagante, pretensioso, no caso, às ações mais inocentes. Escusa acrescentar, uma vez que aqui estou, que eu me não encolhi duravelmente no temor daquelas aparências. Porque, encurtando razões, e por falar como o modesto pastor da fábula,

qui n’a dans la tête
Un petit grain d’ambition?

Esta reminiscência é uma homenagem do coração devida àquele que, embora trocando pela justiça a liberalidade, primeiro cogitou de franquear-me este egrégio cenáculo. Por exígua que seja, eu não a podia negar-lhe. E só isto me absolverá de haver falado de mim para dizer-vos mais do que o meu comovido agradecimento e o quanto me acho desproporcionado ao peso desta investidura com que me honrastes, sem parte e sem voz nos diálogos dos grandes espíritos que aqui se congregam representando a cultura brasileira.

Todavia é com relativa tranqüilidade que me aproximo da Cadeira patrocinada por Manuel Antônio de Almeida. Esse amigo das letras edificou uma tradição de benignidade a que podem confiadamente agasalhar-se os literatos de menor valia. Jornalista e crítico, foi também autor de um romance único, escrito com os dons singelos que a natureza lhe concedeu e a muita mocidade lhe não consentiu acrisolasse. Essas dádivas naturais bastaram no entanto para garantir a vitalidade do seu livro, em que se tem o quadro mais flagrante dos nossos costumes no começo do século XIX. Este livro, aqui aparecido entre 1854 e 1855, intitula-se, como sabeis, Memórias de um Sargento de Milícias.

A trivialidade, o cômico exterior, a pitoresca licença da vida plebéia daquela época, encarnada em tipos característicos, tais como o do meirinho, estadeando no uso da casaca, do calção e do espadim um grande ar de “majestade forense”; o do barbeiro tagarela que acumulava à serventia das navalhas e do prato a das lancetas de sangrador; o do escolar gazeante, a coçar a jaqueta ou o robissão de lila em madraçaria atrás dos cortejos da via-sacra; o da mulher de mantilha, beata e parteira, inseparável dos bentinhos, do palmito bento e da garrafa de soprar; o do arruador valentão, de chapelinho à orelha, “cheio de dictérios e chalaças”, mas feroz no “sarilho”; o do mestre de reza, pago para embutir o padre-nosso, a golpes de palmatória, na cachola das crias de casas burguesas: essa ingênua galeria, quase totalmente desaparecida do cenário social sob os escombros de dous regimens, não teve observador mais arguto nem mais ladino intérprete de suas malícias, de seus enredos, de suas paixões vulgares. Tampouco lhe faltou o talento descritivo para pintar ou restaurar, com o auxílio da crônica e da tradição, onde já não era possível a observação direta, as cenas, as paisagens, as decorações em que ressurgem os personagens grotescos da curiosa burleta nacional, cada qual individuado, sem contudo exorbitar do costume, na lógica do seu temperamento. As “folias” e a festa do Espírito Santo, a começar pelas pompas pueris do imperador do Divino e seu séquito de cantores, tocadores de pandeiro e tamboril, até ao fogo de vistas no Campo dos Ciganos, onde se erguia o “império”;  a casa do caboclo que dá fortuna e cujos clientes, surpreendidos na dança macabra pela chibata do major Vidigal e seus granadeiros, eram metidos em danças mais afervoradas; a esquina do Ouvidor, ponto de reunião e cavaco dos beleguins da corte; as súcias fora da cidade, em noites de luar, com musicata de violas e machetes, de fados e modinhas, – são painéis em cujas tintas se revêem os amadores do Rio colonial. Em situações ou lances dramáticos, conquanto se não ponham em jogo senão paixões elementares, amores fáceis, ciúmes risíveis, apetites carnais, medíocres invejas e vinganças, a habilidade do narrador só foi excedida pela naturalidade, a concisão e o movimento dos diálogos que ele soube compor em uma língua sápida, vivaz, de lídima forjadura popular. Qualidade não somenos é esta para quem sabe quão argüido foi Balzac de emprestar discursos inverossímeis aos heróis dos seus admiráveis romances.  Saiu assim a pintura de Manuel de Almeida tão viva e natural que a crítica de hoje, apesar do nosso rigoroso formalismo em arte, de boa mente lhe relevou o desalinho da frase e a inconsistência da forma, tendo por excelentes compensações a veracidade e a fidelidade com que foram reconstituídas as figuras corriqueiras da velha sociedade carioca. E se deste modo procedeu a crítica profissional, por seu turno o público, abrandando a inflexibilidade da regra de Buffon, não deixou perecer por insuficiência de estilo a obra do espontâneo e jovial contador das aventuras dos Leonardos.

Mas os livros também correm os seus fados. Habent sua  fata libelli. O destino deste fê-lo quase despercebido da geração a que pertenceu o autor, e talvez pelas mesmas causas que o tornaram interessante aos olhos dos pósteros. Os historiadores das letras quando o não desconhecem, apenas o mencionam. Ferdinand Wolf, que consagra um capítulo à introdução do romance na literatura brasileira, arrolou-o simplesmente, fora do texto, entre outros que só conhecia de citação. Registra-o Inocêncio da Silva, mas com o critério de bibliognosta.  Fernandes Pinheiro e Sotero dos Reis nem notícia tiveram, ao que parece, da existência do romancista.

