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Xavier Marques

                                               JANA E JOEL

Da travessa em diante a embarcação desgalgou-se, com um vento mais fresco.

Jana se havia acomodado numa caixa de mantimentos, e de frente para o pescador, que governava recostado à popa, ia relatando as peripécias e os casos banais da sua vida na cidade, com acentos de mágoa longamente padecida.

Quando acabou de contar, entreviu a ilha com o sinal branco da ermida abaixo do cume da montanha, e o cole vermelho, pelado de ervas, extremando a curva do poço. Acudiram-lhe perguntas, e entrou a pedir notícias, umas sobre outras.

- Os manos... que fim levaram, Joel? Não era Cosme que pescava e andava no mar com você?

- Cosme foi pra a Enseada. Mudou-se para lá por causa de uma rapariga. Eu vali-me deste menino que veio do Bom Jesus e andava à toa tirando palha de aricuri. É um pobre como eu fui. Cosme vive na mesma casa com o pai da moça, um velho fazedor de vassouras e pescador de tarrafa. Dizem que vai se casar.

- Deveras! E Damião também já tem casa?

- Este, logo que o mestre morreu, vendeu a casa, tomou seu quinhão e foi trabalhar num forno de cal do Boqueirão. Não sei se tem mulher. Pode ser. Quem se casou esta semana foi a sobrinha de Maria Guaiuba... Tio Gregório foi-se...

- Coitado... Então você mora só, na casa dele.

- Moro, sim. A casa é nossa, ele deixou a casinha pra mim.

- Bom velho...

- E o mestre, Jana, o mestre...

Ela suspirou e ficou escutando.

- O mestre não era mau, não... Quando ele viu que estava em perigo, mandou me chamar. Eu fui, e tive uma pena, minha irmã... Ele então me disse estas palavras: “Joel, meu filho, a canoa é tua... não é de mais ninguém... Trabalhar, eu já não posso, não me levanto mais... Daqui só pra ali...” Pra detrás da capela. Estava lá o velho Guaiuba, a dos Anjos mais a filha, e muita gente do copiar, esperando a hora... Coitado! O mestre era bom, Jana, e muito bom. O mais foi coisa que lhe meteram na cabeça.

Ela tornou a suspirar, e descortinando a ermida que avultava em cima do cômoro, enviou para lá um gesto de perdão e bênção.

Depois disso circunvagou com os olhos, medindo as águas rugosas do canal e reconhecendo as outras ilhas, mais ou menos longínquas. Esse ar puro do mar lhe sarava todas as feridas; sua alma se dilatava, e no rosto, que a vela da canoa abrigava do sol poente, seus olhos verdes concentravam mistérios.

No silêncio dos poucos instantes Joel observou, remirando-a:

- Jana, você era bem tratada lá, não era? Essa roupa do seu corpo, minha irmã, isso deve ser caro...

- Esta roupa? Ora... que me importa. Isto até me vexa.

E dizendo, curvou a cabeça, estirou as pernas e descalçou-se. As meias arrendadas, cor-de-rosa, saíram com os atilhos em dois safanões e foram atiradas à carlinga do mastro. Em outro gesto rápido achinelaram-se os sapatos de fino cordovão. Jana ergueu a cabeça e sorrindo, com desprendimento, passou as mãos pelas orelhas, tirou as argolas e deu-as a Joel, dizendo:

- Guarde no bolso.

Enquanto ele obedecia, ela deu-lhe as costas, sempre sentada na caixa, viu o rapazote à proa, encolhido, espiando a terra fronteira, e ordenou a Joel:

- Olhe pra lá.

Começou a despir o casaco branco enfeitado de rendas: pôs-se de pé e equilibrando o corpo, desceu o nó da cintura, e a saia de caxemira azul foi ter ao banco da canoa. O vestido velho inteiriço cobriu-lhe a seminudez, caindo depressa sobre a camisa e a anágua.

Tudo isso se fez expeditamente. Jana sentou-se então e falou para o companheiro:

- Olhe agora.

