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Viajei no Aerolula

 

O avião presidencial é um sonho de consumo que passou a integrar a imaginação dos brasileiros. Construíram tantas fantasias que as pessoas passaram a pensar que ele não era avião, mas um palácio voador, cheio de encantos e surpresas, coisa das mil e uma noites.


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa iniciativa temerária e idealista, resolveu ir a Roma para os funerais de João Paulo 2º acompanhado de uma comitiva eclética-ecumênica com os ex-presidentes, diga-se o próprio que estas escreve, Fernando Henrique e Itamar Franco, mais pesos-pesados, como Severino Cavalcanti, o novo e consagrado "pop star", reforçando a representação com Renan Calheiros e impondo a todos a guarda da Constituição com a presença do nosso nunca demais respeitado ministro Nelson Jobim, presidente do STF, e, como escrivão da armada, o senador Mercadante, líder do governo.


Era o Brasil, na expressão dos seus símbolos e poderes, demonstrando o respeito e o pesar pela morte de quem foi grande na vida e maior será na eternidade, o papa Karol Wojtyla.


Para mostrar a nossa unidade, deu-nos a alegria da presença do rabino Henry Sobel, do xeique Armando Hussein Salek, do pastor luterano Rolf Shunemann e, atento aos orixás, convidou a mãe-de-santo Nitinha, que perdeu o avião e o encanto das nuvens cruzadas pelo Aerolula. Dom Scherer, secretário-geral da CNBB, e dom João Aviz, arcebispo de Brasília, com aquele seu jeito de João 23, eram os nossos párocos.


Dois caças Mirage escoltavam o avião, numa proximidade tão perigosa que pedi ao presidente Lula: "Diga-lhes muito obrigado e peça para se afastaram, podem bater".


Quando entrei no avião, com a imaginação do PSDB na cabeça sobre os luxos do avião, sofri uma imensa decepção. Foi tão grande que me perturbou a viagem. O tal avião nababesco era igual ao Airbus A-319 da TAM em que sempre viajamos para São Luís. Apertado, de uma configuração franciscana, e o quarto do presidente mais acanhado do que cozinha de quitinete. Dão saudades os espaços largos do "Sucatão". Disseram-me que o que faltava em cima estava em baixo: era querosene, para dar mais autonomia de vôo. Pensávamos voar num Aerolula e voávamos espoliados pelo querosene, que ocupou nosso conforto.


O mais simpático da viagem foi a comovente simplicidade de dona Marisa, comemorando seu aniversário sob as preces ecumênicas recitadas em hebraico, em árabe e em latim.


Depois, veio o almoço. O rapaz de bordo anuncia o cardápio: "Fritada de Lula". Fernando Henrique pediu logo: "Este é meu". Já Lula respondeu: "Quero tucano ao molho pardo". "Não tem". "Então traz a galinha de cabidela". Eu, diante dessa subintenção de pratos, disse logo: "Não quero almoçar".


Minha mulher, quando cheguei, foi logo indagando: "E a conversa no avião?". "Não teve". "Como? Com tanta gente inteligente!". "Justamente por isso. Todos jogaram na retranca."


Em determinado momento, morrendo a prosa, quis propor uma lista de quem se poderia falar mal sem divergência: Saddam, Bush, Berlusconi, cardeal Law (de Boston). Aí surgiu a salvação: o nosso Severino dominou o vazio com as histórias de João Alfredo e com seus pensamentos políticos, além da revelação que fez ao presidente: "Olhe, presidente, quem mais lhe ajudou e continua ajudando sou eu. Não cedo meu lugar a ninguém".


Lula respondeu: "E eu sem saber de nada. Muito obrigado".


 


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 15/04/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 15/04/2005