Nos dias em que viveu Manuel de Almeida, de 1832 a 1861, repercutiu e lavrou no Brasil o entusiasmo romântico. O Romantismo teve aqui uma ação considerável e duradoura, influindo em todos os ramos da nossa atividade espiritual. Como em toda a parte, escapando à estreiteza das fórmulas e definições, incompressível e difuso, ele forma um ambiente em que o espírito se impregnou de aspirações e idéias novas. Considerem-no uma reação individualista contra o gosto clássico ou o racionalismo, um reflorir das tradições e crenças místicas da Idade Média, a predominância do idealismo, da imaginação, da intuição, do sentimento, o Romantismo foi em síntese a expressão da mentalidade rejuvenescida que em princípio do século passado começou a despertar na Europa com uma visão nova do mundo e da vida e diversa concepção das relações do homem com o universo. Por isso mesmo que partiu de um conceito tão geral, veio a abranger nas regiões do pensamento humano as manifestações mais variadas: a moral, a política, a arte, a ciência, a literatura. Isto se verificou largamente no país que lhe assinam por berço. Lichtenberger especifica-lhe os efeitos: no domínio da ciência, opondo a especulação idealista ao empirismo e ao método analítico; na esfera religiosa, ligando a alma ao infinito pela contemplação direta das maravilhas do cosmos; na ordem política, suscitando o esto patriótico e o amor das instituições lentamente desenvolvidas no curso da História. O direito foi concebido, não como um ato deliberado da vontade, mas resultando inconsciente e necessariamente da alma nacional; a arte, não como um produto da reflexão, mas da imaginação e da sensibilidade. Tanto quanto lhe proporcionaram as revelações incompletas do gênio nacional, o Romantismo, na fase em que se acentua, invadindo a consciência da classe culta, irradiou no Brasil o seu influxo penetrante. Em Gonçalves de Magalhães teve um intérprete da sua filosofia, ao mesmo tempo que um poeta de inspiração emanuélica. Na política refletiram-no os princípios liberais, as tendências particularistas das províncias, o lirismo dos oradores parlamentares; e entendia Sílvio Romero que a própria Constituição já era uma excelente amostra do nosso proto-romantismo. Os costumes e as várias feições da vida social tomaram cores românticas. Na literatura deparou-se-lhe o campo mais fértil e mais vasto. O coração dos poetas enriqueceu-se de fibras mais sonoras. A alma se lhes derramava, como a água de um vaso muito cheio, ao mais ligeiro choque. Da ternura à melancolia, do amor ao desalento e ao desespero, todos os sentimentos, emancipados da medida clássica, prorrompiam em ritmos mesclados, cuja confusão dava às vezes a impressão do delírio. A miragem, o sonho, o maravilhoso, a fantasmagoria, todas as deliqüescências, todos os requintes da imaginação rivalizavam com a veemência das paixões, sempre transbordantes da forma. Os grandes nomes desse glorioso período histórico são assaz conhecidos.  As suas obras constituem a maior parte do nosso cabedal literário. São, abreviadamente, os poemas de Magalhães, Porto-Alegre, Macedo, Francisco Otaviano, Gonçalves Dias, Dutra e Melo, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu. Nos gêneros romance, novela e teatro, as produções de Araújo Porto-Alegre, de Norberto Silva, de Teixeira e Sousa, de Macedo e José de Alencar. Teixeira e Sousa, que foi dos mais fecundos escritores dessa primeira geração romântica, fazia-lhe honra, enchendo os seus livros, nota um crítico moderno, de salteadores, subterrâneos, incêndios, envenenamentos, assassínios e ressurreições, o que concorda com o juízo de Wolf quando lhe assinala a dileção pelo trágico e o terrível, patenteada em “imbróglios interessantes” e “soluções surpreendentes”. Falando de Macedo e outros do seu tempo, denunciava o mesmo historiador, como um caráter comum a quase todos, a tendência ao misterioso e à complicação da intriga, quando não faziam, como Norberto em seus contos, verdadeiros melodramas ou “imitações exageradas das produções da escola pseudo-romântica”. Tanto, porém, se entranhara no gosto da época a sentimentalidade e o fictício da escola, que Fernandes Pinheiro julgava tecer o melhor encômio ao autor da Moreninha alegando ter ele pintado “com mórbido pincel os mais imperceptíveis matizes da vida íntima, sem que jamais naufragasse nos parcéis do realismo”. Ora, precisamente nesses “parcéis” é que se salvou o jovem e descuidoso autor das Memórias de um Sargento de Milícias. Com um talento objetivo que contrastava a idealização e a subjetividade extrema dos demais, vingou a realidade menosprezada em excesso por estes e descreveu com tal verossimilhança e precisão de pormenores as cenas do seu romance que passa hoje o mesmo por um paradigma de sadio e discreto realismo.

Fora demasia pensar que o faceto narrador dos amores de Luizinha entesourava em sua natureza um poder de reação capaz de o insular das influências dominantes do meio e do momento, a que se não furtaram nem Gonçalves Dias nem José de Alencar. Mais que provável, é admissível que as páginas que ele deu ao jornalismo e o drama lírico que consta haver deixado, provem a sua filiação ao Romantismo. O certo, porém, é que dentro daquela atmosfera de ação difusiva sobre o sentimento, propícia a enganosas refrações e ilusões de óptica, ele conseguiu isolar certa porção de verdade que foi o elemento vivificante de sua obra. Sem ser gênio, teve seguramente a sua hora de abstração, rara oportunidade à plenitude da individualidade humana, e produziu este livro ditoso que vai vivendo paradoxalmente, a despeito de graves negligências de linguagem. É lícito mesmo se lhe reconheça a consciência dos ridículos da escola, quando, por exemplo, ajuíza de um dos caracteres que engenhou: “o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo”. Esse traço não acentua menos que outros o gosto pouco conforme de Manuel de Almeida à estesia reinante. Vinculado à mesma estirpe intelectual com os seus ilustres contemporâneos, torna-o deveras curioso a circunstância de sobressair nele uma qualidade que, sendo das essenciais ao Romantismo, em sua ascendência européia, foi a mais ausente do espírito dos nossos românticos. O conceito filosófico da potência criadora do poeta e do artista, segundo o idealismo alemão, coloca a estes em condições de se imaginarem sempre superiores às suas obras e reservarem à margem da sinceridade com que nelas se incorporam uma vista isenta, clara e perspícua, aberta para as imperfeições e os limites dessas parcelas do ideal realizadas. Esse contra-estímulo ou freio inibitório, esse poder de se não iludir é a ironia romântica, já então definida por Tieck, uma força que permite ao poeta dominar a matéria de que trata e não se render inteiramente ao seu assunto, mas conservar-se acima dele.

Manuel de Almeida em cada passo do seu romance está nessa atitude cauta e prevenida, expressão, seja consciente ou inconsciente, de uma desconfiança interior, resignada e humorística, respeitante à fragilidade e contingência do mundo imaginário a que procura comunicar o sopro vital da arte. Valeu-lhe isso como um preservativo contra as pieguices da paixão, e manteve-o no campo do natural e do verdadeiro. Reunindo ao senso da realidade a poesia do passado, o seu romance é ainda por este último título, além de um documento, uma relíquia literária, dessas que, à semelhança das de família, inspiram aos povos o culto enternecido das tradições, o carinhoso respeito às cousas que lembram o verdor do seu espírito e a infância da sua civilização.

