Aqui estou sem ter feito uma caminhada de aventuras. Não me pus na luta empenhando o que podia e o que não podia. A Academia não me foi uma idéia fixa, um posto a conquistar com todo o meu sangue. E nem vendi a alma ao demônio para obter a vossa imortalidade.
Chego sem alvoroço e sem tropeçar na glória dos outros. Para muitos, a posição vale bem a missa de Henrique IV. Para mim, vale como um remanso, o convívio amável, a paz entre os homens.
Quando jovem, disse muito mal da Academia. Fora a contingência dos que não se conformam com a ordem das coisas. Há de ter sorrido a Academia das investidas furiosas dos que desdenham de suas honrarias. Assim devem fazer as academias quando não são de pedra. Aos moços, as intemperanças, os arroubos e mesmo a violência. Às academias, o bom humor de não se exasperarem. Muitos dos vossos grandes de hoje, que vejo tão sólidos em suas Poltronas, foram dos que sacudiram pedras em vossas vidraças. Jovens intempestivos, que se jogavam sobre o estabelecimento como ciclones desencadeados. O espírito dos jovens não faz mal aos que sabem envelhecer. O que nos mata é a intolerância para com a intolerância dos que têm o fogo da juventude.Por tudo isto é que me sinto em casa, no meio de homens que sabem valorizar os que vêm de fora com a cicatriz das batalhas. Precisamos nos ligar aos jovens, porque viver com a mocidade é condição de vitalizar-se.
Chego a esta Casa sem arrependimentos pelo que fiz nem temor de falar como sempre falei, com a língua solta que Deus me deu. Estou certo de que a Academia não restringirá os meus surtos, as minhas palavras. Trago ao convívio de doutos e mestres a simplicidade de um falar ligado ao povo. Não me complicarão a sintaxe a presença de sábios e os rigores dos que manejam o estilo. Tenho para mim que a função essencial da nossa Academia é de ser menos de polícia do que de ligação entre as gerações. O espírito acadêmico não deve agir como um livro rígido de bem-dizer. As gerações não falam e não comem pela mesma boca. As leis que regem a linguagem, quando se cristalizam e se fecham em intransigências radicais, aniquilam a expressão e desmantelam o ritmo. O ritmo da vida carece do ritmo da Poesia como de alimento. As vitaminas e os sais minerais que fazem do homem animal uma potência estão encerradas nos frutos, nas folhas e na terra como num verso de Manuel Bandeira. A Poesia é, neste sentido, um precipitado químico capaz de mover as montanhas. Contra o acadêmico das academias convencionais, a vitalidade que brota da Poesia, sal da terra, a agir sobre as coisas inanimadas como se fosse vara de condão.
A boa academia não se deve grudar à tradição como a uma tábua de náufrago. O convencional é o seu exterior. Farda, espada, chapéu de dois bicos, tudo isto é a sua superfície. Para se eternizar, para chegar à verdadeira imortalidade, tem que fazer como os próprios deuses, que tiveram naturezas humanas. Os deuses da Hélade derramaram o sangue de suas feridas e lágrimas de seus olhos. E quando desciam para as lutas do rapsodo tudo tinham dos guerreiros da terra. Apenas se elevavam às regalias do Olimpo porque traziam nas entranhas a grandeza de outro mundo.
Os poetas realizam essas mesmas peripécias. Eles são as grandezas do outro mundo. Tudo pode parecer em decomposição. Basta o poeta para arrancar da morte os lázaros sepultos em tumbas de pedra.
Acredito que o destino de nossa Academia, como concebeu Machado de Assis, não se confundirá com o destino de um grupo que queria somente chegar a uma elevação e olhar o panorama.
Não. A Academia de Machado de Assis deve ser uma sociedade ativa, que seleciona e valoriza. A obra de Machado de Assis tem tudo de uma Real Academia. A língua de seus livros não se anquilosou num consumir de gorduras inúteis. Os vasos que conduziam a linfa de sua prosa se elasteceram no exercício cotidiano do falar e escrever conforme o seu tempo. Os arcaísmos não vestiram as carnes da grande prosa machadiana de costumes e panos avelhantados. A vitória de Machado foi, neste sentido, muito maior do que a do nosso José de Alencar. A língua doce de Alencar é de quase sinfonia musical; não possui o sistema muscular do outro. Machado exprimiu a sua realidade e a realidade do seu tempo com o vigor de natureza que tinha os sentidos abertos à vida. Língua correta para fixar a sua época, em termos de quem era um elemento atuante em sua sociedade, é assim a obra de Machado, da melhor Academia.
