O ano de 1930 nascera sob maus presságios. Poucos meses antes, o crack na bolsa de Wall Street em Nova Iorque já estava repercutindo negativamente sobre a economia brasileira, com a crise na cafeicultura e nas exportações.
A sucessão presidencial ia num crescendo preocupante. Antônio Carlos, presidente de Minas, era o candidato natural à sucessão de Washington Luís, um paulista de Macaé, e que, findo o seu quadriênio no Catete, deveria ser sucedido por um mineiro, em obediência à tradição republicana.
Citado por Alzira Vargas do Amaral Peixoto, no livro Getúlio Vargas, Meu Pai - Ed. Globo - Pág. 47, o catarinense Lauro Müller, com a frustração dos sonhos de seu estado em fazê-lo presidente da República, dizia numa clarividente previsão:
- Enquanto o governo do país permanecer nas mãos desses portugueses de Minas e de São Paulo, não haverá perigo; cuidado, porém, com esses espanhóis do Rio Grande do Sul, porque estes, se tomarem conta do poder, custarão a sair.
Com o apoio de Washington Luís a outro paulista (no caso, Júlio Prestes), rompia-se a monotonia dessa gangorra Minas-São Paulo. Aí, bafejada pela reação e pelo estímulo mineiros, surgia a candidatura de Getúlio, presidente do Rio Grande do sul, que até então se mantivera fiel à orientação política do governo federal - fora antes, inclusive, seu ministro da Fazenda - , mas que se transformaria no candidato da oposição.
O companheiro de chapa era o presidente da Paraíba, João Pessoa, a braços com a rebelião local de José Pereira num reduto no interior paraibano, que todos imaginavam apoiado por Washington Luís e que, à frente de jagunços, anunciava a criação do Território Livre de Princesa.
Dias após as eleições, realizadas a 1º de março, a vitória da chapa Júlio Prestes-Vital Soares era tão esmagadora que normalmente deveria desestimular qualquer protesto da oposição. Mas acontece que essa oposição não aceitava o resultado das urnas, acusando-o de falso porque obtido através de extensa fraude eleitoral. Era a primeira vez que a oposição derrotada reagia. Mas não seria a última em que se falaria de fraude. Muito pelo contrário.
A revolução, coordenada por Góes Monteiro, Oswaldo Aranha, João Alberto, João Neves da Fontoura, Flores da Cunha, Maurício Cardoso, Antunes Maciel, João Carlos Machado, Virgílio de Melo Franco, Juarez Távora, Juracy Magalhães, Afonso de Albuquerque Lima, Batista Luzardo e vários outros, já estava praticamente na rua e sua articulação atingiu o auge do emocionalismo com o assassinato de João Pessoa, na Confeitaria Glória, Recife.
Afinal, por que João Pessoa foi assassinado?
Esse crime merece uma reconstituição, não só pelos seus desdobramentos e conseqüências, como também pela importância das pessoas nele envolvidas: a vítima, João Pessoa, presidente de um estado; e o assassino, João Dantas, um advogado paraibano, sertanejo da cidade de Teixeira e amigo de José Pereira, o líder de Princesa, e de João Suassuna, o líder de Catolé do Rocha.
João Duarte Dantas fazia violenta oposição a João Pessoa. Um apartamento seu, localizado em sobrado da então Rua Direita, 519 (hoje Duque de Caxias), bem no centro da capital, próximo do Ponto de Cem Réis e do palácio onde trabalhava João Pessoa, foi invadido pela polícia no dia 10 de julho, sem que se saiba até hoje se com ou sem o conhecimento prévio do presidente paraibano. Livros, documentos e móveis de João Dantas foram queimados na calçada fronteira.
Informa-se sem confirmação que se aprenderam cartas íntimas entre João Dantas e sua noiva Anayde Beiriz. O jornal A União, que já era então o órgão oficial do governo da Paraíba, publicou uma série de acusações gravíssimas a familiares de João Dantas, inclusive ao patriarca, Dr. Franklin. Ódio mortal passou a jogar um João contra o outro. Amigos preocupados com aquela rivalidade conseguiram que o Dantas se retirasse para Olinda, em Pernambuco.
