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José Lins do Rego

EXILADOS EM FERNANDO DE NORONHA

Eles iam para Fernando de Noronha. O governo caíra em cima dos centros operários com uma fúria de ciclone. Não ficou um que não fosse arrebentado e que os seus diretores não comessem virola e cadeia. O Dr. Pestana, metido em prisão por umas horas, teve a mulher para gritar por ele, habeas corpus que o livrasse dos constrangimentos. Os chefes operários iriam para Fernando. Lá estavam os ladrões e criminosos curtindo penas. Para lá iriam os operários. Sebastião e o povo da padaria de seu Alexandre estavam na lista para seguirem. Diziam os jornais que Sebastião era um perigoso agitador e a padaria onde ele trabalhava um foco terrível. Fernando de Noronha com eles.

Seu Lucas andava triste. Foi ao desembargador que ele curara da mulher, mas o homem lhe desenganou. Ninguém fosse falar ao governo em favor de operário. O governador queria fazer uma limpeza na cidade, porque a canalha não deixava ninguém descansar com esta história de greve todos os dias. Ele estava perdendo o tempo. E a mulher de Jesuíno e os filhos nas grades do jardim do seu Lucas, chorando.

         - Vai para casa, mulher! - dizia o pai de terreiro. Ele volta! Um dia ele volta!

E os fihos de Deodato e os de Simão pedindo notícias a seu Alexandre:

         - Foram para os infernos! Perderam-se porque quiseram! Agora que aguentem!

Mas seu Alexandre se lastimava. Os homens sabiam trabalhar de verdade. Os outros que tinham vindo substituí-los não valiam nada. Onde encontrar um boca-de-fogo como Deodato, um pãozeiro como Ricardo, um masseiro como Simão? Seu Antônio foi ao patrão e disse mesmo:

         - Precisas fazer voltar esses homens senão eu me retiro.

         - Voltar como, homem de Deus? Já falei com o Dr. Demócrito. O governo faz questão de castigar, de dar um termo a esta greve.

Não havia mesmo jeito. Os homens iriam mesmo para Fernando. Seu Lucas, no jardim, andava triste, debruçava-se sobre as roseiras sem entusiasmo. Os negros iriam para Fernando. Jesuíno e Ricardo na ilha com os ladrões e criminosos. O jardineiro olhava o chão pensando nos homens. O que tinham feito eles demais? Jesuíno e Ricardo não mataram ninguém, não tiraram o alheio. Iam para Fernando. Seu Lucas viu o sol nas suas plantas sem saber o que o sol fazia. Botava água nos canteiros, sem saber o que a água fazia. Os amigos dele seriam mandados de navio para o mar, para o meio do mar, com ladrões e assassinos. E os outros? Simão e Deodato? Eram bons também, as mulheres também chorariam de fome. Por que não mandavam o Dr. Pestana? De cócoras, mexendo na terra molhada, o velho censurava as coisas, o velho sentia a miséria das coisas. Aquilo era uma ruindade sem tamanho.

Numa manhã, os homens saíram para Fernando. Ricardo, Deodato, Simão, Jesuíno para um canto do navio olhavam o Recife coberto ainda de sombras da madrugada. Viam vapores grandes no cais, catraieiros trabalhando àquela hora. Mas havia um silêncio grande, um silêncio medonho nos barcos dormindo e nas águas do rio. Eles olhavam para o lado do cais e viam as casas e a terra que iam deixar. Simão para um lado, triste, de cabeça baixa, Deodato dizendo:

         - Se ao menos eu pudesse ver os meninos!

E o negro Jesuíno sentado em cima de umas cordas. Sebastião só fazia dizer:

         - A gente volta. Um dia a gente volta.

Ricardo olhava para todos. Ele sentia uma vontade desesperada de vomitar, aquele cheiro aborrecido de bordo lhe embrulhava o estômago. Iam para Fernando. Conhecera no engenho um homem, um assassino que estivera em Fernando de Noronha. Chamava-se Noé e contava tanta coisa triste de lá. Fernando de Noronha, ninho de tudo que era homem sem remédio e sem jeito. Ele ia para lá e não sabia o mal que tivesse feito.

         - Homem, dizia Jesuíno para Simão, o governo só faz isto porque não tem família.