A deformação da palavra acadêmico deu a este vocábulo a significação de deficiência, de carregação. Contra o vivo, opunha-se o acadêmico, embora academia, para os gregos, fosse escola de sabedoria, reduto de intérpretes da natureza. O Acadêmico Platão recolhia e elaborava as novas leis para governar e iluminar os homens. Portanto, senhores, antes de tudo, precisamos dar às palavras o significado que elas têm em sua formação.
Se um Valéry ascende na ordem dos mestres à condição de um Platão que tivesse lido Descartes, não viria para renegar a Academia, mas para trazê-la à sua economia espiritual, como o cenáculo onde não fosse possível a traição.
Richelieu não pretendeu somente congregar áulicos em tertúlias. O político de gênio imaginou uma obra capaz de exprimir a universalidade da língua francesa. A língua que era dos soldados que criaram a nação não podia permanecer fora dos livros. O dicionário ideado pelo grande Rivarol era já letra viva, através dos planos e dos achados dos homens que serviram à Literatura com a liberdade de criadores.
Há restrições ao espírito acadêmico, algumas precedidas de razões valiosas. Dizem que se conformam as academias com as verdades impostas, com os preconceitos, com as glórias de vidrilhos. Contra essas fraquezas devemos nos defender. Às vezes a Academia fecha os ouvidos aos movimentos libertários. Tranca-se em casa, quase que analgésica, semelhante aos refugiados nas torres de marfim. É aí que lhe vem em auxílio o exemplo dos que são o esplendor das academias. Para a debilidade diante dos fatos consumados, surge a vida de um Machado de Assis, de um Joaquim Nabuco, de um Sílvio Romero, de um Euclides, de um Roquette-Pinto, naturezas que não sofreram as amputações deformantes. Sei que, de vez em quando, a nossa Companhia se amesquinha. Por outro lado, salvam-na os seus anjos da guarda, aqueles que são maiores do que os maiorais do tempo. Ser acadêmico nem sempre é uma elevação entre montanhas. Mas ser acadêmico é sempre uma dignidade que enobrece, pelo que há de melhor no homem.
Meus amigos, venho humildemente vos procurar. Não quero vos espantar porque vos desejo o convívio. Não quero mais do que desejei em toda a minha vida: ser um amigo. Não tenho rancores e nem simulo bondades. Dou-lhes a minha alma despida. E nem o fardão luzente e nem a espada virgem me farão diferente do que sou e quero ser: um homem simples. O que me basta é o que já tenho nas mãos.
Para muita gente, a Academia é um trampolim de onde se lançam ambições venais. Felizmente que são minoria os que procuram a sucessão de Machado e Nabuco com interesses suspeitos. No máximo, a glória da terra é o que nos tenta, é o que nos conduz às disputas pelas Cadeiras em eleição.
Acontece que o voto não tem senso crítico e vacila pela paixão, conforme as circunstâncias. A Academia escolhe e nem sempre escolhe o melhor, mas tudo devemos relacionar como se fosse da sua condição humana. A sua imortalidade não lhe dá invulnerabilidade a erros. Aqui pode-se errar como em qualquer agrupamento de poucas luzes. Se erravam os deuses quando desciam do seu Olimpo para se ombrear com os homens, o que poderemos fazer, nós imortais, com todos os nossos estigmas de criaturas passíveis de equívocos? Os lá de fora contam pelos dedos os nossos erros, sem levar em conta os nossos acertos numerosos. Se apresentam a derrota de um Domingos Olímpio, não levam em conta que fora o romancista cearense, muito digno de vosso convívio, vencido pelo gênio de um dos maiores brasileiros, Euclides da Cunha. E se erramos com Monteiro Lobato, tivemos a coragem de pretender corrigir o erro, desgraçadamente sem sucesso.
Mas aí estão homens que são o lustre de um povo. Basta vos falar de um Manuel Bandeira, poeta até a raiz dos cabelos, que trouxestes para a vossa companhia como se fosseis procurar a mais pura Poesia de nossa língua. Se temos uma grandeza nos dias que correm, esta grandeza está convosco. Este acerto corrige todos os vossos possíveis erros.
Temos uma Literatura que ainda é dos poetas. Se não contamos com todos os melhores de nossa época, é porque não querem eles a nossa companhia. Um dia chegarão. Devemos chamá-los no entanto sem o menor grau de ressentimento. Não podem ficar de fora. Esta Casa é deles. A arrogância de nos evitar vai muitas vezes por conta de caprichos e atitudes.
Afinal de contas, o que nos vale é o espírito que nos fortifica. A Literatura permanece no seu verdadeiro lugar, dando aos homens a sua originalidade intrínseca. Pelos poetas, pelos filósofos, pelos artistas, é que existe a Grécia. Uma pedra da Acrópole nos revela o ritmo de uma civilização que nos legou a sabedoria das proporções. Todos nós procuramos semelhanças e divergências que provocam o equilíbrio, quer venha de um verso ou de um pedaço de mármore humanizado.
