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Muro de Berlim às avessas

 

A crise que levou os Estados Unidos à beira do "default" poderá ser lembrada como a data em que ficou à mostra o início da sua queda, tão esperada pelos seus inimigos. É um Muro de Berlim às avessas.

Caiu pela falta de liderança interna, pela decomposição do seu sistema político. Um novo Tocqueville não escreveria mais as excelências da democracia americana, mas um Fukuyama teria motivos para falar do fim dessa história.

O exemplo que deram ao mundo inteiro foi o de que a maior nação do mundo tem a pior classe política que se pode imaginar.

Um episódio rotineiro, o aumento do teto de sua dívida, que durante os últimos 50 anos foi feito 74 vezes e que, desde 1979, em princípio é fixado automaticamente com a votação do Orçamento, foi transformado num butim político.

É inconcebível que uma nação desse porte e com tantas responsabilidades dê esse exemplo vergonhoso de provocar crise política sobre o óbvio - elevar seu teto da dívida, operação contábil - para levar o país a esse desastroso tsunami de incertezas, com repercussões mundiais. Ressuscitam das cavernas um fóssil, o Tea Party, para que ele saia com as bandeiras mais retrógradas, julgando os pobres como se não existissem, sem direito a assistência médica, saúde e tudo mais.

A título de emparedar o presidente, o interesse nacional nada vale. E criam uma luta sem glória, como diria Corneille no "Cid", um "triomphe sans gloire", no qual o único perdedor são os Estados Unidos. Nenhuma visão da missão histórica dos EUA perante o mundo.

Depois da queda do Muro de Berlim, os americanos saíram à frente como a nação capaz de liderar a gerência dos problemas do futuro da humanidade, que ameaçam a convivência internacional, que vão desde as migrações maciças (que ocorrem agora no Chifre da África) até a proliferação nuclear, os conflitos regionais, as drogas e tudo mais. Era uma esperança.

Mas os Estados Unidos perdem credibilidade, ameaçam a já instável economia mundial com o não pagamento de seus compromissos, desestabilizando a economia global e causando uma perplexidade que ainda não se esgotou.

Se o Partido Republicano não ganhou votos com essa luta vazia, por outro lado, Obama perdeu com a demonstração de ser um líder vacilante e fraco, sem inspirar confiança à comunidade internacional e sem mostrar-se como um condutor capaz de extinguir crises.

Com esse exemplo, os americanos perdem autoridade para impor regras a outros países, porque não conseguem segui-las em casa.

O Brasil teve sempre, ao longo da sua história, a capacidade política de, todas as vezes em que estão em jogo os interesses do país, encontrar um terreno comum em que prevalece o interesse nacional.

Assim foi na Independência, na República, em 1930, em 1985 e nas crises econômicas que o país viveu.

Ninguém quis dilacerar o Brasil para assegurar a vitória na peleja política. Mas há uma crise de liderança mundialmente. A Europa é outro exemplo, quando Inglaterra, Alemanha, França, Itália e Espanha sentem as saudades e a falta de Churchill, Adenauer, Mitterrand e Felipe González.

Os americanos começaram sua derrocada com Bush, o guerreiro, até a quebra do Lehman Brothers. Hoje, são a incerteza e a recessão à porta. O que vem para um mundo em que os Estados Unidos eram um farol e hoje são uma luz amarela que não ilumina nem dá exemplos?

Coloquemos nossas barbas de molho porque o que parecia impossível e era sólido desfaz-se e, como se diz no Nordeste, no horizonte pinta um tempo de "vaca não conhecer bezerro".

Folha de São Paulo, 5/8/2011