O pescador riu-se da mutação. Mas ainda restava um luxo indigno da ilhoa que regressava, contente, a sua barbaria. Com ambas as mãos ela tateou a belbutina do cabelo, safou-a, desfez o laço, e com um riso de galhofa um tanto cruel, segurou-a nas pontas dos dedos. Quando a refrega passou, a fita encarnada foi coleando nos ares, vaiada pelo riso dos dois, até que esmoreceu o vento e o mar aceitou-a.

Jana mudou logo de feições. Sua alegria concentrou-se. O menino da prosa acabara de gritar:

- Ponta de Nossa Senhora.

Sim, era ela que vinha crescendo e desvendado aos olhos de Jana, sítio por sítio, os pedregulhos negros da restinga, as cobertas levadias da povoação traçando uma curva na rampa verde ao pé da montanha escalvada, e as copas dos espinheiros cá em baixo, quase na praia, e mais ao norte, lá no alto, avançando sobre as ondas, como um farol que nunca se apaga, a ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, Mãe dos Pescadores.

À proporção que se avizinhavam do porto, Joel e a amiga falavam menos e pareciam meditar.

Ele murmurou, no meio de sua preocupação:

- Quem havia de dizer...

E tornou a calar-se, pensando nos caprichos do destino que lhe deparava a filha de Anselmo, refletindo nesse ente misterioso em cujas mãos estava aquele roteiro da vida a que ele chamava - sua sina. Cogitava igualmente da fuga de Jana, das consequências desse ato, da sua responsabilidade, do que faria a madrinha para reaver a afilhada, se acaso ainda a quisesse. Não pode sofrear uma pergunta:

- Jana, você pra onde vai daqui?

- Ora... falta pra onde? Aqui não me perco. Peço a tia Brites, peço a Trindade, seja a quem for, um agasalho. Vou fazer vassouras, sei coser baeta e saias, não hei de ser tão pesada, nem por isso. Fico por aí até um dia.

O desejo de Joel seria apresentá-la ao dono das terras e dizer-lhe com toda a humildade: “Senhor, eu quero casar com esta rapariga, venho pedir a vossa mercê que a deixe aqui por estes dias e nos valha com a sua proteção.” Mas a sua casinha, a herança do tio Gregório, precisava de conserto, era nua de trastes, só tinha esteiras e uns cangaçais. Jana preferiria, decerto, ficar em liberdade. Não havia de gostar daquela gente rica, de amizades da madrinha. E com razão... Se ela vinha fugida, caindo ali em casa do senhorio o mesmo era que se meter na boca do lobo. Então ficasse com a pobreza de tia Brites, até que ele pudesse aprontar a casa e falar ao vigário da Madre de Deus... Mercê de Nossa Senhora, já possuía canoa e linhas; com vida e saúde o resto se faria.

Quando a embarcação entrou no poço, Jana bateu as palmas e o pescador bradou para a proa, mandando, como fazia Anselmo:

- Ferra o pano, rapaz

O rapazito obedeceu e perguntou, à semelhança do Joel de outrora:

- Levo os remos pra terra, mestre?

- Qual terra... Então não se pesca mais?

Na praia reinava sossego. Em algumas casas já tremiam luzes pequeninas. Todos os pescadores tinham saído ao seu mister. Ouvindo o companheiro falar em pesca, Jana perguntou:

- Você ainda sai hoje ao mar?

- Sim, vou dar umas linhadas e lançar uma corda de munzuás. E a vida minha irmã.

Ela hesitou, com um apetite secreto, e vendo o menino subir em busca dos últimos aparelhos de pesca, decidiu-se:

- Escute, Joel, se você não demora no mar eu também vou. Hein? Você me leva? Há tanto tempo não sei o que é isto... Você se lembra daquela vez, quando o pai começou a pescar e eu fui com você e Cosme? E tenho tanta coisa pra lhe dizer, nós sozinhos...

Joel refletiu um instante.

- E quanto voltar? Se for tarde?...

- Eu bato na porta de Trindade.

A essa resposta da amiga, descambou a fronte, a pensar, firmando-se no remo que havia imergido para segurar a canoa. Em seguida correu os olhos pelo horizonte, e lendo muito alto um prognóstico de mau tempo, observou:

- Olhe, Jana, veja este céu escamento.

- Isto é nada? Ora vamos.