Quando Machado de Assis concebeu esta nossa Academia, era o espírito acadêmico na sua essência o que ele queria congregar. O cético de uma filosofia desapiedada procurava no mundo o que lhe desse esperanças de viver, num meio que lhe parecia o mais fecundo de suas cogitações de homem. Machado queria um resumo da sociedade na sua melhor formação. O gago gostava da conversa entre amigos e, partindo da amizade, o criador de monstros de concupiscência e impiedade elaborou a formação de uma academia que valesse pela riqueza de seus fundadores. Os poetas que chamou ao seio amantíssimo não eram os poderosos do dia. Já se fora a especulação do encilhamento, onde valores se desvirtuavam nas vacilações de bolsas de jogatinas. Machado quis a convivência de homens pobres, de homens transbordantes de idéias, alguns arrastados pelas correntes mortais da boêmia, mas homens que tinham o que dizer, os admiráveis Raimundo Correia, Alberto de Oliveira e Olavo Bilac, o grave José Veríssimo, os imperiais Joaquim Nabuco, Rio Branco e Rui Barbosa, e os soltos de compromissos devorados pela vida airada como Guirnarães Passos. Todos, porém, servos das Letras, escravos das paixões fecundas.
Nesta Cadeira a que chego sem ter botado a alma pela boca, vou servir a um patrono que é a pura imagem da Poesia, o rapaz Junqueira Freire.
Este foi um homem de vida interior. Os poetas de natureza vegetal, os apaixonados pelos espetáculos da Natureza, os que cantam os mares, os rios, as vagabundas imagens que se acobertam à sombra das árvores e ao gemer das fontes, estes se contentam com pouco, apesar de parecerem insaciáveis. Terríveis e incontentados são os que se fecham entre quatro paredes e enchem a cabeça de mundos impossíveis. São quase sempre os poetas malditos, os poetas que não olham o mundo de fora mas o mundo de suas elucubrações, e, desde que não podem se satisfazer, passam a romper o quadro natural das coisas. A música que jorra de suas estrofes são marchas fúnebres, agonia das harmonias de corações que batem mais do que a dos outros.
Junqueira Freire procurou o pretexto de um amor frustrado para conceber a sua maneira de matar-se. O monge e o claustro deram-lhe o ambiente para as suas constantes violações das leis de Deus. Deus foi o inimigo número um que era preciso afugentar de suas proximidades. A Poesia do padre falhado era o canto de um moço desesperado que queria adormecer o seu anjo da guarda. Quando lhe faltou a força para se impor às suas riquezas, o frade renegado fazia de seu claustro uma furna de fera acuada. Gemiam as suas dores em surdina. E o seu choro não era de um infante infeliz: era de um iluminado pelos clarões de Lúcifer. Se Deus o perseguia, era preciso entregar a alma ao diabo. Assim fizera Bocage, gênio que o mundo perdeu. Junqueira Freire deu-se ao desespero e, desde que a sua volúpia de D. Juan não se realizou, convenceu-se de que só havia um caminho a trilhar: o nada. E ele não parou de rilhar os dentes de raiva; a grande opressão era de Deus, e para que o Pai não o conduzisse ao bom caminho encheu a boca de nomes feios. Quase morto, quando voltava à casa materna. No seu quarto havia uma imagem de Cristo de braços abertos, e ele a arrancou fora para entronizar um retrato sardônico de Voltaire. E deu-se à Poesia erótica com a fúria de um demolidor de castidade. O poeta de vinte e poucos anos parecia um romano da Decadência, no deboche das rimas fesceninas. E como tudo aquilo era uma parada, como o homem era casto, essa Poesia soou em falso.
Não há verdade na contrafação do poeta desesperado. A grandeza de Junqueira Freire estava na sua tristeza temporã, no adolescente possuído de impotência, no renegado pelo amor. Aquela violência de Laurindo Rabelo não ficava bem no monge frustrado. Tinha ele vida interior e senso crítico para as suas próprias debilidades.
