Senhor José Lins do Rego,
Sois um tema literário e humano bastante complexo, ao contrário do que me dissera o companheiro que comigo se congratulava, por me haver designado o Presidente da Academia Brasileira para saudar-vos nesta cerimônia de recepção. As vossas facilidades são enganosas aparências que se desfazem com a meditação da obra e do homem, assim como sucede com as paisagens distantes, muito simples nas grandes linhas da dimensão fotográfica, porém de perigoso e complicado acesso para os viajantes das montanhas, dos vales, das florestas e dos descampados, que de longe se confundem em lisuras verdes e plácidos caminhos.
Há mais de vinte anos que ando convosco, como encantado leitor dos vossos romances e crônicas, revendo nas vossas as terras da minha infância, identificando personagens dos vossos livros com os que encheram os meus verdes anos, porque nós, meninos do Nordeste, nascidos no fim do século passado ou no começo deste, vimos as mesmas coisas, tivemos iguais sofrimentos, preocupações e sonhos.
Eu poderia recompor a minha pequena vida no sertão cearense com os fatos da vossa vida e, apenas mudando o nome, muitos dos coronéis, dos padres, dos agregados de engenhos, dos moleques e outras figuras que enchem de tumulto e realidade as vossas páginas estão em minhas memórias. Digo-o em louvor de vossa fidelidade de ficcionista, do poder autêntico da Arte que praticais como nenhum outro daquela estranha região brasileira, ao mesmo tempo tão árida e tão fértil.
Esses termos contraditórios, aridez e fertilidade, marcam o Nordeste, traçam a psicologia da gente, explicam fenômenos sociais e políticos, entram no entendimento da fisionomia física e espiritual da terra, onde tudo gira ao redor da chuva e da seca.
Criamo-nos, todos, na grande e temerosa expectativa dos favores do céu, interrogando os horizontes se haverá ou não chuva para as abundâncias dos pródigos invernos, com o gado gordo, os roçados cheios de milho apendoando e as várzeas cobertas de melancia ou jerimum, ou a terra calcinada pela soalheira, vazia a perder de vista, sem outro verde além dos juazeiros, dos xique-xiques e dos mandacarus que matam a última fome dos animais e dos homens.
A grande nota do regionalismo literário nordestino são as duas estiagens que de tempos em tempos se repetem e, às vezes, se prolongam anos seguidos. Então as misérias do povo e do solo inspiram romancistas e poetas. Cangaceiros e beatos também se misturam nesse regionalismo, como figuras obrigatórias da paisagem humana do Nordeste. Cantadores e repentistas têm nos primeiros os grandes assuntos de seus versos e os segundos, pelos milagres que operam, enchem de medo e esperança o coração do povo.
Tem que haver seca em romance nordestino, nem faltará nele episódio de cangaço e história de homem santo e podeis ver como tudo é verdade lendo os escritores de mais nomeada, que vêm de Franklin Távora a Graciliano Ramos. A Fome, de Rodolfo Teófilo, D. Guidinha do Poço, de Manuel de Oliveira Paiva, Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, A Bagaceira, de José Américo de Almeida, O Quinze, de Rachel de Queiroz e Vidas Secas, do mais ilustre romancista alagoano.
A seca desencadeia o destino, empobrece os ricos, obriga a emigrar, avilta os pobres, acarreta desonra, põe à prova os caracteres, aguça e deprava os instintos, porque ela traz consigo a fome que é sempre má conselheira. Como motivo sinfônico ou simples melodia acidental, a seca faz parte da literatura nordestina e é natural que assim seja, pois de outra forma o escritor não se identificaria com o meio, ficando estranho à grande e sempre espantosa realidade da vida da região.
Vós, porém, Sr. José Lins do Rego, não sois um romancista das angústias da terra e da gente, quando batidas pela avareza das nuvens. As vossas histórias têm outra preferência. Falam dos canaviais, dos engenhos de grandes partidos, de senhores prósperos. Fixais tempos de fartura, bangüês, engenhos e usinas trabalhando, para alegria do seus donos, as famílias ricas ou decadentes de um mundo social que se formou nas casas-grandes e na bagaceira, com toda a raça de tipos que encontrastes na vossa meninice tão atribulada pelas experiências precoces que se acumularam em vossa mente e das quais tendes extraído a seiva fecunda de tão notável obra literária.
Não sois um escritor regionalista, no sentido das limitações que o regionalismo impõe, e já os críticos do vosso primeiro romance observavam a surpreendente universalidade do mundo ressuscitado pela vossa pena. Trabalhastes o Nordeste como Thomas Hardy o seu Condado de Wessex, ou como Thoreau os campos, as montanhas e as águas de sua cidade, os quais fez conhecer e amar por todos os americanos que leram, e como Thoreau podeis afirmar que nada se pode esperar de alguém que não considere a terra em que nasceu como a mais doce do mundo.