- Pois sim... Então despacho o menino. Olá, rapaz, fica em terra. Com pouca estou aqui...

E virando-se para a amiga:

- É ali perto, por fora da restinga.

Tomou-lhe a trouxa de roupa e guardou-a na caixa de matalotagem. Recebeu os munzuás que o moço trazia, pôs-lhe no ombro a verga com o pano e mandou-o embora. Anoiteceu de todo.

A noite era escura e aveludada. Os cirros passaram. Por cima da montanha luziam como diamantes a Arca de Noé, as Três Marias e os Três Reis. O vento, abrandado, roçava de leve os cajueiros e espinheiros. Joel tornava a gozar, depois de tanto tempo, a companhia da amiga, sem mais testemunhas que Deus e as estrelas. Receios da madrinha e do senhorio, temor de responsabilidades, cuidados pelo destino de Jana, tudo, tudo se dissolvia na felicidade imprevista de possuí-la junto a si, de reatar as conversas interrompidas uma noite, naquela praia, à passagem de um canoeiro.

Diligente, jubiloso, pegou de remar para fora. E o seu remo cantava n'água sombria um estribilho alegre, de ritmo brilhante, como um hino triunfal.

A certa altura do canal alijou os munzuás. Remou em sentido contrário e fundeou em frente à ponta do baixio. Ali tomou de uma cuia de sibas e pôs-se a iscar os anzóis.

Jana prestava-lhe auxílio, falando sempre em coisas de pescaria que a encantavam. Tinha os pés descalços e a saia colhida em refegos na cintura. Estendeu as mãos, sorrindo, completamente absorta no seu prazer:

- Então, Joel, eu não era capaz de ganhar a vida como você? Olhe só isto.

Ele recebeu os anzóis. Estavam bem iscados. Riu-se também e foi lançando as linhas n'água, com um movimento de rotação para lhes dar impulso.

Depois sentou-se à borda, ombro a ombro com a amiga, e esperou.

- Vamos a ver o que vem daí. Isto é viveiro que não falha; peixe de fundo como não há em toda essa beirada. É o que me tem valido, senão...

- Mas Joel, - disse a ilhoa, continuando alto um pensamento, - você ainda não me contou sua vida... como foi, o que fez todo o tempo, desde aquele dia, hein?...

- Minha vida... pra que mais a gente se lembrar, Jana? Cosme não te disse? Eu sei que ele tocou em mim, por uma palavra que ouvi dele uma noite, neste mesmo lugar onde estamos. Minha vida... Andei a modo que amalucado, triste, desgostoso, nem sei como. Deus o sabe... Pra que mais lembrar? Não já passou tudo? Eu agora te tenho, Jana, (segurou-lhe a mão) a canoa que te embarcou essa mesma te trouxe. Oh! sina da criatura! Mas eu sempre tive fé, padecendo embora, eu te esperava, Jana, tão certo como a hora da morte. Fui lá uma, duas, três, uma porção de vezes; nunca pude ver nem tua sombra, mas dizia comigo: “Não há jeito, volto noutra viagem.”  Minha tenção estava feita. Era trabalhar, arranjar meu canto e um dia meter o pé pra a cidade, ir direitinho à casa da Madrinha e te pedir. Por que não me haviam de dar?... O pobre, por ser pobre, não quer bem, não tem licença de casar?...

Ela escutava a meio rosto, com os olhos cravados no céu, pendida sobre Joel, que prosseguia, de pé, tenteando a linha:

- Não houve precisão... Deus me ajudou, te deu coragem de sair. Eu tive um susto, Jana... Digo isto agora, quando te embarquei; eu tive... Mas, também não nego, minha vontade, mal eu topei contigo naquela praia, foi te agarrar, te pegar assim... e sumir mais que depressa, inda que fosse por debaixo d'água...

Joel, dizendo essas palavras, tinha-lhes juntado a ação, cambaleando e abraçando com exaltamento o corpo amado que ele tantas vezes carregara até o lugar das entrevistas, delirante no seu sonho de rapto. Mas teve que largá-lo, esse corpo frágil que lhe exagerava as forças, para atender às ricocheteadas do peixe na linha.