         - Eu até nem penso mais nos meninos, respondia Simão. Vai se perder tudo, Jesuíno. Vai se perder tudo.

Deodato era mais forte:

         - Não faz mal, eles arranjam jeito de viver.

Sebastião, de pé:

         - É isto mesmo. Se a gente esmorecer, sofre mais.

Ricardo se lembrava da mãe Avelina. Com que alegria ela recebera a carta dizendo que ele ia! Os negros todos da rua se assanharam na certa com a notícia. Ricardo ia chegar calçado de botina e de gravata no pescoço, como o José Ludovina no dia da eleição. Ricardo no Recife não tirava a botina dos pés, mas agora era isto que estava se vendo. Cercado de água por todos os lados, para o resto da vida. Morreriam por lá.

Agora o sol já cobria o cais, já os sobrados altos se mostravam para eles. E o navio ia sair com pouco mais, com as máquinas dando sinal. Eles viram então seu Lucas em pé no cais. O vapor já não estava atracado. Seu Lucas dava com as mãos para eles. O negro velho em pé, com o sol na cabeça branca, dando com os braços para eles. Ricardo olhava para o amigo. Sempre ele tinha o que lhe perguntar nas grades de seu jardim. O negro velho gostava dele. E o vapor ia saindo devagarinho. Simão botava as mãos na cabeça para chorar. Deodato firme e Jesuíno gritando:

         - Lá está pai Lucas! Pai Lucas, toma conta dos menino!

Sebastião não dizia nada. O vapor ia virando para o outro lado e eles correram para dar com as mãos para o velho amigo. O negro velho em pé como uma estaca de cercado no cais de cimento.

Os negros bons iam para Fernando. O que tinham feito eles? dizia seu Lucas voltando para casa. O que tinham feito eles, os negros que não faziam mal a ninguém? Jesuíno era uma besta de bondade, Ricardo tão bom! Os outros deviam ser também. O que tinham feito eles para ir pra Fernando? Seu Lucas não sabia. Queriam de comer, queriam de vestir, queriam viver. E seu Lucas chegou no jardim com esta dor no coração. Vira os seus negros no vapor mandados para Fernando. Murchassem as roseiras, cortassem as formigas as folhinhas das plantas, secassem os canteiros. Os seus negrinhos iam pra Fernando. Que tinham feito eles para ir pra Fernando? Seu Lucas cuidava das plantas. Os trens passavam roncando pelas grades de seu jardim. Passavam vendedores cantando as suas vendagens. O homem da vassoura parou para falar:

         - Soube, seu Lucas, o navio saiu hoje cheio de gente. Da minha rua foi um. Ninguém fez nada não. Foi por causa da greve.

Seu Lucas não disse nada e o homem se foi. O feiticeiro sentiu uma cousa de fora entrando dentro dele. Era bem diferente da entrada de Deus em seu corpo. Era uma coisa que nunca tinha sentido em sua vida. Tinha sofrido muito neste mundo de Deus. Prisões, cadeia, mas tudo ele aguentava com fé, aguentava sabendo que era bom para ele sofrer. Agora não. Uma coisa de fora mexia com o negro velho. O sol queimava as folhas de suas plantas, as roseiras abriam-se para o sol. Seu Lucas não via o jardim, a sua cássia-régia gloriosa, as dálias cheias de vida. Não olhava, não via. Os seus negrinhos iam para Fernando. Num mar navegando, num mar carregados para o cativeiro. Ficou pensando. Uma coisa esquisita entrava pelo seu corpo. Que fizeram os negros? Que fizeram Ricardo e Jesuíno? Mataram? Roubaram? O governo mandara os infelizes pra Fernando.

Seu Lucas ficou assim até de noite. Era noite de culto, noite de rezar para o seu Deus.

Os cantos das negras, os passos das negras, no Fundão, tiniam no terreiro com os instrumentos roncando. Naquela noite o negro velho vestia as suas vestes sagradas sem saber o que ia fazer. Todos já estavam prontos para os ofícios, para as rezas familiares. Seu Lucas de lado tirava as rezas. Era o cantar mais triste que um homem podia tirar de sua garganta. Os negros respondiam no mesmo tom. E foi crescendo a mágoa e foi subindo a queixa para o céu estrelado do Fundão. O sapatear dos negros estremecia o chão, os instrumentos acompanhavam as queixas, os lamentos. E com pouco seu Lucas começou a dizer o que não queria, o que sentia. As palavras do ritual não eram aquelas que lhe queriam sair da boca. Deus estava no céu. Ogum no céu com S. Sebastião. Ele queria cantar outra coisa que não aquilo que ele cantava todas as noites. E os negros na dança iam ouvindo o que pai Lucas dizia. O mestre falava dos negros que iam pra Fernando.