Nem as sucessivas orfandades, nem as aperturas da asma, nem os contratempos de menino que não teve a devoção permanente e insubstituível dos pais, nada dessas aflições fez de vós um escritor pessimista. Nesse particular honrastes a herança do vosso avô, com o seu temperamento feliz, pouco inclinado às lamúrias e invectivas contra as inconstâncias da natureza. Não sois como aquele velho Sinhô Marinho, do Engenho Maraú, que “chorava mais do que carro de boi carregado”, só faltando soluçar nas queixas contra as lagartas, o açúcar ruim, o gado magro. Nunca fostes como aquele vosso parente “com vidro de aumento para as desgraças”, porque os vossos olhos relegam as miúdas contrariedades, tal como o vigoroso Senhor do Santa Rosa, com os seus óculos de aro de prata, refletindo na cara toda a satisfação do homem feliz. E para a sua felicidade bastava-lhe ver as suas canas acamadas nos partidos, o milho criando corpo, o feijão crescendo e o gado roliço. E se o tempo não corria à feição, e a cana não acamava, o milho não criava corpo, o feijão não crescia e o gado minguava de carne, nem por isso lhe acabava o contentamento, pois logo lhe vinha o consolo da esperança em dias melhores.
Dissestes numa crônica de jornal que o que vale é o tempo morto que víeis bulindo como o corpo de Lázaro na tumba de pedra. Assim oferecestes ao crítico de vossa obra a grande deixa para a mais exata compreensão de vossos enigmas. O tempo que para outros morreu e fica sepulto, para vós nunca se perdeu e jamais andastes à sua procura. Apesar de breve, indo apenas até os doze anos de vossa idade, escorre nele toda a linfa criadora e nunca aqueles dias se apartaram de vossa imaginação. Durante eles convivestes, unha e carne, com os personagens, grandes e pequenos, que povoam os romances que, vós mesmo dissestes, compõem o ciclo da cana-de-açúcar.
As lições modernas da Psicanálise informam quanto poder tem no adolescente e no homem maduro as impressões da infância. Elas enterram-se nas células profundas do inconsciente ou do subconsciente e ficam mandando soberanas no nosso destino. Não são mais os mortos que governam sempre e cada vez mais os vivos; é a criança que sempre e cada vez mais governa o adulto.
Muitas das lembranças de vossa meninice deveriam produzir amargura; delas porém logo vos libertastes, pela forma da confissão pública, transferindo- as às páginas de livros, para que dentro de vós nada restasse de incômodas fixações e complexos obscuros. Em cada romance, a matéria inerte das recordações converte-se em formas vivas de realidade e Poesia, e ainda dos episódios mais crus, nos quais a natureza humana parece rebaixar-se às últimas malignidades do instinto, sabeis extrair um certo quê de purificação e ingenuidade, pela força de uma narrativa tão estreme de sentido espúrio que, lendo-vos, é como se ouvíssemos árduas palavras pela boca de quem as pronunciasse com inocência e candura.
Pensou-se que após a publicação de Fogo Morto, com o qual declaráveis encerrada a série das histórias ligadas às casas-grandes, aos engenhos e aos canaviais, estaria exausta a vossa imaginativa, como mina de filão esgotado. Pois não tardastes muito em mostrar a existência de outros veios, jorrando novas e mais vivas lembranças daqueles seis anos passados na casa-grande de vosso poderoso avô. As páginas que denominastes Meus Verdes Anos e que dedicastes a vosso neto José, para que lhe sirvam no futuro como uma lição de vida, aí estão pujantes, aprofundando-se no recôndito da consciência do menino, como os sertanejos cavam no leito dos rios secos fundas cacimbas para encontrar a água fugidia.
Fora temerário, ainda agora, acreditar que está tudo dito. Os escritores de vossa qualidade não cessam o fluxo das transmutações do quotidiano em matéria perene, graças ao toque da Poesia que é neles um dom congênito.
Proust achava que na transposição do mundo sensível para a realidade artística, o grande escritor devera ditar a sua maneira pessoal de ver as coisas e nunca submeter-se à visão comum. Ouso contrariar semelhante sentença, à luz dos vossos exemplos. A grandeza de vossa obra, que está atingindo a universalidade em traduções sucessivas nas línguas ilustres da terra, vem precisamente da maneira humilde com que nos transmitis das coisas e dos seres apenas a visão comum, o pensamento do pobre povo nordestino, as suas dores, os seus sentimentos, as suas esperanças e as suas ilusões.
Não há o menor constrangimento de imposição de formas pessoais, sendo como sois um espelho de cristalino reflexo e jamais um combinador de ingredientes literários,destro no refinamento de impurezas e na destilação de raros perfumes. Assim recende das vossas páginas a eterna Poesia que uma vez definistes como sendo “a que se finca na terra e se alimenta de nossa própria carne e de nosso próprio sangue”. Uma Poesia hipostática, marcada pela mais íntima união do verbo com a natureza humana.