                                                         (Jana e Joel, capítulo XVI, 1899)

 

                                            SOBRE AS ONDAS

A madrugada, muito fria e ventosa, parecia ainda noite alta, noite sem estrelas, sem uma cintilação, uma faísca sequer desses fogos pálidos das alvoradas.

A Baía de Todos os Santos marulhava negra, atroadora, debaixo de uma cerração cor de ferro, com borbolhões de vagas grossas como golfadas de óleo.

Ao redor, as faixas de terra das ilhas e costas, fechadas em cortinas de vapor, tornavam mais denegrida a orla do horizonte. O vento, contínuo e possante, soprava dentre leste e sul e arrancava tais ecos ao mar, fazia-o mugir com uma voz tão longa e cavernosa que punha a imaginação em delírio e causaria horror a quem quer que não tivesse o hábito de ouvi-lo.

A embarcação que por esse crepúsculo de inverno velejava para a costa ia, apesar de frágil, sem perigo, vento à popa, com três homens resolutos e fortes, surpreendidos pelo rebojo em plena baía. Por maior que fosse a ilusão de ermo e soledade no meio do golfo escuro, eles sabiam que outras embarcações e outros marinheiros andavam por ali e além a lutar com o nevoeiro, cortando esse mesmo mar estuante e cerrado. É que naqueles fins de junho, às mesmas horas álgidas do alvorecer, as lanchas baleeiras saíam dos portos da ilha, enquanto a ela voltavam os pescadores do alto, aqueles que, mais temerários, não se arreceavam de aguaceiro ou ventania, e curtiam noitadas por cima das águas bulhentas com o mesmo sangue-frio com que lançavam as linhas, em manhãs de bonança.

Os três homens, imperturbáveis, sem temor de sinistro, deixavam correr a canoa, esperando a claridade matinal, que vinha, enfim, se anunciando por uns veios de jaspe no compacto negror de cima.

Um deles, todavia, se achava menos calmo que os outros. Não sendo pescador de profissão, tinha por isso mais pressa em franquear esse espaço cheio de estertores, murado de sombras que ressumavam geada. Seus olhos, mal acostumados à privação de luz, arregalavam-se para as trevas a doer; por vezes, galgando a canoa um cachão d'água, ele sentia passar-lhe pelos dedos colados à borda como que a língua melosa e voraz de um molosso. Cerrava as pálpebras e em silêncio, como os outros, ia escutando o mugir das ondas que se batiam ao longe de encontro a baixios, recifes e praias, produzindo aquela tremenda ressonância.

Pouco a pouco a escuridão se fez penumbra e esta se foi esgarçando a mais e a mais. Um como luar violáceo transcoou-se difusamente na cerração. A essa luz macilenta os pescadores empalidecidos entreolharam-se como se viessem do fundo de uma solapa. O mais velho estava à popa, encorujado e mudo, numa antiga japona de baeta, com um arrocho de cordel por baixo da barba a segurar-lhe à cabeça o chapéu de pindoba alcatroado. No rosto de cor azeitonada, gordo e rebarbativo, fixava-se uma expressão dúbia de sono, indiferença ou regelo; as pálpebras grossas caíam-lhe frequentemente em cochilos, e os lábios remexiam-se num incessante ruminar.

Perto dele, sentado na pá de um remo, sobre o monte de redes, o seu moço de pescaria, coberto com um deplorável baetão vermelho, esfregava as mãos calosas, levava-as à cara de tez mulata e apertava os queixos, soprando e assobiando para aquecer.

Quando este se voltou para a banco mais avante, junto ao mastro da vela, deu com o rosto do terceiro, e neste rosto de tom fulvo um olhar duro e hostil que parecia desafiá-lo. Com os dentes cerrados e uns estremecimentos nervosos ao longo da face larga, onde apenas se pintava um buço, Pedro dava com efeito ares ameaçadores e de vez em quando sinais de impaciência. Seu busto reto e sólido vestia-se tão somente de uma camisa de flanela alvacenta e muito justa, que lhe desenhava a arca do peito; no lugar da gola uma cava funda deixava emergir um pescoço taurino e a cabeça redonda com o cabelo a voar, em caracóis.

Quereria também zombar do rigor do tempo?