O querido folhetinista carioca não deixou talvez de sua existência mais bela cópia. Para as ações excelsas, para as brilhantes aventuras pouco viveu. Ou viveu pouco ou a fortuna lhe foi esquiva e negou-lhe desses encontros felizes de que volta saciada uma juventude, tendo galopado pela estrada onde tantos se arrastam ou caem alquebrados, como mendigos, sem trazer no alforje mais do que esperanças fanadas. Manuel de Almeida, diplomado em Medicina e funcionário da Fazenda, exerceu entre outros cargos o de diretor da Ópera Nacional. Morreu aos trinta anos, em um naufrágio, como Gonçalves Dias. Indulgente e acessível, guarda na imortalidade o caráter que em vida revelou, como atesta a sua complacência, na direção da Imprensa Nacional, para com o distraído tipógrafo que seria mais tarde Machado de Assis. Não será por certo dos seus menores méritos o haver adivinhado e favorecido com espontânea amizade o futuro artista-filósofo, aquele que mais já fez pela universalidade da nossa literatura.

Conta-se de Sócrates que, sonhando, vira um pequeno cisne procurar refúgio em seus joelhos, mas em breve estender asas e voar, desferindo melodias que encantaram os homens e os deuses. Ao outro dia apresentaram-lhe pela primeira vez o jovem Platão, e Sócrates, subitamente iluminado, exclamou: “Meus amigos, é o cisne que vi em sonho.” Manuel de Almeida não foi menos vidente nem menos afortunado acolhendo como amigo, em seu gabinete, ao iniciado que diante dos caixotins da oficina se esquecia da tarefa a trocar confidências com a musa. A distância que há entre as Memórias de um Sargento de Milícias e as Memórias Póstumas de Brás Cubas é o argumento com que o destino lhe apoiou aquele rasgo, de conseqüências tão fecundas para o patrimônio das letras nacionais. Cabe-lhe a glória inconteste dos precursores, glória que não deslumbra nem desacoroçoa, antes estimula as vocações, sempre atraídas pelas pegadas desses pioneiros. O caminho que ele concorreu para desbravar era trinta e seis anos depois a estrada larga e orlada de loureiros por onde passou Inglês de Sousa.  Este mais não fez que praticar um ato de inteligente justiça quando lhe inscreveu o nome, cingido de palmas, no alto desta Cadeira.

Herculano Marcos Inglês de Sousa, escritor e romancista, abriu outras e diferentes vias à atividade sobrada do seu espírito. Sua personalidade é um diamante de mais faces. Nela se desdobram, em invejável harmonia, os três aspectos que lhe possibilitaram o viver integralmente para as necessidades da sua época: as faculdades racionais do cultor da ciência, as energias efetivas do homem de ação e a potência imaginativa do homem de letras. O campo de fenômenos que lhe forneceu o objeto de conhecimento científico, o das ciências morais e sociais, particularmente do direito, propiciou-lhe a cultura simultânea da imaginação literária. Despontaram ao mesmo tempo o jurista e o novelista, enquanto pela virtude de um caráter simpático às soluções vitoriosas da prática, ele confirmava o apotegma do filósofo italiano: a vida não se encerra toda ela na academia para os literatos, no foro para os advogados.

Era filho do desembargador Marcos Antônio Rodrigues de Sousa e de D. Henriqueta Amália de Góis Brito Inglês, ambos de linhagem conspícua pela representação intelectual e social. Nascido em 28 de dezembro de 1853 na antiga província do Pará, partiu com 11 anos de idade para o Maranhão, onde esteve internado em uma casa de ensino secundário. Passou ao Rio e do Rio a Pernambuco, em cuja Faculdade de Direito se matriculou e estudou até o quarto ano. O último cursou-o na Faculdade de São Paulo, aí recebendo o grau de bacharel em 1876. Tinha então vinte e três anos de idade. Suas aptidões já experimentadas durante o curso, nos debates pela imprensa e nos comícios políticos, rasgavam-lhe esplêndidos horizontes. O labor prático arrebatou-o desde logo, mas sem lhe estagnar na alma as fontes do idealismo por qualquer especialização demasiado absorvente. A sua vida, aliás, vai ser até o fim a demonstração de um raro paralelismo: a conjunção do estudo e do trabalho, das idéias e das aplicações; uma razão lúcida para conceber e um pulso viril para realizar. Coube-lhe, com efeito, em correspondência com todos os seus princípios, afirmar-se a la par na ordem dos fatos concretos.

Advogado durante cerca de quarenta anos, Inglês de Sousa não conheceu a estreiteza e a secura da inteligência profissional. Uma das vantagens dessa profissão, disse, falando a advogados, o presidente da República Francesa, Raymond Poincaré, está em oferecer aos que a adotam uma tarefa social sem lhes restringir o horizonte do pensamento. Todavia, de que íntima expansibilidade não haverá mister cada dia o espírito, a fim de reagir contra o automatismo invasor que, pela repetição das fórmulas, do processo, dos estilos forenses, tende fatalmente a encarcerá-lo, subtrair-lhe a elasticidade, a encurtar-lhe os remígios?  E todo ofício, não há dúvida, desde que praticado com dedicação e funda compenetração do dever, importa certa uniformidade de movimentos e uma correlativa incapacidade de adaptação a novos ritmos. No caso do ilustre paraense é de crer já lhe circulasse na organização muita seiva generosa antes daquela com que os estudos morais costumam fecundar a nossa vida interior e a cujo efeito nutriente se desenvolve no homem o interesse pelas cousas que o libertam do pequeno círculo das preocupações rasteiras, materiais, e egoísticas. A advocacia não foi para ele o ato quase maquinal que se passa entre a banca e o foro, entre a clientela e o mundo judiciário; não foi a rotina lucrativa que centraliza as energias da vontade e a isola numa laboriosidade não isenta de desaire. Ela o não privou do convívio nobilitante dos belos ideais; tampouco lhe afrouxou a austeridade ou diminuiu a tensão ao escrúpulo com que discernia as causas propostas ao seu patrocínio. O causídico admirado pelo talento e a proficiência, ainda mais porventura se impunha pela ética irrepreensível. Da advocacia, tão largamente exercida, desde o consultório em Santos até o Rio, onde se estabeleceu com a fundação da República, havia ele de tirar elementos para uma alta reputação, que veio a culminar, por saber, moralidade e consciência, na fama do jurisconsulto.  Os frutos opimos da sua cultura e prática do direito recolheu-os o país, a sociedade, a ciência, a instrução superior: foram os sábios ensinamentos do catedrático da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro; foi a sua presidência do Instituto dos Advogados; a colaboração nos Congressos Jurídicos e no Congresso Pan-Americano; os luminosos pareceres e razoados produzidos perante os tribunais; a sua contribuição para a reforma do processo ordinário e sumário; são as obras com que enriqueceu a nossa literatura jurídica, notadamente Títulos ao Portador, pelos competentes considerada clássica, e estoutra “obra monumental”, que é, ao parecer unânime dos seus pares da Câmara dos Deputados, o projeto de Código Comercial. Só este projeto, disse da tribuna uma voz autorizada, basta para que a memória do autor “permaneça vívida entre os cultores do direito e benemérita na pátria a que ele bem serviu como político, como jurista e como homem”.