Não desejava nesta saudação recorrer à Literatura Comparada, mas, por acaso, existia visão pessoal do autor em grandes artistas como Tolstói ou Tchékhov? e cito esses dois russos, porque sempre fui tentado a ver no sentido profundo de vossa obra tão humana algo de Guerra e Paz, de Ana Karenina e da Ressurreição e aquela maneira lenta, quotidiana, com que o grande contista e dramaturgo de O Cerejal narrou a decadência da sociedade russa.
Muito ouvi falar a respeito da vossa vida de estudante no Recife, naquela mesma escola onde se formaram os bacharéis que repontam nos vossos romances. Nem sequer sabíeis bem onde eram as salas das aulas e a muitos dos professores só de nome conhecíeis.
É melhor que vós mesmo narreis, perante esta assistência que hoje vos glorifica, como foi a vossa vida na Faculdade.
O estudante José Lins do Rego era íntimo de todas as agitações da Escola, gritava pelos corredores, cantando em voz alta e desafinada árias de operetas da moda, botava apelidos e se fizera o terror em arruaças de rua e boêmia. Rapaz perdido, o aluno péssimo do Dr. Amazonas, bacharel de 1923, que não entrou no quadro de formatura porque consumiu em cerveja da Rua Santo Amaro as verbas do avô.
Esse período descritivo de vossa mocidade turbulenta está num discurso que pretendíeis pronunciar na própria Faculdade de Direito, quando regressastes da Europa e que, por circunstâncias que não mencionastes, ao que parece, não foi nunca pronunciado.
Nesse retrato não há nada mais daquele menino asmático, criado junto às saias das tias, com o mimo das negras do engenho e que ficava invejando de longe os outros meninos tomarem banho de rio, correrem no lombo dos cavalos em pêlo e pintarem as diabruras perigosas dos garotos do sertão.
Esse ano de 1923 marcou caminhos novos de ascensão, conquista e glória em vossa vida. Foi o ano do encontro com Gilberto Freyre, quando, de volta de sua longa viagem aos Estados Unidos e à Inglaterra, onde preparara o espírito para a realização de sua obra científica e literária, o futuro autor de Casa-Grande & Senzala retomava contato com a juventude do seu tempo, no Recife.
No prefácio de Região e Tradição vêm singelamente contados os passos dessa amizade que considerais tão fecunda para o vosso destino de escritor. Na verdade, depois do conhecimento com Gilberto Freyre, mudaram-se os rumos do estudante da Faculdade de Direito, ocupado então em escrever crônicas e contos, perdendo-se também, como não pudera deixar de acontecer na província, nos panfletos da política partidária.
Abriram-se os vossos olhos para perceber que o vosso destino era outro. Começou a reconstrução de vossa personalidade, na base do encontro de um mundo até então ignorado e no qual penetrastes, com segurança, pelo braço do companheiro que retornava de Colúmbia e de Oxford, de prestigiosas universidades do outro lado da terra, pronto a realizar a mais completa pesquisa da alma pernambucana e a resolver os problemas da integração brasileira, que não voltara americanizado ou britânico, porém mais intensamente pernambucano e, por isso mesmo, mais vivamente brasileiro.
Gilberto Freyre foi quem desvendou o vosso amor pela terra que dominava o vosso coração sem que ainda o houvésseis percebido. A nossa vida por esse tempo – está por vós escrito –, foi para mim admirável. Eu me fazia, construía a minha personalidade. Havia nessa época o movimento modernista de São Paulo. Gilberto criticava a campanha como se fosse de uma outra geração. O rumor da Semana de Arte Moderna lhe parecia muito de movimento de comédia, sem importância real. O Brasil não precisava do dinamismo de Graça Aranha e nem da gritaria dos rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às suas fontes de vida, às profundidades de sua consciência.
Esses ensinamentos tocavam a vossa alma e a casa do Carrapicho, onde Gilberto morava, era “como um refúgio que eu procurava com ansiedade e timidez”, como confessastes.
Só por um milagre poderia ser tímido aquele moço cheio de violências e algazarra que acabava de sair da Faculdade de Direito.
Comprometemo-nos, querido confrade, a agradar nestes nossos discursos mais ainda pela brevidade do que pela substância e assim não me demorarei em dizer tudo quanto Gilberto Freyre representou no descobrimento de vossas forças interiores, encaminhando-as à vossa verdadeira vocação de testemunhar nos romances dos bangüês, dos engenhos e das usinas de açúcar algumas das matrizes da nacionalidade que o sociólogo, vosso amigo e guia, interpretou como cientista, aparelhado como nenhum outro antes dele dos métodos mais modernos de investigação e análise.
A associação espiritual com Gilberto Freyre nunca se interrompeu. Os dois muito construíram, cada qual em seu terreno, seguindo linhas paralelas, ambos prodigiosamente líricos, animados pela mesma paixão da terra e do homem do Nordeste. Poderia buscar na Literatura de outros povos casos semelhantes de recíprocas e duradouras influências, mas chega fixar-se neste nosso exemplo brasileiro, tão fértil e cheio de beleza, de completa correspondência entre dois grandes espíritos para quem só a vida com as suas leis e sugestões comanda e dirige.