O Presidente João Pessoa preparava-se para receber a homenagem de um grupo de paraibanos pelo famoso Nego, inscrito como símbolo na bandeira da Paraíba, quando anunciara a Washington Luís a sua definitiva recusa em apoiar Júlio Prestes. Precisamente no dia 26 de julho, e acompanhado apenas do seu motorista, foi ao Recife numa viagem particular, amplamente divulgada pelos jornais locais, a fim de visitar um amigo enfermo, o Juiz Francisco Tavares da Cunha Melo, internado no Hospital Centenário. O Estado de São Paulo publicou no dia 3 de outubro de 1930: "Tudo indica que João Pessoa fora ver uma cantora com quem vinha mantendo romance secreto e isto explica a sua ida à Joalheria Krause."
Segundo os escritores paraibanos Horácio de Almeida e Amarýlio de Albuquerque, referidos por José Joffily no livro Anayde - Paixão e Morte na Revolução de 30 - Ed. Record - Pág. 49, essa cantora era o soprano Cristina Maristany.
No seu refúgio de Olinda, João Dantas armou-se de um revólver e rumou para o centro da capital pernambucana. Estava acompanhado do cunhado Moreira Caldas e não lhe foi difícil vislumbrar João Pessoa bem no centro da Confeitaria Glória. Aproximou-se dele:
- João Pessoa? Eu sou João Dantas.
Vários tiros foram disparados por João Dantas e por Moreira Caldas, não se tornando possível, assim, caracterizar qual tenha sido a bala fatal que lhe varou as costas. Ao tentar a fuga, João Dantas foi ainda atingido de raspão na cabeça com um disparo feito pelo motorista de João Pessoa.
Em seqüência, diversas outras mortes trágicas
Presos, João Dantas e Moreira Caldas foram recolhidos à Casa de Detenção, do Recife, onde ambos, no dia 3 de outubro, logo no início da Revolução de 30, viram-se degolados a cortes de navalha e suas cabeças remetidas à Paraíba. Versão diferente dá conta de que eles se suicidaram com golpes do mesmo bisturi, primeiro Dantas, depois Caldas. Para sustentar a tese desse suicídio-a-dois, José Joffily revela no seu livro, pág. 53, a existência de bilhetes deixados por ambos sob os travesseiros:
"Como poderiam estes documentos de despedida, escritos em instante derradeiro, apresentar a correta redação, o talho das letras e a autenticidade das assinaturas, comprovadas em perícia, se tudo fosse escrito no tumulto de uma feroz degola e trucidamento?"
Cita a confidência de João Dantas ao seu irmão Manoel, como prova do seu intuito de suicidar-se: "- No caso de um movimento armado e vitorioso, eu não me entrego. Mato-me!"
"- E tens ao menos com que te matar?"
"Ele abriu a gola do pijama e retirou dele um afiado bisturi."
Três dias depois aconteceu outra morte dolorosa: a da noiva Anayde, uma moça de 25 anos, bonita, moderna e avançada para a época, que, já tendo ingerido o tóxico peçonhento de uma cobra, procurou refugiar-se no Asilo Bom Pastor, à Rua Benfica, bairro da Madalena, Recife, onde deu entrada às 11 horas do dia 6 de outubro para, mesmo socorrida pelas freiras, morrer três horas depois. Causa mortis, atestada pelo IML local: envenenamento.
Anayde, uma órfã de pai e mãe, execrada com o sinete daquela paixão por João Dantas, foi enterrada no cemitério de Santo Amaro, como mendiga, sem endereço e sem nome conhecidos, de acordo com sua certidão de óbito.
A quinta vítima dessa tragédia shakespeariana foi o ex-governador e já então Deputado Federal João Suassuna, assassinado, por Miguel Laves de Souza, com apenas um tiro, na esquina da Rua Riachuelo com a dos Inválidos, Rio.
O parlamentar, amigo de João Dantas, viera ao Distrito Federal na esperança de ser recebido pelo Presidente Washington Luís, já na agonia final de seu governo, para fazer-lhe um relato sobre a situação paraibana.
Sobre esse assassínio de Suassuna, seu filho, Ariano Suassuna, acadêmico e escritor (Auto da Compadecida), denunciaria num artigo publicado pela Folha de São Paulo, em 11 de setembro de 1980:
"Por ocasião dos acontecimentos de 30, nos quais, entre outras coisas, meu pai foi assassinado, a mando de pessoas que apoiavam Getúlio, éramos todos, da nossa família, antigetulistas."