A Poesia romântica da época era toda ela de meninos que queriam morrer. Mas a morte para estes era um tema, embora todos tivessem morrido na flor da idade. A morte não estava, no entanto, na raiz de suas almas. Morreram de tuberculose pelas extravagâncias, mas só queriam morrer dos dentes para fora. Não era o caso de Junqueira Freire. Este quis mesmo morrer, porque mortos estavam os seus sonhos. Vencido pela vida, recolhia-se em salas de convento, e ainda mais vencido se sentia. O que vinha para ele é um quase nada. Somente a morte é que pôde recolhê-lo como refúgio derradeiro. Junqueira Freire quer morrer não porque seja bonito morrer como Shelley, mas porque somente a morte lhe estendia os braços. É aí que mais se eterniza a sua realidade poética. E não é exagero dizer que Antero de Quental sentiulhe a influência no seu niilismo. A um amigo dizia Antero:
“Junqueira Freire é de primeira ordem, um verdadeiro poeta. Era frade por desgosto amoroso, e morreu aos 24 anos. Se não morre, seria dos primeiros do século, que lhe sinto no que deixou elementos para isto.”
Mas aí não fica Antero. Lá está bem no seu coração a imagem do poeta brasileiro. É quando Antero fala da morte. Para Antero a Morte seria a “funérea Beatriz de mãos geladas, mas única Beatriz consoladora”. Para Junqueira Freire, “pensamento gentil de paz eterna – amiga Morte, vem”. O grande poeta, a maior consciência de sofredor da poética lusíada, imaginava o fim como um noivado capaz de pacificar o pobre coração. “Pensamento gentil de paz eterna”, gemia Junqueira. Gentil a morte que pudesse levá-lo “à região da paz horrenda”. “Leva-me ao Nada”, suspirava o rapaz baiano, “leva-me contigo”, e depois, mais ainda: “Já não há tempo, /nem vida, nem sentir, nem dor, nem gosto./ [...] Única idéia mais real dos homens, / morte feliz, – quero-te comigo.”
Antero, para o seu soneto, teria sentido o poema nirvânico de Junqueira. Poeta sem alegria do mundo, expressão pungente do morrer para se libertar da vida, o patrono da Cadeira 25 é, não tenhamos dúvida, o mais universal dos românticos brasileiros. A sua dor não foi a dos negros cativos ou a mágoa de um amor perdido, foi a dor do mundo como em Schopenhauer, foi a queda do anjo na terra, o gênio despedaçado na ruína de sonhos malogrados.
Ligado aos poetas como Nerval, não será Junqueira um poeta músico, destes que vibram a lira para adormecer os dragões. O nosso poeta sabia que o dragão era mesmo invencível e mais perigoso que o gigante Polifemo de Ulisses. O monstro que lhe rondava a vida não se deixaria embebedar como o mito lendário. Devorador de ilusões, bebedor de sangue, vampiro que rompe as noites atrás de suas vítimas, então Junqueira Freire, como Antero, se entregaram. O morcego virou Beatriz de mãos geladas, o pensamento gentil de paz eterna.
Tenho para mim que a Poesia de Junqueira Freire não tem em nossa história literária o lugar que merece. Poeta da Morte, poeta das irreverências diante do Eterno, quis o Nada com a violência dos seus sentidos poluídos.
Esta Poltrona tem assim uma paternidade de nobreza; um quase arcanjo caído na obsessão do pecado preside a seu destino. Os que vieram para lhe ocupar o lugar não seriam homens de espanto, mas naturezas contidas nos limites dos livros.
A obra de um Franklin Dória e de um Artur Orlando não exprime senão a mediania.
Orlando, saído da Escola do Recife, pegou do cientificismo da época a rigidez da forma. A sua contribuição para as Letras não é de um modelador em pedra, mas de paciente fabricante de estruturas de cimento armado, todo preocupado com as suas modelagens. Curioso é que os homens que se fixaram na investigação científica, tomando-a como base de Literatura, no Brasil, se mostraram tão alheios à espontaneidade da criação. A preocupação em exibir nomenclatura e exatidão não os anima ao vigor de obras que permaneçam. Parecem mais ventríloquos. A condição de ensaístas ou pesquisadores da história se restringe ao que já foi dito. Apenas, complicam o curso e o sentido das coisas. Pequenos arroios em suas mãos se transformam em águas turvas, sem profundidade, só o leito vasculhado, e o que eram riachos que se atravessavam sem se arregaçar as calças, fingem-se de rios caudalosos.
A distância de um Junqueira Freire a um Artur Orlando é sem tamanho. Um bebia em fontes sulfurosas e envenenadas pela rebelião contra Deus, o outro se servia da água mansa das bilhas, sem tocar em originalidade de espécie alguma.
O gosto pela generalização levou Orlando a tropeçar com a verdade a ponto de fazer afirmativas que são verdadeiros desconchavos. Fazendo ele variações sobre mestiçagem, chegou a dizer:
“Uni um negro a um eslavo. Qual será o resultado? Tereis transportado para o cérebro de um indivíduo o produto desta união: a antipatia e a rivalidade até então inexistentes entre indivíduos diversos.”
Apenas este negro e este eslavo dariam à Rússia o maior poeta de todos os seus tempos, o grande Pushkine.