No entanto, antes do canudo de bacharel e do rubi flamívomo, já não eram poucos nem pequenos os sinais de que entraríeis, rapidamente, nesse caminho de escritor que vos conduziu aos cimos gloriosos em que hoje achais o repouso: Über allen Gipfeln ist Ruh, como está dito no verso goethiano e é repetido aqui em alemão somente porque na língua original guarda a sua impressionante musicalidade.
Quando morreu Lima Barreto, escrevestes em Recife um artigo consagrando o grande romancista de Isaías Caminha e Gonzaga de Sá. Já então se mostrava a vossa rebeldia às formas estratificadas da linguagem gramatical nesta sentença: “Os grandes escritores têm a sua língua; os medíocres a sua gramática.”
É certo, meu caro José Lins do Rego, que sois um grande escritor que tem a sua língua e também a sua gramática. Na releitura que fiz de vossa obra, a fim de aparelhar-me para este desafeiçoado estudo, verifiquei com surpresa que não andais muito longe de ser um cultor da nossa língua, e tudo quanto se tem escrito e proclamado a respeito das incorreções gramaticais de vossa prosa corre por conta de exagero, sendo a regra a escorreição, a medida, a obediênda aos cânones da gramática que atribuís apenas aos escritores medíocres. O que acontece e escandaliza é a vossa proximidade do povo, a consangüinidade com o povo, a apuração do sentido literal da linguagem popular, no que tem de mais viva e palpitante.
Se, algumas vezes, adotais certos modos de expressão, ou deixais de dar aos pronomes a posição convencional dos chamados bons autores, não o fazeis para desautorar a gramática e sim porque quereis que o organismo vivo siga a evolução da vida e adquira nos trópicos, além da maciez e dos ritmos cantantes, também a liberdade que lhe está comunicando o poder plástico que nunca teve e melhor serve aos impulsos e criações do pensamento brasileiro.
Eis um capítulo em que se poderia dissertar longamente, argumentando sem sofisma a vosso favor, para dizer que se esta Academia tem entre as suas finalidades mais instantes defender o nosso belo idioma, aqui estais muito bem, pois que em vossas páginas é falada a língua verdadeira, a que traduz melhor aquilo que realmente quereis dizer e não a língua dos sábios e dos puristas, com rebuscados parnasianismos, e léxico obsoleto. Se nos cumpre guardar a amada língua portuguesa, seria arriscar-nos a vê-la desaparecer depressa, admitir que nos livros seja uma coisa e na voz do povo outra, pois não é nas formas eruditas que o idioma se mantém vivo e sim pela criação incessante da alma popular. E tanto é esse o pensamento desta Academia, que no seu vocabulário figuram os brasileirismos na mesma digna posição de membros da família, e ainda mais que a grande revolução literária que se operou no Brasil com o advento do Modernismo, hoje consagrado pela presença dos seus mais gloriosos chefes nesta Casa, foi nas formas da linguagem que se tornou mais evidente, e todos nós escrevemos hoje com uma liberdade que nem imaginavam os mestres que aqui nos reuniram e são os deuses de nosso culto.
E os de ontem e os de agora conservam-se, igualmente, fiéis à missão da Academia de guardar a língua nos valores substanciais de sua vida, sem impedir que evolua e assim se mantenha viva.
Falando, certa vez, das literaturas, dissestes alguma coisa que deve se referir especialmente à língua: “As literaturas que querem sobreviver terão que ligar-se à terra. Terão que adotar as invenções e descobertas do irmão povo, se não se transformarão em pobres damas enfermiças, com medo do sol, da chuva e da vida.”
E noutra ocasião, completando este comentário, afirmastes sem nenhuma cerimônia: “Os puristas que vão àquelas batatas do personagem de Machado de Assis.” Sucede apenas que as batatas eram para o vencedor e não parece, meu caro confrade, que os puristas estejam vencendo na batalha de que sois tão valente soldado.
Não pertenceis, evidentemente, a qualquer escola literária, no rigor das classicações, a meu ver um tanto arbitrárias, e não é acertado sobretudo pregar em vossos livros a etiqueta do Modernismo.
Começastes a escrever romances quando a famosa e bulhenta escola havia transposto a fase de exacerbação, mas não vi o mais ligeiro traço que possa identificar-vos como epígono da tumultuosa corrente.
Creio que se não tivesse havido a Semana de Arte Moderna de São Paulo e tudo quanto se seguiu em Literatura e artes plásticas, haveríeis de escrever do mesmo jeito, com a mesma linguagem e os mesmos assuntos, na pura e simples maneira de expressão do Nordeste.
Jamais observei em vossa técnica de romancista ou em vosso estilo, tão próprio como deve ser em sua correntia facilidade, pois como já li em Cocteau tout effort visible manque de style, jamais observei, repito, qualquer intenção de ser modernista, como propósito e escolha, à moda de tantos outros que foram modernistas somente para não ficar do lado de fora na procissão do dia e por falta de coragem para sustentar as suas convicções estéticas.