         - Que fizeram eles? Que fizeram eles?

         - Ninguém sabe não.

Que fizeram os negros que iam pra Fernando? A voz de Lucas vibrava. Todo o seu corpo se estremecia.

         - Que fizeram eles que vão pra Fernando?

E os negros respondiam misturando a língua da reza deles com as perguntas do sacerdote, de braços estendidos para o céu.

         - Que fizeram eles? Ninguém sabe não!

E o canto subia, subia com uma força desesperada. As negras sacudiam os braços para os lados como se sacudissem para fora do corpo. Os peitos, as carnes se movimentando numa impetuosidade alucinante. A terra do Fundão estremecia. Pés de doidos, de furiosos furavam a terra. E seu Lucas com a boca para cima misturando as mágoas com as suas rezas:

         - Que fizeram ele que vão pra Fernando? Ninguém sabe não!

O sacerdote quebrando o ritual para deixar escapar a sua dor. Seu Lucas era mais um Deus naquela hora. Como um homem qualquer ele falava pelos pobres que no mar se perdiam. O canto dele varava a noite, varava o mundo:

         - Que fizeram eles que vão pra Fernando? Ninguém sabe não!

                                                                     (O moleque Ricardo, 1935.)

O ENGENHO DE SEU LULA

Chegou a abolição e os negros do Santa Fé se foram para os outros engenhos. Ficara somente com seu Lula o boleeiro Macário, que tinha paixão pelo ofício. Até as negras da cozinha ganharam o mundo. E o Santa Fé ficou com os partidos no mato, com o negro Deodato sem gosto para o eito, para a moagem que se aproximava. Só a muito custo apareceram trabalhadores para os serviços do campo. Onde encontrar mestre de açúcar, caldeireiros, purgador? O Santa Rosa acudiu o Santa Fé nas dificuldades, e seu Lula pôde tirar a sua safra pequena. O povo cercava os negros libertos para ouvir histórias de torturas.

Fazia-se romance com os sofrimentos das vítimas de Deodato. Quando o carro do capitão Lula de Holanda passava, corria gente para ver o monstro, todo bem vestido, com a família cheia de luxo, que ia para a missa. Um jornal da Paraíba falara em crimes da escravidão e nomeava o Santa Fé, o Itapuá, como de senhores algozes. D. Amélia leu o artigo e chorou com as palavras impiedosas. Não era assim. Tudo aquilo perturbava a vida do Santa Fé. Ela bem que sentia que o marido vinha mudando de humores. Raras vezes era aquele Lula de outrora, de olhar cismarento, o homem de tanta ternura para com sua mulher. Agora não parecia que a quisesse como antigamente. Via-o no pegadio com a filha que voltara do colégio de Recife, uma moça feita. Neném era a cara do pai. Dela não tinha coisa nenhuma. Achava linda a sua filha. Tinha aqueles cabelos louros, e os olhos azuis, a pele macia, branca como alfenim. E era uma menina doce, tão sem gênio que encantava a todo o mundo. Viera do primeiro ano do colégio das freiras cheia de devoção, com modos de moça. O pai cercava-a de cuidados, de um zelo que ela, como mãe, achava até exagerado. Seria a sua filha a moça mais bem educada da várzea. Iam ao Pilar de carruagem, e reparava como o marido olhava embevecido para a menina, no banco da frente, vestida como gente grande. Sabia que o povo falava mal de seu marido. Via os olhares que sacudiam em cima de todos quando entravam na igreja. No tempo de seu pai tudo era bem diferente. Viam-se cercados dos conhecidos do Pilar, das filhas do juiz, das irmãs do padre, dos amigos do capitão Tomaz. Agora era sair do carro e entrar na igreja: voltar da igreja para o carro. O que haveria contra Lula para aquela hostilidade? Seria que fosse inveja? Lula era homem de sua casa, de certo trato, de orgulho que ela não apoiava. Era o orgulho do marido. Havia nele uma maneira de sentir as coisas que talvez desgostasse a gente do Pilar. Lula falava de sua família de Pernambuco com soberba. Não procurava discussão com o marido por motivos assim, sem importância. Deixava que ele ficasse com seu orgulho de raça. Para que brigar? Família era para Lula coisa sagrada. Fora infeliz com o pai, sofrera o diabo com a mãe viúva, perseguida pela política. Lula tinha razão de falar do seu povo com aquela arrogância toda. Em casa ele só via a filha. Dizia sempre que Neném era a cara da sua mãe. Nunca vira semelhança igual. Tinha tudo da família de Recife, dos velhos Chacon, gente que sabia entrar e sair, gente de trato, sem aquela bruteza dos engenhos. D. Amélia não contrariava o marido mas sentia-se com aquele falar de desprezo com os seus. Por que Lula falava assim contra o povo dos engenhos?