Sob o aspecto propriamente intelectual e da ação, ainda outras formas assume a descomunal capacidade de Inglês de Sousa. O seu pensamento, abstraindo dos preceitos jurídicos e regras processuais, logrou descortinar outras esferas, onde atuava e tanto mais se comprazia quanto eram esferas concêntricas do Direito. No círculo máximo deste viu ele a política, e a política é de fato uma das forças em que se lhe decompõe a prodigiosa atividade. Caráter equilibrado, desconheceu certas oposições, antes lógicas que naturais, que discriminam os espíritos teóricos e os espíritos práticos, e outras que interdizem o ajoelhar ante o altar da beleza e aqueles que se alistam na milícia da verdade. Mais plástica, mais compreensiva e humana é a sua natureza. Nos jardins de Cipião, em alguma daquelas conversações que enchiam de graça e luzes de sabedoria as férias latinas e onde sobre a forma de amena controvérsia se manifestavam os eternos conflitos do real e do ideal, ele poderia conciliar os pontos de vista de Philus e de Laelius, este preconizando como o estudo mais digno do homem “as ciências que nos fazem úteis à república”, aquele pugnando por que não renunciemos as “verdades sublimes”, neste “universo que os deuses nos deram por morada”. Na tolerância do seu temperamento neutralizam-se, fundem-se todos os antagonismos, e deixam de altercar tendências e qualidades que um arraigado preconceito separou em antinomias necessárias.

São sem conta as vítimas do erro, da ilusão e da perplexidade na escolha do caminho para o êxito. Inúmeros são os loucos, como lhes chamou Marco Aurélio, que fatigam a vida em ações sem escopo definido. Lamentáveis sobretudo aqueles que, atormentados pela curiosidade metafísica de certos problemas humanos, esboçam apenas na consciência assustadiça vagos desejos e aspirações sem finalidade. A sociedade abriga em seu seio muitas dessas atividades sem órbita.  Afora o que delas utiliza o instinto da conservação, não se sabe quais outros fins as solicitam deveras, porque andam de experiência em experiência, tornando de rumos que pareciam bem encetados, acumulando funções que não são idôneas, arrostando empresas que muito mais vigor demandam. A concorrência de objetivos, em tais casos, não significa ductilidade, mas volubilidade; não é uma qualidade da inteligência, é um defeito do caráter. Inglês de Sousa teve a fortuna de nunca errar caminho, ele que tantos percorreu, e a ventura maior de ver brotar em cada trato lavrado pelo seu esforço, com o favor dos dons aparentemente opostos que o privilegiavam, uma obra de utilidade, um primor de inspiração social. Dispersou-se, mas sem desperdiçar-se. As tarefas em que se repartiu foram todas determinadas por aptidões verdadeiras. Por isso não forçou nenhuma das posições a que ascendeu e pôde com igual talento ser político, participar nessas lutas pela salvaguarda, o governo e o bem do Estado, lutas à feição da sua têmpera, pois já as reputava Cícero não só o mais glorioso emprego da atividade, mas o melhor ensejo da virtude, “que deve ser toda de ação”.

Na política estreou-se desde estudante em São Paulo, militando no partido liberal, de cujo órgão na imprensa, ao lado de José Bonifácio, foi redator. Valho-me aqui dos testemunhos dos contemporâneos seus e de representantes das antigas províncias, onde exerceu funções públicas, legislativas e administrativas: todos lhe assinalam a constância e proficuidade do trabalho, a exemplaridade do caráter cívico em perfeita relação com a nobreza de sua vida privada. Eleito deputado à Assembléia Legislativa paulista, “os seus trabalhos e discursos eram norteados por uma orientação segura e fecunda, exercendo influência salutar nas deliberações daquela casa”. Por sua iniciativa cria-se a Escola Normal, cujo regulamento é ainda ele quem elabora, a pedido do presidente da província. Na situação liberal que instituiu e pôs em prática a eleição direta, foi nomeado presidente de Sergipe. Ali “não se limitou a presidir à eleição direta, pela primeira vez que se aplicava a Lei Saraiva”. Apesar de curta sua administração, de 1881 a 1882, teve tempo de remodelar a instrução pública, de viajar o interior da província e cuidar dos meios de transporte, “chegando a levantar em um estabelecimento de crédito desta capital a quantia necessária para os estudos preliminares de uma linha férrea que ligasse Simão Dias a Sergipe”. No trato com as facções políticas “soube opor uma resistência legal e pacífica aos vexames, aos desmandos, à quase desorganização que se notava na província e conservou sempre a mesma resistência na luta e a mesma moderação na vitória”. Uma das suas primeiras providências, ao chegar a Sergipe, foi transferir para a Bahia a guarnição militar, que se havia revoltado. O Governo imperial, reconhecendo-lhe os bons serviços, agraciou-o com o oficialato da Rosa. Governou também a província do Espírito Santo, deixando em uma reforma do ensino elementar duradouro vestígio de sua presidência. Inaugurado o novo regímen, aceitou-o, sendo mesmo convidado pelo Marechal Deodoro para governador do Amazonas e indicado para igual cargo em Pernambuco por Silva Jardim e Aníbal Falcão. Esteve alguns anos arredio dos negócios públicos. Dessa abstenção tiraram-no por fim os conterrâneos, conferindo-lhe o mandato de deputado à Câmara Federal. Era já enfermo e combalido, mas não sabia resignar-se à inação e escusar-se do dever. À causa pública deu até os últimos alentos. Os seus ombros atléticos suportaram ainda outras responsabilidades: a direção e propriedade do Diário de Santos, a Revista Nacional de Ciências e Letras, de que foi fundador com Antônio Carlos, em São Paulo, a secretaria do Tribunal de Relação da mesma província, a diretoria da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, a fundação do Banco de Melhoramentos e da Companhia Agrícola, Industrial e Colonizadora de São Paulo, a tesouraria da Academia Brasileira de Letras.

A 6 de setembro de 1918 repousava em paz o varão insigne, de alma forte e serena, a quem os imperialistas de ontem, não obstante a nobre simplicidade de suas maneiras, a modéstia e o silêncio de que se cercou, teriam chamado com justeza um apóstolo de energia.