Não há em vossos livros deformações, nem distorção da realidade, nem recursos artificiosos e menos ainda intento de escandalizar pelo uso de rudes termos, quando não sejam necessários, para caracterizar cenas, atitudes e temperamentos em suas genuínas manifestações.
Dizeis as coisas como são, os fatos como se passaram, as pessoas como eram, com toda a naturalidade, sem prévia arrumação e menos ainda para que do entrecho possa sair o comprovamento de teses sociológicas ou de outra espécie.
Os acontecimentos concatenam-se por si mesmos, presos no fio de sua intercadência, porque não foram inventados. Como nada inventastes, exceto a arte de dispor esse material, as figuras humanas, os seus pobres e falhos destinos, a vida do Nordeste no momento das fixações em vosso espírito, por um método que não é de embalsamamento, mas de pura e bela ressurreição.
O menino José Lins do Rego, neto do Coronel José Paulino, poderoso senhor de engenho, nunca se ausentou do homem, do jornalista, do escritor de romances, do pensador que também o sois e do soldado da liberdade, pois na luta pela liberdade vos encontrei sempre, constante e destemido, na dura fase da evolução social e política que estamos vivendo. As vossas maneiras estabanadas, a vaguidade de vossas conversas, os vossos solilóquios, interjeições e gritos de espanto, o hábito das andanças matinais e do estacionamento nas portas das livrarias, as vossas telefonadas fora de horas aos amigos e os vossos conhecidos e impressionantes mutismos e apreensões, isto de chegar e sair sem falar com os presentes, inteiramente alheado aos mandos do bomtom, o medo das doenças súbitas apesar da solidez vigorosa do vosso esplêndido organismo, tudo isso que dá a vossa marca personalíssima é nada menos do que a permanência da criança sertaneja no adulto perdido das capitais.
Não tendes refolhos nem complicações problemáticas; os vossos personagens são lineares, unidimensionais, aparecem e somem como se corressem nas linhas de um trilho por uma planície. Exatamente como é a vida, quando não se metem os homens a interpretá-la: simples sucessão de fatos na rotina dos dias.
Vistes, quando menino, a decadência de uma sociedade rural, a meia aristocracia dos senhores de engenho acabando, o fim do feudalismo nordestino vencido pela máquina com os cangaceiros que eram os seus cavalheiros andantes e os beatos, místicos da superstição, que é também um dos fios vitais das gerações.
Tudo isso se agarrou em vosso espírito para fecundá-lo, e, chegada a hora do amadurecimento do escritor, transformastes as reminiscências em formas vivas.
A vossa força de romancista está no soberbo poder da narração. Nada é de pano, de madeira, de borracha ou de matéria plástica nas multidões dos vossos romances. Senhores de engenho, avós, tias e primas, moleques, vaqueiros, negrinhas libidinosas, santos e bandidos, todos são de sangue e carne, têm músculos e ossos.
Tudo vive no triunfo ou na mesquinhez, no orgulho ou na humilhação, na violência ou na serena bondade. Ninguém é como os personagens de Dickens, arbitrariamente escolhido para ser sempre mau ou para ser sempre bom.
Contastes a vossa própria história de menino de engenho, de aluno de internato, cercado pela sarabanda do poviléu que representava a contingência humana na linha de um destino atormentado, desde muito cedo, pelas fraquezas do instinto, em seus mais rudes pendores.
Há quem se revolte com a áspera maneira pela qual contais as mais feias histórias de uma infância precocemente cosida pelo sofrimento e aguilhoada pelas revelações de uma exacerbada sexualidade.
Assim é por não ter podido ser de outra maneira. Tal se mostrou a vossa natureza em sua força propulsora para a criação artística. De algo vos gabais com razão: da vossa teimosa fidelidade a vós mesmo.
Certa vez dissestes:
Nada me arreda de ligar a Arte à realidade e de arrancar das entranhas da terra a seiva dos meus romances e de minhas idéias. Gosto que me chamem de telúrico e muito me alegra que descubram em todas as minhas atividades literárias forças que dizem do puro instinto. Será destas fontes do instinto donde emanam as minhas únicas alegrias criadoras.
E como criastes! É certo que nada tirastes do Nada e sim da vida, pois que toda verdadeira vida vem de outra vida e o próprio sopro divino na argila pressupunha uma criação anterior.
Escrever é para vós uma necessidade incoercível e só escreveis porque, como queria Rainer Maria Rilke, tínheis de obedecer às forças indomináveis da vossa natureza. Quando vos chega essa espécie de crise, nada vos detém. As laudas seguem-se às laudas, umas emendadas nas outras como rolos do papiro antigo, mostrando a continuidade vital do enredo, e se parais, noite alta, nesse labor, é para chamar pelo fio algum amigo que julgais de vigília, esperando as vossas ordens e comunicar-lhe, como honrosa primícia, as peripécias em que se envolvem os duendes que restabeleceis na condição da vida.