O melhor livro de Artur Orlando é aquele onde ele mais se aproximou da realidade, aquele em que ele se ligou ao que parecia que fosse o menor, o mais distante dos ensaios sobre estilo e propedêutica, iguais a teses de quem se preparava para concurso de lente. É a monografia sobre porto e a cidade do Recife. Mesmo aí, quando podia, lá vinha com a sua ciência em uniforme de gala.
A Literatura, para Junqueira Freire, era a posse de meios de propagador. Para Orlando, somente a explicação sobre certos problemas que ele não feriu com agudeza e fôlego: a predestinação do poeta e a pacífica submissão de ensaísta às regras convencionais.
A figura de um segrega o mistério do que provém dos que nasceram com estigmas.
Em Artur Orlando, o homem não rompe um milímetro a sua vocação de palmilhar o que já fora pisado por outros. O ensaísta pernambucano é dos que nunca descobriram um grão de pólvora.
Aqui não estou para falar mal dos que me antecederam, mas não estaria para mentir às minhas convicções. A Academia merece a verdade de cada um de nós. Isto de engrandecer os mortos com roupa alheia não nos fica bem. Nada de intrujices para ser fiel à convenção. Esta Casa se engrandecerá com a nossa sinceridade. Não estou aqui para me submeter a panos de boca.
O mestre Ataulfo de Paiva será para mim uma prova dos nove.
“Se negas a Artur Orlando, que foi das Letras, o que nos irás dizer de Ataulfo de Paiva, que não foi? Terás a coragem de ser verdadeiro?“
Sim, meus ilustres pares, esta nossa Academia vale mais que as regras do protocolo. Não serei um acadêmico protocolar, mas, para vos falar de Ataulfo de Paiva, preciso de coragem. Esta posse seria uma decepção para mim mesmo se viesse à vossa Companhia com subterfúgios ou sibilinas palavras. Tenho para mim que Ataulfo é a minoria de que não podem escapar todas as academias, sendo ele a contingência do tempo e exprimindo o que existe de exterior em nossa Casa.
As academias precisam dos Ataulfos, como ponto de referência, de elemento de sustentação em cálculos de resistência de material.
Conta-se que, certa vez, à porta da Garnier, o nosso fundador Machado de Assis, vendo o rapaz Ataulfo todo no melhor smart da época, de olhar brilhante e nariz de pássaro, não se conteve e lhe disse:
“Ficaria o senhor muito bem na Academia.”
Queria dizer o mestre, o triste Conselheiro Aires:
Assim como o senhor, com este corpo tão bem vestido, embora de cabeça tão despovoada, precisamos nós de homens que sejam o que nós não somos, homens simples de letras, sendo o senhor um homem capaz de aparecer nos salões com um brilho que nós não temos. Apesar de tudo, o senhor será um acadêmico que nos agradará.
Mas, pergunto eu, não haveria Machado de Assis desvalorizado a Academia com o seu gesto? Acredito que estava bem certo. Ataulfo de Paiva concentrava nas suas maneiras, na sua esperta alegria para todo o mundo, a perfeita elevação do seu meio social.
O Rio dos começos do século trazia de Paris o fulgor dos salões mundanos. Podia Ataulfo concentrar na sua total adesão às exigências sociais o modelo proustiano de Swann como fora o original, o que servira de inspiração a Proust, todo dos salões, do Jóquei Clube, das corridas, mas sem nenhuma espécie de interesse artístico, sem qualquer quentura de imaginação.
O poder de Ataulfo estava na sua invencível força para manobrar os homens. Nisto, ele foi admirável, com todas as manhas de um Brummell, sem orgulho e sem o esplendor do dandismo. Para vencer as outras criaturas, teve Ataulfo um extraordinário engenho. O que ele imaginava, conquistava ou conquistaria pelas escadas da vaidade e da gratidão de seus semelhantes.
Para muita gente de certa filosofia, o homem é o lobo do homem.
E não é. Aí está Ataulfo para nos mostrar que o homem é um animal grato. Tudo fazia Ataulfo de Paiva para agradar aos que pudessem servir às suas ambições. Para muitos vivia dando espetáculo de servidão. E não estava senão a serviço de si próprio. Era um corpo bem vestido, bem tratado, cuidadosamente em dia com as imposições da moda, e basta vê-lo no noticiário da crônica elegante do começo do século, quando o Rio de Janeiro imitava os centros europeus. Não era homem de bar, mas de casa de chá, dos five o’clock, dos serões de D. Laurinda Santos Lobo, a marechala.