Inglês de Sousa, convém relembrar, nasceu na antiga província do Pará, em uma pequena cidade do século XVIII, primitivo assento de índios pauxis, à margem esquerda do baixo Amazonas. A situação de Óbidos, plantada na eminência de uma colina, a quinhentas milhas do litoral, é das mais pitorescas, notara Agassiz.  A largura do rio não chega ali a dous quilômetros: o que permite ao observador alcançar de vista ambas as margens, dominando um vasto panorama de selvas e águas que desenrola para o nascente e para o poente. É também, no curso do majestoso rio-mar, o último ponto aonde se faz sentir a palpitação das marés atlânticas.

Tendo vivido toda a infância no regaço da floresta equatorial, saturando a alma na surpresa dos estupendos fenômenos que singularizam aquelas paragens, o escritor paraense prometia exatamente a obra literária que nos deu, e tal qual a formou, sob influxo poderoso, numa espécie de identificação panteística em que o gênio regional aparece fecundando a sua sensibilidade enamorada. Vívida, sincera, pessoal, essa obra é a filha legítima das núpcias dos seus sentidos com a natureza amazônica. Circula em toda ela a seiva redundante que arroja as frondes da samaúma, e a linfa diluvial que sulca e abebera em todos os sentidos a planície contínua. É ampla e densa, como a amplitude exaustiva da terra e como a espessura das águas invasoras que a penetram. Por toda a parte são rios que se alongam, cruzando as suas torrentes, ora claras, ora túrbidas, a céu aberto ou sob esparavéis de verdura; são os lagos onde se refractam os raios fulgurantes dos astros do Equador; são as dilatadas sombras da floresta ubíqua e obsessora, em cujas entranhas se obstina a insociabilidade agressiva do selvagem. Não lhes falecem, entretanto, na monotonia de tais espetáculos, as mesmas louçanias que iluminam de quando em quando a pradaria luxuriante ou o balseiro de águas estofas, por cima do qual se entretecem com altas ervas, caniços e largas folhas rosadas de malva, alcatifas que se rasgam varadas pela igarité do tapuio. Síntese desse belo selvático seja o esplendor da “vitória-régia”, o lírio colossal dos igarapés, “tipo do transbordamento da natureza vegetal dos trópicos”. Quem leu que a não retenha na memória visual aquela página vivamente colorida em que Agassiz nos conta a sua excursão ao lago Máximo, circundado de magníficas florestas que a plumagem cintilante das araras esmalta de amarelo, verde, azul e escarlate, em busca dos recessos onde se banha, defendido por agudos espinhos, entre folhas de cinco pés de diâmetro, o nenúfar gigantesco, símbolo da pujante formosura do equinócio, o rosicler da vitória-régia, em cuja pintura se esgotam todas as gradações do róseo, e o branco aveludado, saltando pela púrpura sombria, se repete nos tons lácteos, do centro, com vislumbres de ouro...

Mas Inglês de Sousa não foi mero pintor de esplendorosas paisagens. A vida com a sua harmonia superior, nas energias cegas ou conscientes do instinto e da razão, igualmente lhe põe em jogo as robustas faculdades representativas. Evocando-a com intensidade, em toda a extensão e multiplicidade dos fenômenos respectivos, é que ele se privilegiou com os foros da grande arte e se fez um revelador de almas ou, como se diz na República de Platão, um criador de fantasmas. Apesar da simplicidade dos seus processos literários, justo é se lhe reconheça, com Araripe Júnior, o vigor da imaginação. Tratando-se de literatura, é comum associar-se a essa palavra a idéia de translação metafórica e quase reduzir a imaginação àquela que se manifesta no estilo por uma profusa eflorescência de imagens verbais. A linguagem de Inglês de Sousa, correntia e singela, clara e luminosa, não se priva em absoluto desses recursos translatícios, de que nos dá espécimens fortemente pitorescos. É imaginosa e vivace, naturalmente, sem repensado lavor, quando em O Missionário fala do seminarista ainda cheio de recordações do viver campestre: “na ânsia de assegurar-se da verdade, de agarrá-la fisicamente como a um bezerro rebelde”; quando diz do sacerdote no altar: “unindo o polegar e o indicador de ambas as mãos mostrava o êxtase da alma suspensa entre o céu e a terra”; e dos pecadores contra a lei do Cristo “a pregá-lo outra vez na cruz dos seus desatinos”; e do coração que vai medroso confiando os seus segredos “com a precaução com que se abriria uma gaiola de pássaros para não deixar fugir os sentimentos à uma, em tropel confuso”. Até aqui a invenção de expressões; mas não se exaure nesse broslar da frase o dom que com razão se considera a faculdade mestra dos romancistas. Quanta imaginação, de fato, não requerem as mil combinações de traços, de circunstâncias, de particularidades, as situações, os incidentes, as fisionomias, os gestos, as peripécias, os desenlaces de que se constitui a história fictícia, a descrição ou a narrativa em cuja textura aparece às vezes tão intensa e imediata a realidade, que mal se pode crer seja um prestígio de imagens antes que sensações experimentadas ao contacto direto das cousas. Assim era com o pintor a quem alude Paulhan, o qual já prescindia do modelo, porque deste lhe estavam presentes todas as feições, as linhas, as formas, a cor e a postura em que o retratava. Fala-se em observação... Mas o momento da observação não coincide com o momento da criação. Aqui é a vez da imaginativa. O artista tem duas vistas: aquela com que vê os objetos e aquela com que os reproduz. E esta só se exercita bem a olhos fechados. Inglês de Sousa foi dotado de ambas, em grau eminente. O seu espírito observador cobriu-se no frescor da idade, de um arabesco de impressões que um dia, já ele ausente da terra natal, no Recife e em São Paulo, começaram a projetar-se em descrições de panoramas animados, como surgiam os palácios e cidades à luz da lâmpada de Aladino. Não menos maravilhosa é a imaginação do escritor que evocou e descreveu com os seus encantos perigosos de mameluca, cercada do seu povo de potâmides, gens humida, a giganta amazonense, a terra proteiforme e genesíaca do nosso extremo norte.

