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Vencendo um estigma

 

Depois de ter sido diagnosticado com um tumor maligno na bexiga há mais de 20 anos, leio sexta-feira passada o relato edificante de Ruth de Aquino “Meu câncer cor de rosa”. Edificante e câncer não são uma contradição em termos? Hoje, não. No meu tempo, ele sequer permitia que se pronunciasse seu nome. Dizia-se “o Zuenir está com aquela doença”. Desmoralizar e humilhar o paciente era a primeira vitória desse inimigo mortal. Aprendi com Darcy Ribeiro que é preciso revidar. Quando os militares permitiram sua volta do exílio só porque achavam que viria para morrer logo, ouvi dele na cama do hospital: “não vou morrer; câncer a gente raspa ou lhe passa a mão na bunda”. Onipotência, claro, mas que lhe deu moral para ajudar a viver ainda muitos anos.

O primoroso texto de Ruth desmente minha antiga afirmação de que, ao contrário da tuberculose, o câncer não servia nem para inspiração literária. Com muito estilo, ela conseguiu evitar o que é até compreensível nessas circunstâncias: a pieguice e a autopiedade. “Se eu disser que sou mais feliz agora (aos 65 aos) do que antes? Que tenho buscado a essência de tudo? E que celebro as paisagens, amizades, o sol e a chuva com mais intensidade? É a vida na veia”. Uma vida que, confessa, foi generosa, até por situá-la em uma “minoria ínfima com acesso aos melhores médicos, planos e hospitais”.

Já no domingo, Ana Cláudia Guimarães revelava o caso da também colega Ana Michelle Soares, 36 anos, que vai lançar o livro “Enquanto eu respirar”, contando sua experiência com a descoberta de um câncer quando ensaboava um dos seios. Ana Cláudia, que leu o livro, informa que o relato ressalta a importância de ressignificar a vida. “As pessoas não querem falar sobre isso e dão um tom solene à morte”, lamenta a autora.

Daí ser fundamental a campanha “Outubro Rosa”, para o combate não só ao câncer de mama, que continua fazendo milhares de vítimas, como para vencer definitivamente o estigma. Mas desde que o SUS possa atender à parte mais necessitada da população, o que não ocorre.

O Globo, 22/10/2019