Foram-se as condessas e as baronesas, e o Império deixara o terreno aos marechais, e para um posto supremo ficaria bem que D. Laurinda, fixada em Santa Teresa com suas baixelas e seus tapetes persas, ganhasse o título de marechala com a sua corte de galantes homens da categoria de Ataulfo.
Aliás, o mestre Ataulfo, que já se fizera notar como pretor no caso ruidoso do Papai Basílio, abrindo as portas das suas audiências aos jornalistas, caprichava no talho de seus casacos, no trato de seus bigodes, nos laços de suas gravatas.
Há uma caricatura de Cardoso Aires onde Ataulfo aparece com seu porte inconfundível. O homem tem semelhança com os pássaros mais do que com os outros animais. Por esse tempo, tudo havia em Ataulfo de um colibri, o nosso beija-flor. De fato, não era Ataulfo pássaro de canto, mas pássaro bonito, de penas policrômicas, solto nas salas, a beijar a mão de damas, com a sua instabilidade em ir e vir sem parar.
O dom-juanismo do nosso herói não se fixava em ninguém. Não era homem de casos amorosos como um Maciel Monteiro, o Ataulfo de outra época, ou de perder tempo com namoros monogâmicos. O amor de Ataulfo não era por tal ou qual moça, mas amor pegado com o futuro. O colibri não perdia tempo com a mais bela roseira do mundo. Havia a carreira, havia os postos mais altos a conquistar. Procurar um amor de carne e osso era desviarse do seu grande amor, aquele que ele perseguia desde o tempo de menino, quando o chamavam de Paivinha.
Narrou-me Carlos Pontes que era o menino Ataulfo interno de um colégio por onde passava o então General Deodoro a cavalo. Certa vez, o bravo do Paraguai conseguiu do diretor a companhia do menino para os seus passeios. Saía Paivinha com o cabo-de-guerra, até que um dia seu cavalo espantou-se e deu com ele no chão. Deodoro alarmou-se com o fato e o menino foi para a cama. Esta foi a única queda de Ataulfo de Paiva na vida. Até a última, a derradeira, para o fundo da terra.
Pois bem: foi daí que partiu a sua ascensão na carreira judicial. Com a República, Deodoro não se esqueceu do Paivinha e deu-lhe força para a primeira nomeação. Criou asas o colibri e saiu a beijar as flores que descobria pelo campo.
Mesmo na maturidade, Ataulfo não perdeu essa sua fisionomia de pássaro saltitante. Cantar, não cantou, que não era de cantos, que não era para as delícias das sonatas campestres. Ataulfo era da sua carreira. E assim permaneceu fiel aos seus planos. A construção de seus castelos não assentava no ar, ou em areias movediças. Tudo nele era elaborado em termos de permanecer para somente elevar-se mais ainda. Os seus postos a atingir eram os supremos; o meio-termo não o satisfazia.
Chegou ao Supremo Tribunal Federal sem ter sido um juiz sábio e à Academia Brasileira de Letras sem nunca ter gostado de um poema. A natureza Ataulfo de Paiva se exercitava para os grandes saltos sem riscos de vida. Não havia nele o romântico dos trapezistas sem rede. Nada de perigos e pescoço partido. Ataulfo agia a frio, e vencia as provas mais difíceis.
Conta-se que, para a sua eleição à Academia, Rui deixara a sua reclusão para vir votar no seu nome. Mas, para vencer assim, tinha-se a impressão de facilidade.
Engano. Nos seus silêncios de solteirão, o beija-flor recolhia as asas e suava e curtia mágoa. Isto dentro de casa. Lá fora o mundo era seu. O Swann se desdobrava em mil Ataulfos, cartões de visita, flores, as damas, os batizados, os casamentos, olhos molhados em missa de sétimo dia, parabéns a ministros, posses, dias felizes, quartos de defunto.
Quando atingiu aos limites de suas ilusões, tinha que bater-se pelas condecorações, pelos bons lugares em banquetes. Para evitar os enganos dos homens do protocolo, tinha o seu cartão impresso com as regalias, com os seus lugares já marcados. Nada de esquecimentos, nada de equívocos.
Contou-me um amigo que, vendo-o parado, à espera de condução, o convidou para o seu carro e foi abrindo a portinhola para tê-lo a seu lado. Ataulfo aceitou, mas não ficava bem para a sua posição aparecer como ajudante de chofer aos olhos da cidade. E permaneceu na poltrona traseira. Não era orgulho, mas vaidade somente. Mesmo fora das competições, com todos os pontos atingidos, ficou-lhe o gosto pelas aparências. Velho, pintava de cores esquisitas os cabelos, e não parava. O mesmo colibri, nos teatros, nas festas solenes, com o seu dossier de grão-senhor bem recheado, fez obra de filantropia e muito bem fez a necessitados.
