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Verda Stelo

 

O ritual de começo de ano supõe um rigoroso adeus ao oceano de bytes e papel. É o desmonte das agendas físicas e virtuais, onde salta aos olhos o desvão entre sonho e realidade. As fotos que nos parecem injustas com a nossa imagem, e um conjunto náufrago de palavras que perderam sentido. Liturgia pessoal, libertadora. Abrimos um pouco mais de espaço ao presente do futuro, a seu laboratório de experimentos, ao seu tanto de ousadia.

E assim, quando eu também me despedia de mim, eis que surgiu das profundezas um caderno de capa amarela, com manchas de senilidade e algumas páginas soltas. O meu caderno de exercício de esperanto! E, de repente, tenho 14 anos e me vejo entre os amigos que praticavam a língua com entusiasmo nos arredores do Campo de Santana.

A língua criada por Ludwik Zamenhof para a promoção da paz no mundo completou 130 anos. Trata-se de uma dama antiga e nova, pacífica e cosmopolita, ecumênica e elegante, que não perde a juventude. O vocabulário da língua não para de crescer, assim como a tradução de obras clássicas para o esperanto, que se tornou a língua artificial de maior sucesso e alcance planetário. Transversal às religiões e às ideologias exclusivistas, o esperanto continua vivo nos dias de hoje e atuante em congressos, agendas robustas e organismos internacionais, apoiado pelas resoluções da Unesco. Sua presença é marcante na Web.

O esperanto é uma língua que prima pela simplicidade gramatical, ampla economia de meios, e forte capacidade de absorver neologismos. Sua base vocabular origina-se de muitas línguas, oferecendo assim uma atmosfera amiga a quantos se dispõem a estudá-la no Ocidente. Falado, lembra um italiano mais simples e ambíguo. Simples na estrutura, o desafio do aprendizado está na riqueza lexical, como escreveu Guimarães Rosa.

Nesse mar de papel em que me vejo cercado, nessa busca possível de renovação, tiro das profundezas abissais um raro sobrevivente, o antigo esperantista cheio de sonhos.

E o que resta de ambos, do caderno e do menino, da língua outrora praticada e dos projetos esboçados, o que permanece de pé nos dias atuais, o que nos une no começo deste ano incerto, senão o incontornável desejo de paz entre os homens?

Como inquilinos do presente, habitantes da Terra, nossa casa comum, é hora de romper os muros e construir pontes. A paz não é um maná celestial, mas uma conquista que exige uma ética pública, densa e compartilhada. A república precisa fazer jus ao nome, através de uma cidadania plena e universal que não falte a ninguém. Não súditos, mas cidadãos, com o mesmo horizonte de igualdade e direitos. Embora oportuno o combate à corrupção, o drama do Brasil reside na desigualdade social. Quando afinal teremos a coragem de enfrentá-la de frente, como quem resgata uma dívida muito alta?

“Verda stelo” significa, em esperanto, a estrela verde. Sinal de confiança para o ano que acaba de nascer.

O Globo, 03/01/2018