Não era ele parente do povo do seu pai? Até aquele dia não tivera a menor rusga com o seu marido. O que ele queria que fizesse, fazia sem protesto. Neném era como se só fosse filha dele. Lula fazia de pai e de mãe da menina. A princípio achou bonito aquela dedicação do marido. Tudo que fosse para Neném teria que ser feito por ele. Agora via que Lula exagerava. Moça só se entendia bem com a mãe. Seria a mãe quem saberia melhor de sua precisão, de seus desejos. Lula fazia de Neném toda a razão de sua vida. Quando a menina estava no colégio escrevia cartas compridas, longas cartas que ela não sabia o que mandavam dizer. Que assunto teria o seu marido para escrever tanto a uma filha moça de colégio? Não lhe falava daquilo para que ele não desconfiasse. Neném escrevia muito ao pai. Às vezes, Lula lhe lia as cartas da filha, doutras não lhe mostrava nada. Perguntava-lhe:

         - Então, Lula, o que Neném mandou dizer?

O marido dava uma desculpa qualquer e mudava de assunto. Neném era uma menina tão cândida, tão doce. Tinha receio que as cavilações do pai estragassem a menina. Por mais que temesse não se meteria a contrariar o marido. Lembrava-se da fúria que se apoderara dele quando o procurou para condenar as ações de Deodato. Sabia que os negros estavam apanhando sem necessidade e procurara Lula para lhe falar daquela miséria. Nunca vira uma pessoa exasperar-se tanto. Era como se ela tivesse se revoltado. Vira o que sua mãe sofrera com a malquerença de Lula. Pobre de sua mãe que se dera como uma escrava aos seus deveres. Fora ingrata com ela. Uma das coisas que mais lhe doíam era pensar na morte dela, depois daquela noite da discussão com Lula. Tudo por causa de Neném. Aquele amor de seu marido, aquele cuidado pela filha, não podia ser boa coisa para a criação da moça. E era todo o pensamento de D. Amélia. Os negros do engenho se foram, até as negras de sua mãe não quiseram ficar na cozinha. Os do Santa Rosa haviam ficado na senzala. Eram amigos do senhor de engenho. Se o seu pai estivesse vivo, tudo seria como no Santa Rosa. Via-se D. Amélia cercada de pensamentos que não desejava que fossem seus. Lula não gostava dos negros. No dia da abolição os pobres foram para a frente do engenho, doidos de alegria. Teve medo. O feitor ganhara a catinga, e Lula trouxera para a sala os clavinotes armados. Os negros cantavam no pátio, com uma fogueira acesa. Ninguém dormiu naquela noite. A negra Germana chorava como menina. A cantoria era de coco, era de reza, era dança, e ao mesmo tempo parecia um bendito de igreja. Lula trancara Neném no quarto, e de clavinote entre as pernas ficara sentado no sofá, à espera de inimigo que lhe viesse ao encontro. A noite se foi, a madrugada apareceu. Na estrada, os negros dos outros engenhos passavam aos gritos. Gritaram na porta da casa-grande. Lula permanecera na porta e eles partiram. Era um cabra do Pilar, com um grupo de negros.

         - Capitão, nós estamos atrás de Deodato.