E invectivais o velho Zé Amaro, por haver batido na filha enferma: “Isso não é direito, seu Condé !” E cobris de elogios o Vitorino Papa-Rabo com a sua tabica vingadora. “É no duro, sabe? Papa-Rabo é homem até debaixo d’água.” Tudo entremeado de gargalhadas, de insultos, de nomes feios, vibrando o fio no silêncio da cidade deitada no sono.
Esse tumulto de vida é implacável no vosso espírito. São manifestações insopitáveis, e se vos metesseis a contê-las, correríeis o risco de um ataque de apoplexia.
Não é de vosso temperamento fechar-se, porque a vossa natureza está voltada para a vida e só se exprime e realiza em termos de ação e de vida.
Por isso amais as praças de esporte, acompanhais os grandes alaridos do triunfo do vosso clube, somais os vossos gritos e impropérios aos gritos das multidões decepcionadas, quando as suas cores não se impõem ao adversário.
Tendes em pouco apreço as rodas literárias, as confidências intelectuais, o preciosismo das conversas de gabinetes e de salão. Quereis ar livre, clamor, e frêmito. Ides ao povo para sentir o que ele está pensando e querendo.
Diariamente transmitis na imprensa, em jornal da manhã e em jornal da tarde, as histórias recolhidas nas conversas de lotação, nos ônibus e nos trens, os comentários da sabedoria popular, as notações da cidade viva.
Construístes com os vossos romances do ciclo da cana-de-açúcar um monumento a uma era já quase extinta e em vossas crônicas guardais as palpitações do nosso estranho mundo, nas formas mais agudas do seu realismo angustioso.
Fogo Morto é uma epopéia, à moda do Cervantes, e Cangaceiros outra. O Moleque Ricardo contém no fecho três páginas que ninguém poderá esquecer pela sua grandiosidade à Dostoievski, quando o mestre Lucas pergunta, em seu desolamento, na dança sagrada do terreiro, o que fizeram os negros mandados para Fernando Noronha. “Que fizeram eles? Que fizeram eles? Ninguém sabe não.” Esse refrão repetido como o batuque no coro dos atabaques tem inflexões que descem na alma com uma ressonância fúnebre que não sai da memória. A extrema tristeza do povo humilde diante das injustiças inelutáveis.
Querem as tradições que este discurso seja leve e aqui e ali assuma certo ar de apadrinhamento do veterano ao calouro que se aproxima, mal-ajeitado no fardão, e tímido diante do corpo de veneráveis doutos da Academia. Pelas vossas palavras, vi que vos assentastes na Cadeira 25 com a bonomia, segurança e senso de posse absoluta de quem não tivesse feito outra coisa na vida.
Isso está certo. A Cadeira era vossa, vossa de pleno direito, visto que sois um dos maiores escritores brasileiros e esta Casa é dos escritores de sangue e alma como vós, Sr. José Lins do Rego.
Em determinada hora de vossa existência, resolvestes-vos a percorrer terras estrangeiras, varando ares e mares para a aventura das viagens. Desde as ribas mediterrâneas até os fjords vizinhos do círculo polar, vistes as grandes coisas do mundo, vivestes nas terras de mais apurada civilização e de tudo destes conta em crônicas diárias, sem a monotonia da repetição dos viajantes da Cook, com esta vossa maneira particular de sentir grandezas e misérias, e narrá-las, singelamente, para encanto dos outros homens.
Enfiastes as botas de sete léguas para ir mais depressa e mais longe, em tudo pondo esses vossos olhos alvissareiros, de modo a nada perder das paisagens e dos seres, conferindo a profusão de vossas reminiscências de leitura; mas por todos os lugares, fosse Paris ou Florença, Madri ou Estocolmo, nunca vos apartastes de vós mesmos, em nenhum momento vos tentou a idéia de parecer francês, britânico, italiano ou patrício de Hamlet. Em tudo percebestes coisas de apreciar e amar, nas evocações dos tempos antigos, ao lado das ruínas da Grécia e de Roma, mas tais coisas não afetavam a alma do nordestino, para quem Homero com os heróis ilustres que cantou não vale muito mais do que os cantadores de nênias nas portas das igrejas da Paraíba, pelo menos na força da inspiração poética.
É bom beber vinhos famosos, contemplar correntes de água, a cujas margens a História se cansou de deixar as suas pegas; parar defronte da fachada das catedrais góticas em Paris, Chartres ou Colônia; admirar quadros, estátuas em museus de renome, extasiar-se diante de panoramas ricos em sugestões milenares. Nada disso porém mudou um átimo na alma do bom e grande José do Rego, com o qual ninguém pode, como ele mesmo costuma dizer e que, de retorno, era o mesmo despachado madurão de quem ouvi, certa feita, uma senhora comentar: “Não tem cara de escritor”; e eu lhe respondi: “A senhora diz isso, porque nunca viu Hemmingway.” Nem todos podem nascer com a cara de Byron.