Pelo menos aparentemente, a morte de João Pessoa não passara de um crime passional, transformado em tragédia política. O navio "Rodrigues Alves", que transportou seu corpo para o Rio, fez escalas em Salvador e Vitória, onde multidões acorreram ao Cais do Porto , para ovacioná-lo. No Rio, em plena Avenida Rio Branco, o caixão foi saudado por Maurício de Lacerda:
- Cidadãos, mirai este esquife. Morrei por este homem que por vós morreu. Ajoelhem-se e deixem passar o cadáver deste Cristo do civismo e ergam-se, depois, para ajustar contas com os judas que o traíram."...
"Testemunho Político" - 1998-pg.3
Um presidente de Cuiabá, desconfiado e esquivo
Eurico Gaspar Dutra era um cuiabano, esquivo e desconfiado. Com um físico franzino, fora recusado inicialmente pelo Exército. E se vira aprovado numa segunda junta de saúde, já na cidade de Corumbá. Fez depois uma completa carreira militar, permanecendo como ministro da Guerra desde 1937 e visitando a FEB, na Europa. Foi tido como o Condestável do Estado Novo, até 1945, quando ajudou a depor Getúlio Vargas no dia 29 de outubro, embora viesse a receber em seguida o apoio getulista, decisivo, para a sua candidatura presidencial.
Governou durante cinco anos, apoiado por quase todos os partidos: PSD, UDN, PTB e PR. Inaugurou em Volta Redonda a Companhia Siderúrgica Nacional - CSN e, no Rio, em 1948, o Tribunal Federal de Recursos - TFR; construiu a Hidrelétrica de São Francisco - CHESF; proibiu o jogo e fechou os cassinos; lançou o plano SALTE, que foi o primeiro projeto de governo no Brasil, com as metas prioritárias de sua sigla: Saúde, Alimentação, Transporte e Energia.
Esse Plano, que nasceu das visitas do General Eisenhower e do Presidente Truman ao Brasil – logo retribuídas pelo Presidente Dutra em 1948 -, não pôde ser integralmente executado por causa da demora de sua aprovação no Congresso.
Forte anedotário circulava então sobre a pessoa de Dutra, que não se aborrecia nem se magoava, porque encarava as piadas como provas de afeto popular:
- É possível que escondam de mim as mais pesadas.
Era o alvo predileto das anedotas. Fazia questão de manter-se atualizado sobre elas. Divertia-se quando as reproduzia para os amigos, mas não gostava de vê-las contadas por estranhos.
Não cortejava o aplauso do povo, mas torcia pelo Flamengo, do qual veio a ser sócio-benemérito.
Seu mutismo era famoso. Tinha horror a dar entrevistas coletivas ou individuais à imprensa. Só discursava em público quando não podia evitar. E lia penosamente textos preparados pelos seus ghost-writers. Tinha uma irresistível dificuldade para pronunciar certas palavras, sobretudo as que contivessem a letra s, que geralmente trocava por x.
Em 1954, três anos depois de ele haver deixado a Presidência da República, procurei-o certa tarde em sua residência da Rua Redentor, Ipanema. Fui na companhia do ex-Deputado Anísio Rocha, seu amigo particular. Queria uma declaração dele sobre o Memorial dos Coronéis e a crise militar, que estavam então em grande efervescência:
- Não posso nem devo falar sobre esses assuntos. A minha condição de ex-presidente me impede de dar entrevistas. Não tive tempo nem de ler os jornais sobre essa crise de que você está falando. É que um ladrão entrou aqui em casa, hoje de madrugada, e tive de chamar a polícia. Foi uma chateação terrível.
- Como foi mesmo esse assalto?
- Uma revista importante como a Manchete não pode se preocupar com histórias de ladrão. Foi um assalto comum. Não houve vítimas. Ele levou poucas coisas, inclusive porque não havia muitas coisas para levar. Não teve nenhuma gravidade ou importância.
- Então, voltemos à crise militar e ao memorial contra Jango...
- Olha aqui Murilo, é melhor nós voltarmos ao ladrão.