A Amazônia é o capítulo fantástico da geografia brasileira. Os que nunca a vimos, sonhamo-la como um abismo de raridades e prodígios; mas os que a perlustram acabam indefectivelmente encampando as mesmas fantasias. Desde a figuração do seu físico até a narração da permanente aventura em que transcorre ali a existência humana, tudo nos impele ao devanear do subjetivismo, aguçado pela resistência do inextricável. Ela não é só o haschich dos temperamentos líricos.  Nas suas várzeas rebalsadas, onde se elaboram os venenos palúdicos, a febre do entusiasmo acomete os espíritos mais lúcidos e positivos. O grande rio “evoca em tanta maneira o maravilhoso, que empolga por igual o cronista ingênuo, o aventureiro romântico e o sábio precavido”. Desses maravilhados o mais recente e brilhante exemplar foi o próprio escritor da “Terra sem história”, cuja imaginação, posto que racionalizada pelos hábitos mentais do cientista, não pôde forrar-se ao hiperbolismo dos símiles e conceitos. Em frase remontada, de surtos épicos, ei-lo transportado a épocas geológicas imemoriais, recompondo na “terra mais nova do mundo”, com espécimens de fetos arborescentes, monstros da fauna anfíbia e certas formas anacrônicas, reminiscências paleontológicas, semelhantes ao sáurio alado, a paisagem pré-histórica onde a cada passo o assalta “uma impressão paleozóica” e o homem, “intruso impertinente”, passa como um fantasma trôpego emergindo apenas do dilúvio terciário.

Entretanto, em meio de tais hipóteses, miragens e analogias mais ou menos alucinadas, um fato se contorna bem preciso em sua desoladora fatalidade: é a pequenez, é a debilidade do homem no seio daquela estupenda natureza. A terra-mãe submete os seus filhos a uma implacável seleção; esmaga-os no próprio gesto maternal com que os amamenta; devora-os a descuido, como Gargântua indiferentemente tragava salada com peregrinos de envolta. Ainda se está por saber qual o tipo humano talhado para triunfar, pela saúde e a longevidade, na luta com as intempéries do encharcado deserto, no longo e doloroso processo de adaptação ao seu clima. Os “aimaras” de peito largo, refere Kirchoff, descendo dos planaltos peruanos até à margem do rio, a fim de trabalharem nas lavagens do ouro, morreram quase todos, vítimas do ar muito denso das baixadas. Mas dos que sobreviveram, logo na segunda geração se verificava, pela estreiteza do tórax, um menor desenvolvimento dos pulmões, já apropriados à economia do esforço e à defesa do organismo. Os nossos heróicos cearenses e demais brasileiros do Nordeste continuam, eles sós, a suprir, à custa de miséria e tormentos infernais, a vida que foge espavorida dos plainos do Amazonas, flagelada pela agrura das condições climatéricas. Já Montesquieu pensava que os povos dos países quentes são tímidos como os velhos, e porque os seus nervos estão menos protegidos pelo tecido epidérmico as sensações se lhes tornam em regra violentas. Daí poderem-se distinguir os climas pelo grau de sensibilidade, da mesma sorte que são distinguidos pelos graus de latitude. Mas se de fato as influências climatéricas são debilitantes para os seus naturais, no sombrio pantanal brasileiro, não menos certo é que o aparato da natureza exterior, as forças e os fenômenos com que ela se ostenta soberana e formidável, têm levado o alarma e o assombro aos mais fleugmáticos, aos mais acerados e impávidos exploradores oriundos da fria Europa. A pororoca, as terras caídas, a cheia, o desabar das florestas, o extravio dos rios, a submersão de ilhas, o paludismo, anunciam furores de um minotauro; perturbam, abalam e dobram os mais aprumados ânimos, enquanto o solo alagadiço, inconsistente, sem feições definidas, repele o traço diuturno e todo o relevo de construção durável. Notou a propósito um daqueles visitantes estrangeiro da selva equatorial que a combinação do grande calor e abundante umidade, dando extraordinário viço à vida vegetal, parece com esse mesmo vigor rechassar os homens e os brutos. E observam todos que a fauna da Amazônia não está em relação com a pujança da sua flora. O homem evidentemente não o está, nem física nem moralmente. Sitiado de perigos multiformes, ele tateia o seu futuro como em um quarto ato de Macbeth, sob o mau signo de potências mágicas, com pesadelos e visões de florestas que o investem. A mutabilidade do cenário contagia-o. Condenado ao nomadismo estéril, à espreita sempre do mal, de um inimigo, de uma catástrofe, não conhece a volúpia de viver, nem o trabalho aturado, metódico, sedentário, em que se preparam e solidificam as civilizações. O lodaçal do Nilo, cujas águas se submeteram ao regímen das leis faraônicas, foi a matéria plástica de uma civilização que esculpiu na crosta do planeta monumentos perenes, atestados do esforço secular de um povo que soube vencer o deserto bravio. O nascimento do Egito datam-no os historiadores do dia em que os seus habitantes conseguiram regular o curso do rio, calhar-lhe as aluviões e sanear-lhe as margens. Poderemos acaso sondar o futuro em que no limo do Amazonas cessem de perecer em gérmen aspirações vitais e se plasme a raça forte que o integre na economia nacional com a sua possível função civilizadora?

Intentou-se, é verdade, defender o clima “caluniado”, acusando a intemperança e a imprudência dos homens. Euclides da Cunha descontou os exageros da imputação; mas a rigorosidade, a insalubridade do clima não a deixou menos confirmada com o usar o eufemismo – “eliminação generalizada dos incompetentes” ou eleição dos mais dignos de viver. Do efeito dessas inclemências sobre a inteligência e a moralidade dos indivíduos é ainda ele quem fala: “Naquele perpétuo banho de vapor, compreende-se a vida vegetativa sem riscos e folgada, mas não a delicada vibração do espírito na dinâmica das idéias, nem a tensão superior da vontade nos atos que se alheiem dos impulsos meramente egoísticos”. Este fato testificou-o implicitamente o autor da Viagem ao Brasil, quando em visita ao Amazonas. Na superfície do globo, segundo o vaticínio condicional do célebre naturalista, não haverá região mais afortunada, se algum dia as faculdades intelectuais e morais do povo se concertarem com as galas deslumbrantes e a riqueza imensa de que a dotou a natureza. Ora, cerca de cinqüenta anos faz que o sábio estrangeiro proferiu esse voto profético; e decorrido meio século, eis como pinta a situação ali um dos escritores que atualmente encarnam o patriotismo estudioso e militante da juventude brasileira: “É um inimigo forte, aparelhado em frente de uma vítima desacautelada e tímida. O fator antropológico é insignificante em presença do fator cosmológico. É uma luta desigual e tremenda a que o equador assiste, há perto de quatrocentos anos...”

