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Um pouco de nostalgia

 

Neste ano , há uma concentração de invocações com algumas saudades que julgávamos mortas. É este ano de 2005 o centenário de Aliomar Baleeiro, de Adauto Lúcio Cardoso e de Afonso Arinos de Melo Franco. Afonso, marco poderoso da inteligência brasileira, visitou todos os campos do conhecimento. Mas evoco o Afonso Arinos, meu mestre e amigo, o parlamentar, aquele que, num discurso memorável e eterno, precipitou o fim do governo Vargas. E também aquele que, ao saber que Getúlio se matara, chorou e encheu-se de remorso. Falava como se desse aulas de saber, de espírito público, de dignidade.


A glória parlamentar vive de instantes, do momento, de um aparte, de um projeto de lei, de um parecer. Mas a luta política não pára, e os embates mudam a cada hora, matando o brilho dos que dela participaram, abrindo caminho para outros momentos e outras glórias que se queimam na chama da boa e santa vaidade dos que lutam.


O Rio ainda tinha os toques finais da belle époque. Falo de 1955, quando ali cheguei. Meus 25 anos estavam fascinados pelas figuras que admirava e com quem passei a conviver: Afonso, Aliomar, Adauto, Prado Kelly, Otávio Mangabeira, Capanema, Carlos Lacerda, Billac Pinto, Luís Viana Filho, Vieira de Melo e tantos talentos que a garoa do tempo vai escondendo.


A política não tem hierarquia vertical. Ela é sempre horizontal que se estende numa formação em flecha. Os que vão à frente, assumindo a dianteira, saindo da coluna linear, são os que se afirmaram pelo talento e capacidade, qualidades abastecedoras da legítima liderança. A hierarquia se processa pelo valor. Assim era o Parlamento em que iniciei minha carreira.


Os que não tinham uma base de conhecimentos, uma aptidão para o bem comum, estavam condenados a um fundo de plenário ou eram deportados para o pequeno expediente, onde iam desaparecendo com o passar das legislaturas. O parlamento do discurso era o parlamento romântico da disputa de inteligência.


Baleeiro era o parlamentar do estilo inglês, mordaz, liberal, daqueles que não deixavam passar sem uma reverência Adam Smith e Stuart Mill. Implacável com o adversário, não lhe concedendo nunca o direito de prestar. Quando o presidente Castelo Branco o colocou no Supremo Tribunal Federal, eu lhe disse: "O senhor está colocando um tubarão numa piscina, espaço pequeno para nadar". Foi um grande juiz e deixou uma marca indelével naquela casa.


Finalizo com Adauto, por último, ninguém o excedeu na bravura, na coragem, no destemor, na lealdade, na segurança da argumentação, sempre pausada e firme. Suas atitudes e gestos marcaram de forma inapagável nossa vida parlamentar. Era um arremessador de dardos que atingiam sempre o peito do adversário, campeão da dignidade, de valores morais, de fidelidade ao país. Foi também para o Supremo e, ali, repetiu a marca de sua personalidade. Vencido num pleito em que estavam em debate suas convicções, num gesto bem ao seu feitio, despe a toga, deixa-a na cadeira e toma o caminho de sua casa até a morte. Minha tarefa, agora, já sobrevivente daqueles tempos, é evocar os monstros sagrados da minha devoção. Eram expoentes da famosa Banda de Música, em que eu tocava apenas reco-reco.


Recordo aquela geração dos anos 50, seus valores e personalidades, e sinto uma sensação de falta de chão. No tempo presente, aqueles modos, costumes e predicados parecem não existir mais. Parecem mortos. E como fazem falta ao Brasil.




Folha de São Paulo (São Paulo) 03/06/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 03/06/2005