Quis mostrar que não era um acadêmico de corpo, só de corpo, e imprimiu livros sobre legislação social. Um seu trabalho sobre criminosos irresponsáveis mereceu elogios, em 1916, do jovem médico Maurício de Medeiros.
Não se procure, porém, Ataulfo nos seus livros, que nada dizem de sua personalidade. Procure-se o homem representativo na sua atividade social e mundana. Neste sentido, foi um autêntico expoente.
As fórmulas que elaborou desde a queda do cavalo até a conquista do Supremo Tribunal Federal são positivamente originais. Porque nelas não havia sabujice, apena um sistema baseado na vaidade de seus semelhantes.
Partindo da evidência de que o homem é essencialmente um narciso, descobriu Ataulfo todas as espécies de espelho para que pudesse este narciso mirar-se à vontade.
Lembro-me de que certa vez, ao encontrá-lo no Ministério da Educação, recebi do velho um apertado abraço. Imaginei-me logo louvado por algum artigo ou livro. Todo banhado pelos olhos quentes daquela admiração, quis saber a razão daquelas felicitações. Então Ataulfo respondeu-me com uma síntese digna de um criador de narcisos:
“Parabéns por tudo.”
O narciso estava assim cercado por todos os lados.
O mestre Ataulfo era mais sabido do que se pode imaginar. A sua sabedoria sobre os homens não seria a de um Saint-Simon, que viu a sociedade no profundo de sua raízes. Era sabedoria de um carioca, embora nascido em São João Marcos, do carioca que tomava o homem pela suas fraquezas.
A Poltrona que foi criada sob a invocação do pássaro noturno que foi Junqueira Freire, o rapaz que queria morrer de verdade, teria a ocupá-lo o beija-flor que só queria viver e se deslumbrar com a vida.
Para Ataulfo, a vida era para ser sem atritos, sem as amarguras das noites em claro. Viver até o último minuto, viver, e tudo que lhe fosse estorvo à vida, que ele ignorasse – se não pudesse transformar em degrau.
Conta-se de um grande jornal, o único a lhe atrapalhar a carreira. O diretor era um tigre. Mas Ataulfo conhecia o segredo das flores, o prestígio dos aniversários. E tanto fez com as suas dádivas de rosas à ilustre matrona, senhora do furioso diretor, que aos poucos o tigre foi se sumindo de sua carreira. Ataulfo conquistara uma praça forte sem disparar um tiro.
Era este homem prestimosíssimo cheio de blandícias e às vezes áspero com o que lhe merecia raiva. Não admitia reservas de inferiores e amava os elogios. Quando morreu, teve a morte que desejou, enterro de fardão e pranto de poetas. Carlos Drummond de Andrade, um pedaço das pedras do Itacolomi, Augusto Frederico Schmidt, o mágico das angústias do mundo, dedicaram-lhe artigos.
“Caro Ataulfo”, chamou-lhe o Andrade.
“Fortaleza que parecia inexpugnável”, escrevia Schmidt.
A morte foi, para Ataulfo, assim como uma tarde de sucesso na Confeitaria Lallet, em 1916. Aos 90 anos, só caiu de cama para morrer. Mesmo valetudinário, sempre nos quis dar a impressão de que era o mesmo Ataulfo de Paiva. Não sofria de nada, comia de tudo, bebia sem medo. Mas tudo isto como se estivesse num teatro.
As suas refeições e banquetes eram verdadeiras simulações de validez. Os pratos voltavam intactos, mas o conviva não parava de mexer nos talheres e tocar nos copos. O teatro da vida merecia os esforços do ator.
Se não recebia convites, sentia mágoas e planejava revides. A sociedade não podia passar sem Ataulfo. Se morriam amigos, estaria nas horas das despedidas como estivera na festa dos casamentos.
Tudo isto não era produto de improvisação. Nada em Ataulfo era obra do minuto, tudo obedecia a planos estabelecidos.
Se ia ao teatro, não dispensava o carro oficial e o automóvel de sua propriedade. Sempre havia pessoas que não dispunham de condução na hora do aperto. O mestre Ataulfo cuidava dos homens que lhe mereciam as atenções. E nesse sentido não podia ser chamado de bajulador dos grandes do dia.
Contou-me o amigo Andrade Queirós: dias antes da posse de Getúlio Vargas, apareceu Ataulfo no Palácio para fazer o ensaio geral da festa na Academia. O presidente do Livro do Mérito reproduziu em todas as minúcias as manobras da recepção. Pôs-se de pé com uma régua fingindo de espada, fez-se de candidato com todos os gestos, com todas as miudezas do ato. O mestre Vargas ficara senhor de tudo, mesmo sem a audiência do seu homem do protocolo.