Lula, com a voz trêmula de raiva, não se conteve. Aos gritos respondeu que fossem para o inferno. O cabra não continuou, mas quando o capitão Lula de Holanda cessou a raiva ele foi dizendo:

         - Capitão, nós estamos aqui para pegar o seu feitor. É ordem do delegado.

         - Ordem de quem? Ordem de quem?

E D. Amélia viu o seu marido pegar do clavinote e apontar para os negros:

         - Cambada de cachorros, saiam de minha porta senão mando fogo.

Os negros se foram de cabeça baixa, e ela viu pela primeira vez uma coisa horrível. O seu marido empalidecer, procurar o sofá e cair com o corpo todo se torcendo, como se tudo nele fosse se partir. Aquilo durou uns minutos, mas foram os instantes piores da sua vida. A baba branca que saía da boca de Lula, o bater desesperado dos braços, das pernas, fizeram-lhe medo. Correu para dentro de casa. E não havia uma viva alma lá dentro. Todas as negras tinham se ido. A casa vazia. Só Olívia no quarto falava, falava sem parar. Voltou para a sala e viu que Lula voltava a si, e teve pena de ver o marido no estado em que estava.

         - Amélia, Amélia, manda Germana preparar um escalda-pé para mim.

E com aquela impressão terrível voltou para a cozinha. Lá havia um silêncio mortal. A cozinha do Santa Fé, sem uma negra, despovoada de sua gente. Todos se foram, todas as negras ganharam o mundo, até a negra Margarida que criara Neném. Não havia quem quisesse ficar no Santa Fé. O ataque de Lula obrigara-a a pensar na vida com medo. O marido era um homem doente. Vivera com ele até aquele dia e nunca acontecera nada demais. Era um homem de boa saúde. E de repente vira-o naquele estado de penúria. Sofria de ataques. E quando apareceu com a bacia com a água quente, Lula parecia que voltara da morte. Tinha os olhos fundos, a cara de um homem dez anos mais velho. Ficara ele em silêncio absoluto até o dia seguinte. A noite, na casa-grande, Olivia resmungava, falava, com aquela agonia de sempre. Ela estava só, completamente só. Lula deitara-se para dormir. Começou a ter medo. Era capaz de os negros libertos de outros engenhos aparecerem ali para atacá-los. As cantorias do coco enchiam a noite de um batecum que não parava. Agora percebia bem o canto da negrada, lá para as bandas do Pilar. Os negros dançavam de alegria, na festa da liberdade. Os negros de seu engenho, os que foram de seu pai, estavam no coco fazendo o que bem quisessem.

[...]

O senhor de engenho do Engenho Velho começou a luta contra o Santa Fé. O Dr. Eduardo do Itambé, moço de fama, advogado de força, tomara a defesa do seu Lula. Todos os senhores de engenho da várzea ficaram com ele. O José Paulino do Santa Rosa mandou chamar o catingueiro e pediu para ele parar com a questão. O homem, porém, estava com vontade de ir longe. Viu-se então seu Lula criar alma nova para lutar pela terra. O homem calado, taciturno, deu para andar pelo Pilar, pelo Itambé, pela Paraíba, com uma energia que não se esperava dele. Não era um ladrão de terra. No jornal O Norte apareceu um artigo assinado pelo seu adversário pedindo justiça ao governador. Sentia-se perseguido pelos senhores de engenho da várzea. Seu Lula revidou com palavras duras. Falou em Nunes Machado, na família dos homens sérios, na miséria da injustiça. E a questão correu, com a diligência e os incidentes normais. Mas tudo ficaria sem nada demais, se não fosse a agressão que o cabra do Engenho Velho tentou contra seu Lula no cartório de Manuel Viana. Quando descera ele do cabriolé e ia falar com o escrivão, o homem apareceu-lhe para tomar satisfações. Seu Lula virou-lhe as costas e o homem insistiu. Então trocaram palavras e o homem levantou a mão para seu Lula, com gritos de injúria. Manuel Viana evitou a agressão.

E pela várzea correu a história como um crime. Tinham querido dar no senhor de engenho do Santa Fé. O coronel José Paulino do Santa Rosa montou a cavalo e foi ao Engenho Velho. E de lá voltou com a questão morta. No outro dia passariam a escritura da propriedade. Comprara o Engenho Velho para servir ao inimigo apertado. Dera pelas terras mais do que elas valiam para que ali na várzea não existisse um cabra atrevido que ousasse fazer aquilo que estava fazendo com o Santa Fé.