Fazendo a si mesmo esta pergunta, o moço de pescaria baixou os olhos. Dir-se-ia humilhado à vista do altivo camarada. E quis dissimular o seu velho ressentimento com alguma chalaça a propósito dos chuveiros noturnos que os haviam encharcado a todos. Não achou palavras. O sorriso que tentara não passou de uma careta. E mudou logo de posição, a relembrar-se de cousas passadas, havia meses.

Era maior caso da sua vida solteira e sem norte. Como esquecê-lo?...

Certa manhã caminhava a esmo pelo baixio de noroeste, acolá; na Ponta das Baleias. Era de vazante a maré e o sol despontava. Uma rapariga em trajos de banho descia a passos de garça para a praia. Ele viu-a mergulhar as pernas, tímida e ardilosa, com espasmos de frio, e ir pouco a pouco se escondendo n'água, até perder o medo e lançar-se de bruços naquele seio prateado e líquido que já resplandecia aos clarões matutinos. Seguiu. Mais adiante parou e volveu os olhos atrás. Ela continuava aos abraços, abraços violentos com o mar; e o mar, fresco e túmido, lhe sorria como um velho enganador. Ainda uma vez marchou e tornou a voltar-se para ver. A moça avançava agora, destemida; avançou e meteu-se n'água até a garganta. - Oh! temeridade! Quando ele quis avisá-la já ela agitava os braços e gritava. Estava no perau, atolada, agarrada pelos pés. Certo disso apressou-se, correu, lançou-se a nado e foi cingi-la fortemente pelos ombros, no momento em que o perau, só dando-a mais um palmo, lhe fazia beber a grandes sorvos. Alcançou a praia; mas a banhista, quase sem sentidas, deixou-se cair mole na areia. Carregou-a até à porta de casa bem satisfeito com essa inesperada fortuna de salva-vidas. Viram-no passar, e acudiram com louvores ao seu ato. A moça era filha de uma ilhoa com um João Português. Os pais lhe agradeceram a boa ação, e ela mais tarde, tornando a si, sorriu-lhe. Chamavam lhe Mercês... E foi tudo.

Ah! mas porque havia de ser ele e não outro que salvasse?... Dali por diante era a linda boca a lhe mostrar o lindo sorriso, e ele a pensar que tivera nas mãos, que tocara e sentira a polpa fina daquele corpo branco e torneado... Foi um suplício longo, suplício de dúvidas, de desejos, de escrúpulos. Enfim, uma farsa cega da alma pôde mais que os seus escrúpulos e dia houve em que supôs ter nas malhas da rede a sua mais rica pescaria. “Engano, Sambeiro!” Engano, sim, porque logo a ambição cresceu no peito de outro homem, que lha roubou deslealmente... Esse homem, esse ambicioso chamava-se Pedro Carpinteiro e estava ali sentado, bem perto dele, no banco da vela...

Desfechando um murro na borda da canoa, como para desentorpecer a mão, Zacarias Sambeiro tornou a olhar o ladrão da sua pescaria. Tinha-lhe medo? Não, mil vezes não. Mas Pedro, carpinteiro de profissão, tinha amigos; tinha casa e fartura; ele, Sambeiro, era sozinho no mundo e morava num quarto de aluguel do Convento, aquele casarão de cem moradores, assim chamado porque abrigava, lá na Ponta das Baleias, os que só tinham de seu o sol e a lua. Pedro vestia-se de boa ganga, e assim ia às missas, com pesos castelhanos a tinir nas algibeiras; ele, Zacarias, vestia umas calças velhas com remendos e os bolsos furados. Pedro, para encurtar razões, era filho desse velho André que vinha ali à popa da canoa, pescador de estima, que entrava até na sala do senhor cirurgião e conversava com o vigário e o governador da ilha.

- Mas foi uma senhora traição - disse consigo, vendo a canoa pender quase alagada... Traição foi, e se este mar lhe faz outra... não era bem feita?

Nesse momento o olhar do velho, muito sisudo e severo, cravou-se-lhe no rosto; e ele tornou a falar, sempre consigo:

- Cala-te, Sambeiro, que a gente também paga pelos maus pensamentos...

                                                           (O Sargento Pedro, capítulo I, 1910)