Ajuntando em livro as crônicas das andanças européias, acrescentastes-lhes As Nordestinas, ou sejam páginas com as quais quisestes equilibrar os entusiasmos da outra banda do mundo com as ternuras de vossa própria terra, pois outras terras podem ter maiores encantos, nenhuma, porém, como a várzea do Paraíba “no seu esplendor de Natureza”, a qual vos acudia à memória, quando navegáveis o Loire, “o rio dos vinhos que são bebidas dos deuses na primavera dos castelos de França”.
Assim foi por todo canto e mesmo nessa Grécia que andastes palmilhando por último, e aqui daria tudo por saber das vossas reflexões diante da Acrópole, na qual muito longe da famosa oração renaniana, havereis, quem sabe, pensado nas matas do Itapuá, quando “a manhã de sol de inverno se alegra no colorido das flores que desabrocham nas capoeiras festivas”.
Porque estamos certos, vós e eu, confrade ilustre, que não há nem nunca houve motivos mais suaves para églogas e bucólicas, ou ainda para anacreônticas e teocríticas, do que a mansuetude das campinas do Nordeste quando, no fim das tardes de inverno, as sombras sobem ao sopro das frescasvirações atlânticas e o gado lerdo de gordura deixa o pasto em busca dos currais, tangido pelo longa aboio dos vaqueiros.
São paisagens e momentos imorredouros na lembrança de quem uma vez os viu e sentiu, e em vossos livros os reviveis como ninguém, com esse poder pictórico que a vossa pena adquire quando traça aqueles quadros. Já mestre João Ribeiro, que logo revelou sensibilidade especial para a vossa Arte, falara duas vezes em pintura ao dar notícia alvissareira do Menino de Engenho. Falou de “pintura magistral e verdadeira”, referindo-se às descrições de vossas espantosas precocidades e depois sentenciou:“A pintura da enchente do rio é uma das mais belas que temos tido, assim como a do lobisomem, superstição vulgar em todo o Brasil.”
Panorarnas de cheias e secas, manhãs e crepúsculos, ambientes da vida rural, serões de famílias, velórios e enterros pobres, a marcha do gado nas estradas, os aspectos das roças, a beleza dos canaviais no esplendor da safra, a fisionomia humana nas fainas dos engenhos, tudo isso sai literalmente pintado em vossas páginas e com tal força e genuína profundidade que se pode dizer de vós o que um crítico disse de Thomas Hardy: Possuís a redolência do solo.
Encontrareis nesta nova casa-grande que vos acolhe, com tanta alegria, variados motivos de satisfação. Dizem de nós muita coisa falsa e geralmente escondem as boas razões que nos justificam.
A Academia não é uma escola de aperfeiçoamento de escritores. É antes um regaço tranqüilo para aqueles que, nas labutas da pena, deram os melhores frutos. Aqui é um lugar de onde contemplamos a obra realizada, recebendo na imortalidade os precários galardões da fama e da glória.
Dissestes em um dos vossos escritos que amais a convivência dos velhos; pois tendes agora uma luzida companhia de homens maiores de cinqüenta e, se alguns poucos se acham ainda abaixo dessa cota, asseguro-vos que neles se revelou mais cedo aquele espírito de aceitação, conformidade e placidez que caracteriza a velhice sensata.
Aqui e ali, nos tempos das vossas rebeldias de rapaz, quando é muito o sangue nas guelras, fostes incomplacente com as academias e os acadêmicos, e até fizestes uma jura que a vida se encarregou de desmentir. Jura falaz, como as juras de amor.
Essa culpa contra a lúcida matrona, cujos favores se distribuem por igual a todas as escolas, a todas as tendências e a todos os temperamentos, com a condição apenas de que possuam a credencial das boas Letras, todos a tivemos em nossa história de escritores. É até bom chegar-se aqui com um pouco de cinza na cabeça e envergando este fardão vistoso como se fosse também um burel de penitente. Os que menos prezavam a Academia, quando se inscrevem no estreito rol dos quarenta, costumam ser os que mais a amam e se comprazem em nossas serenas tertúlias, nas quais se cultiva a amabilidade, o sorriso, a cortesia, antecipando-se um pouco as vantagens da bem-aventurança.
Todos somos, uns para os outros, mestres e amigos, e, às quintas-feiras, não é pequena a volúpia com que mutuamente nos distribuímos cálidos elogios, cada qual mais empenhado em observar as boas cores, o ar de saúde e a teimosa mocidade do companheiro, carregando nos adjetivos amoráveis com que nos forramos aqui de ilusões para enfrentar as cruezas dos restantes seis dias da semana. Somos assim mais do que uma companhia amável: somos urna família cujos membros cultivam a cordialidade como a sua virtude mais esmerada.
Estou certo de que o homem vigoroso e rude, criado no massapé paraibano, tão representativo da terra e do povo do Nordeste, estimará em seus confrates as polidas maneiras, as atitudes mansas, as palavras medidas, o jeito precavido para não melindrar as susceptibilidades que entre imortais se encontram bem à flor da pele.