Seu Lula e a família foram de cabriolé agradecer a intervenção generosa do vizinho. E nem parecia aquele homem calado, seco, taciturno. Falou naquela tarde para espanto de sua gente. D. Amélia e a filha na conversa com as moças da casa-grande, e seu Lula a falar em voz alta, a contar casos de parentes do Recife, a falar de Nunes Machado, das lutas do seu pai, no berço das matas de Jacuípe. Quando voltaram para a casa, já era de noite. As cajazeiras da estrada pareciam cobertas de cal, de tão brancas. As rodas do cabriolé enterravam-se na areia fofa e os cavalos corriam e as campainhas acordavam os pássaros dormindo, espantavam os calangros. Uma raposa cortou a estrada aos saltos, e os faróis do carro pareciam olhos que se encandeavam na luz branca da lua. D. Amélia e Neném falavam das filhas do coronel José Paulino, da alegria, da bondade de todas elas. Mas seu Lula de repente sentiu-se coberto de vergonha. Era um medroso, era um homem sem força, no meio dos outros. O boleeiro desviava o carro duma poça d’água. Mais para diante era a casa do seleiro Amaro, homem valente que viera de Goiana, com uma morte nas costas. Seu Lula passou pela porta do seleiro e pela cabeça atravessou-lhe uma ideia como um relâmpago. Por que não se servira do velho Amaro para se defender contra o cabra atrevido? Poderia ter liquidado o atrevido e não ficar, como ficara, um homem que precisara da proteção dos outros para resolver uma questão que era sua só. Não era um senhor de engenho. O carro parou na porta, e a lua iluminava os números do portão: 1850. Tempo de fartura, de força. Entraram, e o cheiro de mofo da sala de visita era como um bafo de morte. O piano, os tapetes, os quadros na parede, o retrato de olhar triste de seu pai. O capitão Lula de Holanda pegou no braço da cadeira, e a sua vista escureceu, um frio de morte varou-lhe o coração. Caiu no chão, estrebuchando. A mulher e a filha pararam estarrecidas perto dele, que batia com uma fúria terrível. Era o ataque. D. Amélia não deixou que Neném se chegasse para perto, mas ela pegou-o, pôs-lhe a cabeça no seu colo, e as lágrimas corriam de seus olhos sobre o pai, como morto, parado, agora, como se estivesse num sono profundo. Na cozinha, D. Amélia esquentou a água para o escalda-pé do marido. Passara uma tarde tão feliz, e agora Lula tinha aquele ataque, na presença da filha. D. Olívia falava muito alto, gritava. A lua entrava pelas telhas de vidro da casa-grande, a lua que pintava as cajazeiras, que dava ordens em D. Olívia, que fazia os cachorros uivarem na solidão.

Dois dias depois, seu Lula ainda estava de cama e o coronel José Paulino passava no Santa Fé para oferecer ao vizinho a patente de tenente-coronel do batalhão da guarda nacional que o governo pedira para ele organizar no Pilar.

                                                                                (Fogo morto, 1943.)

 

SEU LULA DE HOLANDA

O caso de Neném com o promotor crescia para ele cada dia. Uma desconfiança constante não o deixava descansado. Na tarde em que viu o rapaz passar pela sua porta, num cavalo muito bonito, com destino ao Santa Rosa, imaginou que lhe preparasse uma traição em casa. Neném e Amélia estariam combinadas para qualquer movimento contra ele. Viu-o sumir-se na estrada e foi ver se a filha estaria na janela do alpendre do jardim. Lá estava Neném, debruçada, com os cabelos louros soltos. Seu Lula, quando a viu, não teve força para andar para a frente, mas gritou-lhe:

         - Hein, menina sem-vergonha? Eu bem sabia que tu estavas aí esperando aquele cachorro, hein?

Neném, estupefata, não teve coragem para uma palavra. Mas D. Amélia chegou-se para saber o que se passava.

         - Tu chegaste aqui, hein? Tudo está combinado.

         - Combinado o que, Lula?

         - Hein, pensam que me enganam? Vai lá para dentro, Neném.