Essa é a Amazônia trágica, eriçada e misteriosa dos forasteiros, dos aventureiros e dos desbravadores, dos naturalistas e dos geógrafos, dos regatões e dos seringueiros. A visão de Inglês de Sousa é menos pávida e pessimista. Afogada em inundações, extraviada em matas virgens, perseguida de pragas e malefícios, a Amazônia que lhe tocou a sensibilidade, constelando-a de emoções artísticas, é todavia muito menos revolta, menos excêntrica e dantesca. É a Amazônia vista através de uma afeição filial, que se aquilata e fortalece ao próprio açoite das severidades maternas. Familiarizado com os seus arrancos e com tudo o que debaixo daquele céu atroa e espanta, ele a vê e a retrata nos seus pequenos aspectos encalmados, nos seus oásis de vida doméstica, nas tréguas que lhe tem concedido a natureza tumultuária. São esses recantos de paisagem que nos deparam os Contos Amazônicos, compreendidos sob esta rubrica todas as primícias, neste gênero literário, publicadas pelo estudante paraense em São Paulo. Nas praias do “mar de água doce” não há positivamente como organizar um viver de pastores na Arcádia. Sem embargo dos contras, lograram as missões dos jesuítas, já nos séculos XVII e XVIII, florescer ao longo do rio, e mais de um viajante lobrigou em sítios que foram aldeamentos e hoje são vilas e cidades, uma imagem, posto que grosseira, da tranqüilidade e dos costumes bucólicos. Essa imagem achamo-la também nestes Contos, onde sorri a felicidade um pouco menos efêmera dos casais entregues ao labor pacífico do campo, à orla da floresta, nas vivendas dos sítios ensombrados de cacaueiros, nos igapós e nos lagos piscosos a pescar peixe-boi e tartaruga. “É naturalmente melancólica, escreve Inglês de Sousa, a gente da beira do rio. Face à face toda a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante da agitação social, concentra-se a alma nesse apático recolhimento, que se traduz externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do gesto. O caboclo não ri, sorri apenas; e a sua natureza contemplativa revela-se no olhar fixo e vago em que se lêem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência ao mundo objetivo e dele assoberbada. Os seus pensamentos não se manifestam em palavras, por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão comunicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão.” É assim que ele no Voluntário nos traça o perfil da velha tapuia de Alemquer, na varanda da choça, a ver passar o rio e a fiar tucum para tecer a maqueira.

A possível estabilidade e rotina da existência, na remissão ou intermitência dos flagelos naturais que assolam aqueles vilarejos quase lacustres, é essa do caboclo indolente e pensativo que ao cair da tarde, “depois de ter comido a sua lasca de pirarucu assado ou a gorda posta de fresco tambaqui com pirão de farinha d’água, molho de sal, pimenta e limão, ia sentar-se à soleira da porta, donde contemplava o pôr-de-sol entre os aningais da margem do rio, e ouvia  o canto da cigarra chorando saudades da efêmera existência que a tananã oculta, em doce estribilho, consolava”. Ou é o idílio da gentil Mariquinha de Vila Bela, à beira do lago onde alvejam as flores da batatarana, e em cujas águas se refletem as imagens radiosas desse Amor de Maria, que vai ter um epílogo desgraçado, como não é raro nos amores do resto do mundo, porque um jovem “costumado aos namoros fáceis do Pará pensava que em Vila Bela, na vida estreita da aldeia, podia impunemente brincar com o sentimentalismo das raparigas”. É ainda a exaltação coletiva dos povoados, ofendidos no pundonor patriótico, protestando com o vigário, o juiz, o professor e o delegado de polícia, e subscrevendo para desafrontar a honra nacional espezinhada na questão Christie. E para não ser menos costumeira a vida dessas cidades reclinadas à margem do Amazonas e dos seus tributários, lá surgem entre as evocações do novelista as cenas de banditismo de Jacó Patacho e seus quadrilheiros, cujas atrocidades fazem passar o estremeção do horror pela alma fria e silente do caboclo; ou a recordação ainda mais tétrica da Cabanada, com os seus cabanos vestidos de algodão tinto em murixi vermelho e armados de terçados, arvorando à popa das montarias, por furos e paranamirins, aos gritos de “mata-marinheiro”, a bandeirola rubra da revolta contra a fazenda e a vida dos portugueses e maçons. Mas há também a compensação do prazer, nas expansões festivas do “sairé”, e a compensação do sonho, em promessas de fortuna e gozo, embora falazes, como aqueles rebanhos encantados da serra do Valha-me-Deus, sempre a fugir dos olhos dos tapuios que lhes viam os rastos e lhes ouviam os mugidos.

Nessa pinturesca e instrutiva psicologia das populações ribeirinhas e sertanejas do alto e do baixo Amazonas, ao passo que interpreta a alma pasmada do curiboca em face de um mundo deveras assoberbante, nos deu o psicólogo a medida do que era, e talvez do que seja, a sedimentação social naquele terreno incerto, cadenciada pela oscilação secular dos seus povoadores. Quis ele porventura sugerir a sociabilidade da raça, mercê de um vínculo menos frágil e precário que o dos ajuntamentos de adventícios e o dos arraiais provisórios, constituídos de exploradores de riqueza, incapazes de depositar qualquer tradição. Na Amazônia observada e refeita pela imaginação do romancista configura-se, a despeito dos elementos hostis do meio dispersivo, um tipo de sociedade que se consolida pelo sentimento histórico de um passado vivido em comum. E não só isto. Já aí se descobre uma expressão moral, acentuada em idéias e aspirações dignificantes da raça.

É o que Inglês de Sousa mais desenvolvidamente inculca em seu livro capital, O Missionário. Desdobra-se aqui em exuberantes capítulos a formação sucedânea da tribo amazonense, com a gente nativa e a família regional presa ao solo por todos os interesses, simpatias, dependências e necessidades que lhe circunscrevem o destino. É a sociedade de Silves, pequena vila emoldurada em florestas, à margem do lago Saracá. O grosso de sua povoação compõe-se de tapuios, mamelucos e outros mestiços mais apurados; são pescadores de pirarucu, plantadores de cacau, colhedores de andiroba e copaíba, regatões que percorrem o labirinto fluvial chatinando pelos longínquos empórios do guaraná e da castanha. Os industriosos fabricam urus de palha e cuias; as mulheres são fiandeiras e tecem redes de embalar. Ainda não há por aí o seringueiro, que virá mais tarde, com a descoberta do ouro branco. Sobre esse fundo plebeu salienta-se o escol da vila: o presidente e os vereadores da câmara municipal, o coletor das rendas públicas, negociantes estabelecidos com casas de varejo, proprietários de sítios, o professor público, o delegado de polícia, o sacristão da matriz... Falta o vigário, mas está a chegar, e Silves em festa vai esperá-lo a bordo do vapor que fundeia no lago, cercado de montarias.