Assim era o homem magnífico que me precedeu. A sua cabeça funcionava como verdadeiro cofre de fichário. A atividade e o exercício cotidiano das relações sociais deram-lhe uma elasticidade prodigiosa. O seu preventório em Paquetá, além de funcionar como obra de caridade ativa, era pretexto para suas visitas em companhia de amigos e de viajantes ilustres.
Ali até as plantas traziam a marca de Ataulfo. Conta Carlos Drummond de Andrade de uma palmeira que dava leite como vaca holandesa. Ataulfo batia palmas como um marajá, aparecia um funcionário de estilete e, aberta a ferida no corpo da palmeira, corria do caule uma linfa branca que se bebia como dádiva de Deus.
As cenas de Ataulfo não eram paradas para somente deslumbrar. Visava ele fazer o amigo, aprofundar-se na afeição dos moços e dos velhos. Para isto, procurava agir com mãos de mágico.
Se o Sr. Santiago Dantas tinha uma babá doente do peito, Santiago ainda pobre, nos começos da vida, aparecia Ataulfo para providenciar leito, condução e cura para a pobre mulher. Fizera com essa senhora o que faria com os mais importantes.
Sentia-se grande no poder de propiciar alegrias. Como amigo, sabia como devia entrar e como devia sair. Depois de abraçar uma pessoa no aeroporto, um dos presentes lembrou que deviam ir até a casa do viajante. Ataulfo não cedeu, dando a sua lição:
“Aos que partem, não devemos perturbar em casa, porque precisam fazer as malas. E aos que chegam, não devemos impedir que tornem o seu banho e usem os seus chinelos.”
Era assim o homem a quem sucedo.
Para ele, era necessário tirar os ossos da vida. Nada de espinhas atravessadas na garganta. Os dias deviam correr em cadência e para tanto melhor seria não ser um espectador de torrinhas, sujeito às vaias e aclamações. Primeira fila – coração sem estremecimentos de violências.
Teve tudo o que quis sem dar impressão de preterir aos outros. Quando chegava ao ponto colimado, não havia passado por cima de cadáveres. A sua vida foi um five o’clock em casa de D. Laurinda. Aos que o tomavam para sátira, não os tinha na conta de inimigos. O seu sucesso provinha muito da desvalorização da raiva. Pouco se dava se lhe vinham com perguntas sobre a sua idade.
De nada sei – dizia ele. – Os livros da igreja de São João Marcos foram destruídos pelas águas da Light.
Sabia ele que a morte não se enganava. De nada lhe valiam as tintas, as massagens, os dedos dos alfaiates. O monstro espreitava no momento marcado.
Sentindo a sinistra aproximar-se, o elegante se entregou. Não quis saber de mais artíficios. Ficou na sua realidade crua, de faces escavadas e de cabelos brancos. Dizia-se que assim mesmo procurou o nosso grande Ataulfo despistar a morte. Aquele não seria na certa o homem que era procurado. Os olhos sinistros têm a agudeza das águias nas alturas. Aquele era mesmo o seu Ataulfo, o velho sempre tão ligeiro, tão agradável, tão amigo das aparências. Era preciso levá-lo para os sete palmos da terra. E que morresse como vivera: vida de 90 anos.
Noventa anos de marchas e contramarchas, de espetáculos, de voar constante pelas flores da vida. E o colibri sem penas, todo reduzido a nada, deu o seu último vôo até o refúgio dos anjos.
Aqui nesta Casa deixou saudades porque foi companheiro de primeira ordem. Acostumara-se a Academia com a sua fluência oratória, as suas delicadezas, a amenidade de trato. Alceu Amoroso Lima, para consolá-lo de ataques da imprensa, dizia-lhe:
“Sobe mais o pão-de-ló quanto mais batido.”
E não era velho de maus bofes. Não levava em conta os achaques da idade que sempre procurou dominá-los ao seu jeito, tratando a vida como a dama preciosa.
Morreu deixando saudades, porque fez amigos eternos.
E é aí que está a sua grandeza: amigos que não eram pela sua inteligência nem pelo seu dinheiro, que não os tinha para regalá-los. Amigos que os fez como bom oleiro, à custa de muito trabalhar o barro humano.
Senhores acadêmicos:
Chego ao fim e vos agradeço a eleição. Não rastejei. Não vos namorei com olhos compridos de enamorado impertinente. Destes-me esta Cadeira sem esforço e sem trabalho. Agradeço-vos, e serei vosso companheiro sem torcer a minha natureza. O homem José Lins do Rego continuará intacto com as suas deficiências e as suas possíveis qualidades, pronto ao serviço de Machado de Assis, o capitão de nós todos.
15/12/1956