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Variações sobre a poesia

 

Pelo fato de ter quatro livros de versos, perguntaram-me se me considero poeta, a pergunta mais embaraçante que até agora me foi feita.


Prefiro ter-me em conta de "poeta virtual", no sentido de que recorro ao poema para responder, de uns tempos para cá conjeturalmente, às perguntas supremas a que a razão não tem acesso, mas continuam desafiando meu espírito.


O grande crítico Wilson Martins qualificou de "poesia de idéias" essa minha posição poética, conclusão correspondente ao que disseram o saudoso mestre Antônio Soares Amora e o grande poeta português José Augusto Seabra.


Entendem eles que não me conformo com as verdades alcançadas pelo saber científico positivo, persistindo, mediante a poesia, em sondar "o mistério do sentido último do mundo", indo além do limitado poder da mente.


À luz desse entendimento, meus versos, abstração feita de seus valores intrínsecos, me situariam entre os que compreendem a poesia como "uma forma de conhecimento" que culmina numa intuição pura do sentimento, transcendendo os elementos intelectivos.


Foi Platão quem, pela primeira vez, consagrou essa tese, admitindo o poder hermenêutico emocional da poesia, mas, fiel a seu idealismo integral, entendia necessário expulsar os poetas da República, fundando-a unicamente em ditames racionais.


Não creio seja preciso fazer opção entre o emocional e o racional para se explicar a função cognitiva da poesia, a qual recorre à intuição imagética exatamente para ascender àqueles planos a que a razão não tem acesso mediante seus processos hermenêuticos. Foi Kant quem, após dizer que "as artes da palavra" são a eloqüência e a poesia, revelou a correlação poética entre idéia e imagem, ao escrever, na Crítica do Juízo, que "a eloqüência é a arte de tratar de um propósito do intelecto como se fosse um livre jogo da imaginação; a poesia é a arte de dar a um livre jogo da imaginação o caráter de um propósito do intelecto".


Parece-me, porém, que na poesia, como o salientou o kantista Baumgarten, o que acaba prevalecendo é o elemento afetivo, o que me leva a afirmar que toda experiência estética culmina sempre no que denomino Imagem Absoluta, por acabar encapsulando, por assim dizer, o racional num cenário de imagens.


É o predomínio do imagético que me afasta da compreensão que reduz a poesia a meras formas extrínsecas de linguagem, com total superamento de seu valor mimético ou expressional. Por outra palavras, um poema não pode deixar de significar algo, muito embora o faça no plano eminente e superador da sensibilidade, invertendo ou subvertendo o processo cognoscitivo seguido pela prosa.


Pelos mesmos motivos, não me parece que a poesia possa ser entendida como pura seqüência de ritmos, ou seja, segundo exigências de sonoridade que a vinculariam à música, harmoniosa ou cacofônica que seja.


Relevem se insisto que a poesia não pode deixar de ter significação, a qual, porém, como ponderou Mário Chamie, não é "a significação dos dicionários", mas vem sempre envolta por uma sombra de mistério.


Se, para Aristóteles, a filosofia nasce com o espanto ou a perplexidade perante os problemas do mundo, a poesia continua sendo a perplexidade mesma, nunca se elevando até a racionalidade da prosa, a qual é feita de palavras que se desenrolam rente com os fenômenos.


Esse viés emocional não implica, todavia, a condenação da rima, como o fazem os amantes inveterados dos versos livres, desde que a rima não seja algo de rebuscado, mas surja também ela naturalmente no fluxo da inspiração.


Se a nova poesia surgiu como reação à lucidez dos parnasianos, seria absurdo, no entanto, negar a Olavo Bilac ou Raymundo Correia a qualidade de grandes poetas somente porque, segundo o espírito de seu tempo, obedeceram às regras racionais a serem seguidas na estrutura dos versos, como provam, aliás, vários de seus poemas em que prevalece a espontaneidade poética sobre a intencionalidade metódica.


O ato poético é sempre um ato de rebeldia, de não-conformidade com o que é predeterminado. Daí o emprego das palavras não em seu mero significado verbal, mas como formas de revelação de algo que se confunde com as raízes ocultas da verdade, constituindo um acréscimo à nossa compreensão do Ser, como fizeram ver tanto Hegel como Heidegger.


É o olvido da díade "idéia/imagem" que explica a absurda pretensão de se considerar a poesia um puro jogo de palavras, ou um jogo de dados, como se estes não dependessem do lance emotivo-intelectual que os situa no plano do belo que nos atrai e nos inspira, como bem o sentiu Mallarmé, muitas vezes mal interpretado.


É a razão pela qual não me conformo com pseudopoetas que não compõem senão um ajustamento extrínseco de palavras, cujo significado caberia ao leitor decifrar ou se não inventar. Infelizmente, cresce o número desse tipo de versificadores que confundem o mistério da poesia com a sua absoluta falta de sentido.


Ora, se, como declarou Heidegger e Gadamer o demonstrou profundamente, todo conhecimento implica um ato interpretativo criador até mesmo no plano das ciências exatas, que dizer da poesia, na qual há uma unidade essencial entre o dizer poético e sua hermenêutica, entre as palavras empregadas e seu significado transcendental?


Assim sendo, ao se tratar de ars poetica, o primeiro de seus problemas é o da sua significação especial no contexto dos valores contidos num poema, valores esses que ficam para todo o sempre quando transcendem o tempo de sua elaboração e se convertem em perenes "invariantes axiológicas", como se dá com a poesia de Dante, Shakespeare, Goethe ou Baudelaire, em quatro distintas épocas históricas.


Não se deve, em suma, esquecer o que há de construtivo na obra poética, cujo único fim, em última análise, é revelar e comunicar todos os aspectos da beleza, em função da qual se situam os demais valores que emergem do valor fundamental da pessoa humana, valor-fonte de todos os valores. Assiste, pois, razão aos que apresentam a poesia como a forma primordial do conhecimento humano, quando surge a cultura ainda envolta na força primitiva da imaginação criadora, da qual vai emergir, em incalculável e incessante processo, a árvore da vida.


 


Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 03/08/2002

Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em, 03/08/2002