D. Amélia ficou só com ele. Fez-se um silêncio pesado entre os dois. Foi o marido quem começou :

         - Eu sei de tudo, hein, Amélia? Vocês duas pensam que me enganam, não é, Amélia? Hein, Amélia?

D. Amélia, mansa, com a voz trêmula:

         - Mas Lula, você não está vendo que não há coisa nenhuma? Que tudo isto é sonho seu?

         - Sonho, hein, Amélia ? Ninguém me engana. E com a voz dura: Mato esta menina e ela não se casa com este cafajeste. Ouviste, Amélia ?

E saiu para o alpendre onde a tarde amaciava tudo. Era tarde de junho, de verde pelos matos, de campo coberto de flores. Pela estrada passava uma tropa de aguardenteiros. Um homem parou para falar com o Coronel Lula. Era um sujeito de Goiana, velho conhecido do capitão Tomaz.

         - Coronel, tem açúcar sumeno?

Seu Lula fez um esforço tremendo para falar :

         - Não tem não, seu Félix. Vendi tudo para o sertão.

Mas o homem queria falar mais.

         - Coronel, não tem aqui uma terrinha que me ceda para um mano meu? É homem trabalhador, Coronel, mas anda muito perseguido lá em Goiana. Tudo por questão de uma filha a quem fizeram mal a ela. E o mano teve que fazer um serviço no freguês. Família é o diabo, meu Coronel.

Seu Lula despertou com aquela história e quis saber de tudo, por que o homem matara o sujeito.

         - Coronel, o tal era casado. E desencabeçou a menina. Ora, um homem de sentimento não podia fazer outra coisa. Comeu o bicho na faca. Foi pra rua, mas estão perseguindo ele por causa dum senhor de engenho que protegia o canalha.

Seu Lula dava o sítio ao irmão do velho Félix. E quando ele se foi, começou a imaginar em Neném. Não deixaria que a sua filha, que ele criara com tanto mimo, se casasse com um tipo de rua, um filho de alfaiate. Não, tudo que estivesse em suas mãos ele faria para evitar. O pobre irmão de Félix tivera coragem para liquidar o miserável que desgraçara a filha inocente. Era o que faria também. Mataria, sim, mataria o atrevido. Estava só, era doente, não tinha a fortuna de José Paulino, mas saberia defender a sua filha com a vida, com a sua morte, se preciso fosse. A casa-grande estava ainda no escuro e a voz de sua cunhada começava a importuná-lo. Era um falar rouco, com as mesmas palavras. Nunca se importava com o que ela dizia dias e noites seguidas, a falar sem que desse por isto; e no entanto, agora dera para crescer-lhe aos ouvidos como gritos. Amélia acendeu o candeeiro da sala de jantar e mosquitos rodeavam a luz em enxames. A lâmpada do quarto dos santos queimava o azeite da lamparina de prata. Seu Lula chegou-se para lá e viu a cara comprida, os braços estendidos, as mãos sangrando de Deus. Olhou bem para a cara de seu Cristo. Era uma cara que ele gostava de ver, de sentir a dor que ela exprimia. Deus fora assim na terra, torturado, surrado, morto pelos infiéis. A casa, no vazio de todos os seus. Ele só naquela casa sabia que Deus derramara seu sangue para que o mundo o amasse. Não. Não, ele não deixaria que a sua filha se perdesse, se entregasse ao camumbembe. Por que amava a sua filha um miserável daqueles? Que havia nela que a conduzisse para a degradação? Antes morta, antes no caixão que nos braços do camumbembe. Ajoelhou-se para rezar. Ali, só no quarto, com os santos pelas paredes, com a imagem descarnada de S. Francisco, com o corpo estendido no túmulo de S. Severino, ele se sentia na maior intimidade com o seu Deus, com a sua Providência. Rezou até tarde da noite. Uma dormência tomou-lhe a perna direita. Amélia chamou-o para a ceia, e só com a voz da mulher lembrou-se que estivera ali mais de duas horas. Começara a chover forte. As portas da casa-grande estavam fechadas. Saiu para examinar os ferrolhos, as trancas. Tudo estava muito bem fechado. Neném não viera para a mesa do chá. Quis que ela viesse. Mandou que a mulher fosse chamá-la. E quando a viu de olhos vermelhos de chorar, com a cabeça baixa, imaginou o ódio que não lhe teria. Era pai, e pai era somente para aguentar as fraquezas dos filhos. Estava sereno. Deus lhe dera calma, força para vencer os tumultos de sua alma. Não falou. Amélia parecia com medo de qualquer coisa. O vento batia nas portas, bulindo com os ferrolhos. Tudo estava muito bem trancado. Então, seu Lula pôde olhar para a sua filha como uma propriedade sua, que ninguém tocaria. Uma onda de ternura envolveu-o naquele instante. Teve vontade de acariciá-la, de tocar nos seus cabelos louros, de vê-los entre as suas mãos como nos tempos de menina. Por que não era mais aquela menina que ele punha nos joelhos, que ele criara como a uma santa? Por que amaria aquele tipo, por que fugia de sua casa, de seus olhos, de suas mãos? Seria castigo de Deus? Não podia ser castigo de Deus. Deus era seu amigo, era todo seu. Olhava para Neném, e via nela a imagem de Nossa Senhora, a imagem de manto azul, de cabelos compridos, aquela que não fora tocada pelos homens. Não, Neném não poderia se entregar a um camumbembe, um pobre diabo. Quando ele se levantou para ir para o quarto de dormir, lembrou-se da infância, das noites de chuva, quando ia botá-la na cama, tão mansa, tão serena, tão do céu naqueles instantes. Não, ele não permitiria que mãos de homens fossem magoar a sua filha.