Marchas e contramarchas na sucessão de Dutra
A verdade é que o Presidente Dutra encontrara a nação em razoável situação econômico-financeira, provocada pelo acúmulo de reservas feito durante a II Grande Guerra. Mas o governo começou a desenfreada política de permitir importações então tidas como supérfluas: carros, geladeiras, tecidos, artigos de luxo, além de ferro velho, como a Leopoldina, quando foram gastos US$ 2 bilhões, num verdadeiro festival de esbanjamento e desperdício.
Na intimidade do poder, crescia a influência do chamado Partido da Copa e da Cozinha, que por trás dos bastidores comandava a política e a administração.
Do meio para o fim do qüinqüênio, começou a aumentar a onda da sucessão presidencial. Estava em plena vigência o Acordo Interpartidário, firmado entre o PSD, a UDN, e o PR. O Sr. Cirilo Júnior comentava:
- O diabo é que os partidos são três e o candidato só poderá ser um.
Muitas marchas e contramarchas aconteceram, então. Surgiram e sumiram as candidaturas de Octávio Mangabeira, Wenceslau Braz, Milton Campos, Nereu Ramos, Adhemar de Barros, Afonso Pena Júnior, Walter Jobim, Canrobert Pereira da Costa e Mello Vianna. Nasceu a famosa Fórmula Jobim, preconizada pelo governador do Rio Grande do Sul, para incluir apenas as forças consideradas leais ao governo. Sucederam-se monotonamente as reuniões dos "Três Grandes": Nereu Ramos, Prado Kelly e Arthur Bernardes. Uma Fórmula Mineira, então idealizada, incluía os gasparinhos, sugeridos pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra: Ovídio de Abreu, Carlos Luz, Israel Pinehiro e Christiano Machado.
Sobre este último, Amaral Peixoto conta que submeteu seu nome ao Presidnete Dutra, ouvindo dele a seguinte resposta:
- Este não serve.
- Por quê?
- Porque tem um irmão comunista, que dentro do palácio será muito perigoso para nós. O irmão era o escritor Aníbal Machado.
Com Plínio Salgado, sem apoio dos socialistas
Ciente de que o Acordo Interpartidário não era mais viável e tinha sido praticamente enterrado, com impossível tessitura, a UDN, pressionada por um Movimento Popular, reuniu a sua convenção nacional no dia 18 de abril de 1950 e lançou mais uma vez a candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes para presidente e de Odilon Braga para vice, através de um histórico e dramático discurso de José Américo.
Convidado a apoiá-los, João Mangabeira, do Partido Socialista, reagiu:
- Não podemos caminhar ao lado de quem já tem o apoio de Plínio Salgado.
E viu-se lançado pelo PSB, escolhendo Alípio Corrêa Neto para vice. Com o PSD dividido entre ortodoxos e liberais, entre getulistas e dutristas, foi finalmente lançada na convenção nacional a candidatura de Christiano Machado, mesmo com o estranho veto ao seu irmão Aníbal, tendo dois candidatos a vice: Altino Arantes (do PR) e Vitorino Freire (do PST).
Lá em São Borja, durante os últimos cinco anos, Getúlio se deixara ficar, livre dos atritos e desgastes. Antes solitário e praticamente abandonado, ele assistia agora, de uma hora para outra, à revoada de políticos que aterrissavam no campo de pouso de sua fazenda: Adhemar de Barros, Salgado Filho, Danton Coelho, Epitácio Pessoa e Erlindo Salzano, que lhe levavam apelos para que aceitasse ser candidato.
Assinou-se aí o famoso Protocolo de Itu, que consagrava a fusão dos partidos populistas em apoio a Getúlio na sucessão presidencial, mas que não incluía ainda no seu texto a escolha do vice-presidente.
Adhemar engajou-se nessa frente: não podia ser candidato, ele próprio, à Presidência da República, porque tinha de enfrentar um genro de Dutra, o vice-governador em São Paulo, Novelli Júnior, que era seu inimigo pessoal e ao qual não podia transferir o governo, seis meses antes da eleição. Ao mesmo tempo, precisava do apoio getulista para o candidato à sua sucessão no governo de São Paulo,, o Prof. Lucas Garcez.
"Testemunho Político" - 1998 pg 101