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A volta da Cinemateca

 

Reabertura do espaço simboliza fim do divórcio inconcebível entre o poder politico e o cinema no Brasil

Desde que os primeiros europeus botaram os pés na América, em 1492, ficou combinado entre eles que só havia canibais entre os indígenas do Novo Mundo. De volta à Europa, os caronas de Cristóvão Colombo espalharam essa história por onde andavam. Pouco depois, Pedro Alvares Cabral aportou mais ao sul do mesmo continente desconhecido e seus embarcados adotaram o mesmo discurso que devia ajudar a afastar aventureiros daquelas preciosas “descobertas”. A coisa não pegou, o gosto da aventura e do enriquecimento rápido era mais poderoso que o medo de ser comido pelos canibais americanos.

Para os indígenas, tudo se parecia mais com uma guerra cultural. Nossos nativos disputavam seus interesses culturais contra o poder político dos europeus que começavam a ocupar o continente que logo estaria sob a tutela dos “descobridores”. É mais ou menos o que acontece agora conosco, os cineastas e outros artistas brasileiros, submetidos a um desejo de poder político dos descendentes dos europeus. Enfrentamos esse poder político, cada vez que ele se manifesta, acertando as contas no final delas.

Mas agora, de uns quatro anos para cá, não tem mais conversa. O poder político nos escolheu como inimigos, é preciso acabar conosco, arte e cultura são manifestações equivalentes ao canibalismo dos séculos XV e XVI. Em nome dos bons costumes, é preciso acabar com essa antropofagia do século XXI que sugere ao público pensar diferente, com sua própria cabeça, fundado em ideias originais. O poder político, acostumado a dizer o que seus apoiadores desejam ouvir, não se interessa em negociar com os bárbaros. Eles precisam é acabar com esse mau exemplo para o resto do país.

Por isso ficamos tão felizes com a notícia de que a Cinemateca Brasileira estava reabrindo, comandada pela Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), uma rara OS especializada e, por isso mesmo, de nossa absoluta confiança. E ainda tendo à frente alguém que vem refletindo tanto sobre nós, o professor Carlos Augusto Calil. Desde janeiro, depois de dois anos fechada, a Cinemateca está agora com a SAC. E a SAC, essa semana, convocou cineastas e cinéfilos, amantes do cinema para, nessa última quinta-feira, 12 de maio, celebrar o fim do divórcio inconcebível entre o poder politico e o cinema no Brasil.

Estavam na eufórica celebração desde jovens cineastas, como Roberto Gervitz, um sustentáculo na luta pela Cinemateca, até veteranos como o centenário Rodolfo Nanni. A animação foi estimulada por documentos audiovisuais sobre tanta coisa e tanta gente da qual nos orgulhamos tanto. Documentos audiovisuais encerrados com chave de ouro por Ligia Fagundes Telles, a grande escritora. Desde a morte de seu companheiro Paulo Emílio Salles Gomes, um dos criadores da Cinemateca, Ligia se tornara uma espécie de primeira dama do nosso cinema, até seu falecimento recente.

Nada mais apropriado do que encerrar a noite de festa cinematográfica com a projeção da cópia recuperada pela Cinemateca de “Macunaíma” (1969), a obra-prima de Joaquim Pedro de Andrade, consagrada em todo o mundo. E “Macunaíma”, em seu tempo e ainda hoje, é a exata reprodução e o elogio de uma aliança encantada entre o cinema e o modernismo literário, aqui representado por outro Andrade genial, Mario. Em livro e filme, os dois Andrades nos ensinam um outro modo de ver o Brasil através de sua própria cultura, seu jeito de ser. Quem sabe isso nos ajuda a nos libertar de todas as mentiras que nós mesmos andamos a contar sobre nós?

O Globo, 15/05/2022