[...]

Seu Lula estirou-se no marquesão. Nisto ouviu passos de cavalo rondando a casa-grande. Acertou bem o ouvido e na calçada do alpendre batiam cascos de cavalos. De repente lhe veio à cabeça a ideia de um rapto. Sem dúvida que o promotor haveria combinado o furto de Neném. Estremeceu com aquela ideia, e quando deu por si já estava com o velho clavinote. Foi ao quarto da filha e esta ainda estava vestida, de vela acesa, lendo um livro de orações. A sua cara devia ser de uma fúria desesperada, porque Neném se levantou com medo. Não lhe disse nada, mas chamou Amélia que se recolhera.

         - Amélia, hein, Amélia, daqui ela não sai.

A mulher alarmada procurou falar e não pôde. Seu Lula de arma nas mãos andava de um lado para outro, como se estivesse acossado, pronto para um ataque de vida ou morte.

         - Mato estes cachorros, hein, Amélia, tudo estava preparado.

Na porta da sala de visita parou para escutar numa posição de caçador que espreita. Ouviram-se muito bem as passadas de um cavalo.

O miserável pensa que estou dormindo. Mas este desgraçado vai ver quem sou, hein?

As negras tremiam. D. Amélia correra para o oratório, e Neném chorava alto, enquanto D. Olívia no quarto chamava pela escrava que a criara.

         - Ó Doroteia, ó Doroteia, vem me catar, Doroteia.

Ouvia bem a voz de D. Amélia, rezando alto.

         - Para Amélia, para. O desgraçado vai ver.

Aí seu Lula levantou a voz, como se falasse com o inimigo a dois passos:

         - Miserável, sai de minha porta.

A chuva intensa e as passadas do cavalo continuavam na calçada do alpendre.

Seu Lula gritou outra vez com mais força.

         - Eu te mato, miserável.

Fez-se outra vez silêncio. Só a chuva roncava com a ventania que batia nas portas. O cavalo continuava pisando forte na calçada. D. Amélia chegara-se para perto do marido para contê-lo. Seu Lula empurrou-a para o lado.

         - Eu mato este cachorro.

E num esforço desesperado, chegou-se para a porta, e abriu o ferrolho de ferro. O cavalo batia no tijolo da calçada. Seu Lula, com a porta aberta, correu para o alpendre e se ouviu o disparo rouco do clavinote. Com o tiro houve uma correria para o terreiro da casa-grande. Pouco depois o boleeiro Macário chegou espantado. Saíram com uma lamparina e encontraram estendida no chão, banhada em sangue, uma das bestas da almanjarra que havia saído do curral e se abrigara no alpendre, com o frio da noite. Seu Lula estava lívido, em pé, como se tivesse voltado dum imenso perigo. Não via nada e com o corpo todo estendeu-se no chão, com o ataque.

                                                                          (Fogo morto, 1943.)