O sociólogo Francisco de Oliveira, fundador do PT e já há algum tempo em dissidência depois de ter ido para o PSOL, definiu bem a crise política que o governo vive na gestão Dilma Rousseff em entrevista concedida ao portal on-line do Instituto Humanitas Unisinos: as supostas qualidades da presidente estariam sendo consumidas "no apagar o fogo amigo" de uma coalizão que não tem qualquer identidade programática.
União impossível Para ele, o governo Dilma "é a amostra da impossibilidade de manter-se, no longo prazo, o tipo de conciliação ampla dos dois mandatos do governo Lula".
Oliveira diz que "a sociedade brasileira é cada vez mais complexa para que seus interesses contraditórios sejam envelopados numa fórmula carismática".
Para ilustrar bem a situação, no mesmo dia em que o ministro da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, dizia que a crise estava superada, o governo sofreu duas derrotas interligadas entre si na Câmara.
Sintomaticamente, pela análise corrente no Planalto, os problemas do governo com a Câmara seriam menores do que com o Senado. O engano na avaliação custou ao governo derrotas emblemáticas que atrasaram a votação da Lei Geral da Copa e do código florestal, que os ruralistas querem votar antes.
Ao mesmo tempo, os ruralistas uniram-se à oposição para derrotar o governo na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.
Por 38 a 2, foi aprovada a admissibilidade de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que determina que passe pelo Congresso Nacional a demarcação de terras indígenas, o reconhecimento de terras quilombolas, e a definição de áreas de preservação ambiental.
Esses desencontros da base aliada - o governo só contou com os votos dos chamados partidos de esquerda - acontecem numa área que, como todo o governo, está dividida entre dois setores.
Os ruralistas têm que ser contentados com a designação do ministro da agricultura, e os assim chamados movimentos sociais têm que dar o aval para o ministro do Desenvolvimento Agrário.
Foi por isso, aliás, que recentemente o ministro Afonso Florence foi demitido quase em segredo, para dar seu lugar ao deputado Pepe Vargas, também do PT. Tudo para agradar os setores sociais, especialmente os ligados ao MST e à reforma agrária.
Já Mendes Ribeiro, do PMDB, não é da bancada ruralista, mas teve seu apoio ao ser nomeado ministro da agricultura.
As mais recentes derrotas do governo podem custar a permanência no cargo da ministra Ideli Salvatti, cuja atuação à frente do Ministério das Relações Institucionais atribui- se boa parte dos erros que o governo vem cometendo desde que resolveu enfrentar a chantagem dos partidos aliados sem, no entanto, mudar nem a orientação governamental nem o conceito de coalizão a qualquer custo.
A situação está tão grave que até mesmo alguns analistas governistas começaram a acusar a oposição de não dar respaldo à presidente Dilma quando ela tenta fazer "a coisa certa".
Não há no horizonte nenhuma indicação de que a presidente Dilma pretenda alterar sua base de sustentação política, o que significa dizer que não há espaço político para que a oposição se ofereça para respaldar as ações do governo contra sua própria base aliada.
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Cometi um erro ao escrever que a Constituição "(...) também considera "imprescritíveis" crimes como a tortura e o terrorismo", ressalvando que essa definição não existia quando foi promulgada a Lei de Anistia.
Na verdade, me adverte o advogado Marcelo Cerqueira, a Constituição Federal, no seu Artigo 5, XLIII diz que a lei considerará "crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura... o terrorismo".
Não se trata de imprescritibilidade, portanto. Só o racismo é crime imprescritível.
"Fosse a tortura considerada imprescritível pela Constituição Federal, então teríamos a enfrentar o fenômeno da recepção (lei anterior à Constituição ser com ela incompatível)", ressalta Cerqueira, lembrando que nesse caso o Supremo Tribunal Federal entende, pelo voto do ex-ministro Paulo Brossard, que as leis anteriores à Constituição e com ela incompatíveis são declaradas "revogadas" e não "inconstitucionais".
Nessa hipótese, a lei de anistia poderia não ser recepcionada pela Constituição 1988, e o Supremo poderia decidir nesse sentido, punindo terroristas e torturadores, estes pelo uso abusivo e criminoso do aparelho de Estado.
O advogado Marcelo Cerqueira também acha que, por outro lado, "não há que confundir crime continuado com crime permanente. Este estabelece o termo da prescrição antes de transitar em julgado a sentença final, entendendose que enquanto não cessar a conduta criminosa não começa a correr a prescrição".
Do ponto de vista puramente técnico, Cerqueira acha que os procuradores que querem punir o Major Curió pelo desaparecimento dos corpos dos guerrilheiros do Araguaia "têm a razão que falta ao juiz".
O crime de sequestro é permanente, a ocultação de cadáver é crime instantâneo de efeito permanente, não importando o tempo transcorrido entre o sequestro e tal ou qual data, porque a lei não estabelece prazo.
Mas Marcelo Cerqueira insiste em um ponto: a questão da anistia "não é constitucional ou penal, mas política e ideológica". O STF entendeu que a decisão de lei de anistia, em que ele trabalhou, foi "expressão de um acordo político, e pronto".
O Globo, 22/3/2012