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Utopia concreta

 

Há um quantum de utopia que se perdeu momentaneamente num tempo órfão de altitudes, com as entranhas expostas e atacadas por aves de rapina. Há algo de podre no reino da Dinamarca. Desponta o sentimento de mal-estar no pântano das delações, mediante obscura inversão de valores, onde o delator passa a herói e o homem honesto se transforma num pária. O veneno sutil da calúnia espalha-se aos quatro ventos, numa ideia feroz de justiça, que suprime a fronteira entre realidade e marketing. A má política, a que opera sob a égide da vingança, é um mal que ataca parcelas dos Três Poderes, mas quando chega ao Ministério Público e ao Judiciário o alarme dispara, pois fere as garantias individuais e compromete o estado de direito. A prisão de Mantega foi um atentado jurídico.

Estamos em alto-mar. Sem sinal de terra. Não poucos temem o naufrágio e buscam salvar a própria pele. Outros se revestem de um poder messiânico para impedir que a água chegue à casa de máquinas da democracia. Chegamos assim a tanto destempero, a essa profunda crise moral. Mas a História dirá quem foi sócio do presente estado de coisas, quem fez e quem deixou de fazer, quem pensou no país ou apostou todas as fichas na crise. Nesse mesmo diapasão, o discurso de posse da ministra Cármen Lúcia, mês passado, na presidência do STF, brilha solitário no mar de trevas espessas e recifes por onde navegamos. E neste primeiro turno das eleições, não há sinal de que sairemos tão facilmente do atual quadro de instabilidade política. 

Quando as coisas da Terra perdem seu encanto, dizia um velho sábio, nada mais resta senão olhar para os astros. E, como ainda temos céu no Brasil, aponto o telescópio para as constelações. A praia onde moro oferece esplêndida visão da abóboda celeste. Começo por Antares, a estrela mais luminosa de Escorpião, cuja cauda impressiona pelo amplo número de asterismos, que aprofundo com os 200 milímetros de abertura das lentes. Florescem inúmeras gradações de azul sobre um fundo pontilhado de estrelas, que tornam mais escuro o espaço através da mais eloquente polifonia de azul. Corro os olhos ao extremo da constelação de Escorpião ao arco de Sagitário e me deparo com a Borboleta, soberbo aglomerado que dista apenas seis anos-luz de meu quintal. E sob a chuva intermitente dos meteoritos, um silêncio de paz restaura a insônia, quando os últimos planetas se põem e a minha cadela fiel mergulha no sono. Basta uma semana para me trazer de volta ao planeta que nos faz tanto ferozes uns com os outros, como disse Dante. 

O destino do Brasil não virá dos corpos celestes, nem de uma frágil cruzada contra a corrupção, como se eliminá-la fosse a tarefa excelsa da República. Não virá decerto de um nefasto salvador da pátria, mas de um quantum de utopia concreta, desde a elaboração de mecanismos que eliminem a desigualdade no Brasil para uma democracia total. Só então, e à vista desarmada, poderemos contemplar mais livremente o céu.

O Globo, 05/10/2016