Isso não significa que não tenhamos malícia, que a ironia não pertença aos anais da Casa, que não se cruzem floretes nos debates e que as naturezas não guardem os espinhos que trouxeram do berço. Tudo, porém, nos choquesmais renhidos, se passará de forma estilizada, entre veludos, cristais e rendas finas, cada um com a sua caçoleta de perfumes, de modo que o ambiente quando mais se encrespe seja tão suavemente como a brisa, ao balançar, com leveza, as pétalas do jardim.
Muito tendes escrito e confessado aos íntimos a respeito dos terrores pânicos que a morte vos infunde. Ela vos parece uma grande injustiça. Assim também era Tolstói. Nada quereis com a Deusa Silenciosa e menos ainda com aquele undiscovered country para o qual marchamos, com passo inexorável, cada segundo de nossa curta vida. Assim somos todos feitos, nesse movimento de incessante rebeldia à transformação da matéria que é a suprema lei e a mais visível da natureza.
Para iludi-la criaram-se muitas fábulas e compuseram-se as esperanças de que o fim será apenas um instante de trânsito do doloroso efêmero para a felicidade eterna. As academias pertencem ao gênero desses recursos contra a idéia de que tudo desaparecerá e dão-nos o consolo de que teremos a sobrevivência, na mais longínqua lembrança da posteridade.
Os livros bastariam para garantir-vos a perenidade de vossa presença na Literatura Brasileira, mas assentado nesta Poltrona que a ilustre Companhia vos destinou, ciente da grandeza dos vossos títulos, podereis contar com a imortalidade. Esta não é uma Casa que os séculos abalem, que os regimes políticos destruam, que possa perecer no conflito das paixões ensandecidas. Tão fortes são os seus alicerces que se houver, entre as surpresas do mundo, comoções capazes de abismá-los, tudo não passará de mero delíquio; logo virão outros belos espíritos reconstruí-los, reunindo os destroços em novo e mais sólido monumento.
E logo também se reatará o diálogo que mantemos com os antepassados, para a reverência do culto que lhes é devido.
Quando vencido o segundo milênio desta nossa era já houverdes resignadamente compreendido que é bom descansar para além dos páramos, muito mais idoso ainda do que o varão a quem substituís, os que vierem para esta vossa Cadeira celebrarão o vosso nome, pelos tempos dos tempos, como agora o fazemos com Junqueira Freire, Flanklin Dória, Artur Orlando e Ataulfo de Paiva. Esta nossa Companhia regala-se nas comemorações e nada lhe é mais caro do que os ritos da solene recordação.
O último a ocupar esta Poltrona 25, prezado confrade, com a pecha de intruso em cenáculos a que pertenceu sem diplomas suficientes, foi um leal servidor desta Casa e todos aqui queremos dar depoimento de seus préstimos. O que lhe faltou em títulos literários quis sempre suprir em devoção aos interesses da Companhia, fazendo o papel das abelhas que não participam dos vôos nupciais na primavera, que nunca enfrentam a glória das alturas ensolaradas, mas realizam o trabalho indispensável da colméia -nisso ele foi incansável.
Confessamos a saudade que nos deixou e queremos honrar a memória de Ataulfo de Paiva nesta noite, que também a ele é dedicada, a este companheiro assíduo, incrivelmente veraz e fidedigno, espécie de irmão leigo da Ordem, que só deixou de freqüentar-nos quando vencido pela moléstia nos cimos dos seus noventa janeiros, e que, estou certo, dirigiu o seu derradeiro pensamento a esta Casa que lhe velou o sono final, entre as pompas que tanto amava e na desolação dos seus confrades que se não o tiveram como mestre, viram sempre nele um amigo indefectível.
Sr. José Lins do Rego: trazeis ainda nas alparcatas de viajante a poeira da mais famosa colina que os vossos olhos tanto contemplaram, nessa nova sedução de vosso espírito pela Grécia, que retardou de alguns meses a alegria da investidura desta noite.
Sabeis, assim, que tudo passa, menos a Beleza, ainda mais duradoura do que a verdade. A erosão dos séculos, o ataque cego dos bárbaros, a displicência e o desencanto das gerações nada lograram contra a serenidade dos pórticos e das colunas dos templos em que se adoravam os deuses humanizados.
Na variedade das raças e dos climas, na ruptura aparente dos mundos permanece sobranceiro o mesmo sonho de imortalidade que animou o pincel, o escopro e a palavra, o sonho dos ginásios, das academias, dos teatros e dos filósofos. O sonho sempre evanescente e sempre renovado de fixar a formosura do momento que passa. Fixá-lo na pedra, no bronze, na tela e na mais duradoura de todas as matérias, o sopro da palavra, na prosa e no verso.
Entrai nesta nova Casa-Grande que doravante será para todo o sempre vossa. Aqui vivereis cercado da carinhosa assistência e da sincera admiração de 39 companheiros empenhados em prolongar as graças da vida sob a égide de Machado de Assis, o maior de quantos sonharam dentro dos umbrais da Academia.
15/12/1956