O padre Antônio de Morais, do seminário de Belém, rapaz sanguíneo e forte, criara-se na soltura do campo e era filho de um fazendeiro de Igarapé-mirim, homem de “largos apetites nunca saciados”. O regímen do seminário combateu-lhe os excessos do temperamento, ou, antes, derivou-os em exaltação mística. O novo vigário de Silves é um pastor de conduta exemplar, todo consagrado aos deveres do seu ministério, e tão assíduo nos atos religiosos que afinal esgota o fervor do rebanho, incapaz, por índole, de longa tensão espiritual. Descontente com o relaxamento e a indiferença dos paroquianos, o padre Morais procura confortar-se nas reservas de idealidade que a ambição de glória lhe entretinha na alma de romântico. Resolve então abandonar a paróquia e ir pelas brenhas catequizar os índios mundurucus.  Afronta com ardor inexcedível obstáculos e perigos, padece tremendas privações; nada lhe entibia a fé e o ânimo combatente. Antes, porém, que pise os domínios da selvagem Mundurucânia sucede-lhe aportar a um sítio delicioso, à sombra de altos castanhais, onde uma ninfa de sangue mameluco o retém cativo dos seus “olhos lânguidos de creoula”. Padre Morais precipita-se das alturas do seu sonho grandioso de apóstolo na salacidade trivial dos escravos do instinto. Era uma estátua de pés de barro.

Não tentarei a apreciação literária desta obra notável, que teve críticos dos mais ilustres e aplausos conscienciosos. Como restrição a tais louvores, é certo, houve que lhe achasse muito vasto o cenário para o drama, que, a fim de o preencher, se amplifica e amiúda em excesso. Prefiro ver nesse feitio do livro a prolixidade reflexa da terra, e na sua aparente desproporção uma admirável simetria com o meio e a humanidade – rari nantes – aí dispersa e apoucada. O autor escreveu largo e caudaloso, modelando-se assim o seu estilo pela imagem das cousas.  Naquele reino da exuberância não é, naturalmente, com o laconismo de expressões avaras que se logra canalizar o volume das impressões. O Missionário ficou sendo o mais sazonado fruto do Naturalismo brasileiro. Sem as perversões e os exageros em que se desnaturou a escola, Inglês de Sousa reivindica aos devaneios de um padre visionário a dura realidade do determinismo. Mostrou o que pode ser a criação do caráter pela ação daquele meio físico, das causas sociais e acidentais ali consorciadas. A civilização da Amazônia é aquela já sabida teia de Penélope. O que o rio faz o rio desfaz: húmus, lavouras, moradias, fortunas. O homem não se podia eximir a tais vicissitudes. A moralidade humana desnivela-se como o solo, e nada preserva a virtude que hoje desabrocha, viçando com ímpeto, de amanhã submergir-se nas águas da cheia e sepultar-se em lodo sob as terras caídas. O Missionário foi o primeiro documento que em boas e lapidares letras revelou e dramatizou esse esforço da alma para desatolar-se do lenteiro que a sorve.

O descaminho do catequista Antônio de Morais não é uma sátira descaridosa vibrada com espírito, sectário, em satisfação a caturrices de livre pensador, contra o clero amazonense. Mais elevado e mais grave, amenizado às vezes por traços de mansa ironia, é o sentido dessa malograda empresa apostólica. O padre Morais não era um hipócrita. Há boa fé, pureza e desprendimento em seus propósitos. Cedendo a estímulos nobres e altruísticos, ele parte em demanda da Mundurucânia, que é a perspectiva do martírio e da morte, e sobe até ao penúltimo degrau do heroísmo. Traído pelo sangue do sultão de Igarapé-mirim, e prestes a naufragar, acusa as sirtes que o sitiam, as cumplicidades que o aliciam ao erro. “Adormecer na segurança do bem-estar atual, reservando para mais tarde os cuidados da salvação eterna, era a verdadeira filosofia prática que o amazonense adotava, que a floresta, o rio, toda a natureza amazônica ensinava...” Na eminência da falta, ainda se interroga e confia “que a sólida educação que recebeu no Seminário, o fundo de religião e moralidade com que o dotara a natureza e a firme vontade de ser superior às fraquezas humanas, sem dúvida venceriam as tentações da sua carne de vinte e três anos”. Resiste, marca a sua partida do sítio tentador, e antecipa um canto de vitória sobre as insídias que o envolvem. “Que era o amor de uma mulher comparado com o amor da humanidade?... Novo São Francisco Xavier, o apóstolo dos índios, casto como São Efrem e São Luís de Gonzaga, forte e sereno como o seu homônimo, vencedor do demônio, ele, padre Antônio de Morais, ilustraria os sertões da Amazônia e glorificaria a sua pátria...”

Essa luta íntima é das mais intensas tragédias que a literatura recolheu da alma humana. E o livro de Inglês de Sousa, dando-lhe por teatro uma região tão infensa à vida superior do espírito, de um só lance criou um símbolo eloqüente e um alto dever para a consciência brasileira.

A grande Silves, estendida no imenso vale onde sofre os rigores de leis inelutáveis, compreende as suas relações com a humanidade e ensaia os passos intrépidos da virtude que conduzem até aos cimos do sacrifício. O seu seio, alfobre de sensualidade, não é moralmente tão infecundo que não possa gerar em algum cérebro apaixonado um sonho de beleza ou suscitar corações cheios de piedade. O que lhes falta, a esta e as outras Silves semibárbaras, manchas da nossa lacunosa civilização, é no caráter dos homens essa força eficiente que faz perseverar nos princípios e, dando seguimento à ação, os harmoniza afinal com as obras. O missionário que se resigna, com escândalo de Deus e do mundo, ao abandono de sua missão, ou seja vítima do pecado original da raça ou da conspiração de causas exteriores, está a sugerir, em favor dos semelhantes, que os não deixem desamparados da previdência social, de nenhum dos corretivos e dos cuidados com que o progresso da ciência aumenta cada dia o poder da nossa espécie. Será mister ampliar nesses seres dúbios e fracos o domínio do sentimento moral, e sem embargo dos determinismos que lhes quebrantam a confiança em si próprios, educá-los na crença de que também são forças em concorrência com as forças eternas da natureza. Importa forjar-lhes uma vontade sã e firme, que se não renda facilmente às mãos tirânicas da soberana fatalidade.

Tal é o pensamento generoso que transparece no fecho dessa obra, acima do seu literal pessimismo, e dela faz uma obra de verdade e redenção, digna do jurista que em todas as posições e circunstâncias em que serviu à pátria, serviu inestimavelmente à cultura, à liberdade e à justiça.