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Um luxo

 

Certa vez Caetano Veloso disse que ter tido Fernando Henrique Cardoso e depois Lula como presidentes era "um luxo" para o Brasil. Ontem, na posse da Comissão da Verdade, que não por acaso também marcou a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação, tivemos, graças à presidente Dilma, uma demonstração de que estamos avançando, apesar das lutas políticas e dos eventuais desvios, na construção de uma democracia estável e madura.

Para dar o caráter de ato de Estado, e não de um governo isolado, a presidente convidou os ex-presidentes dos últimos 28 anos, o mais longo período consecutivo de democracia que já experimentamos como nação, e se referiu aos dois falecidos, Tancredo Neves e Itamar Franco, reconhecendo o papel que cada um desempenhou nessa nossa caminhada de construção da democracia.

Em seu discurso, a presidente disse que se orgulhava de estar à frente do governo quando essas duas ações entram em vigor, permitindo que o Estado brasileiro se abra, mais amplamente, ao exame, à fiscalização e ao escrutínio da sociedade.

Mesmo que se saiba que muitas repartições públicas não estão ainda preparadas para dar acesso às informações tão amplo quanto o previsto na lei, e que muitos serão os obstáculos para sua plena realização, a Lei de Acesso à Informação é considerada uma das mais avançadas do mundo e permite ao cidadão o acesso a informações públicas não sigilosas, sem nem mesmo a necessidade de justificar a solicitação.

Essa "transparência obrigatória" funcionará, disse Dilma, como "o inibidor eficiente de todos os maus usos do dinheiro público, e também, de todas as violações dos direitos humanos". É o país consolidando seu pertencimento à moderna democracia digital, que permite que a sociedade acompanhe passo a passo a atuação dos funcionários públicos e, por conseguinte, dos governos como um todo.

Esta semana, por um desses acasos que o destino às vezes arma, Lula e Fernando Henrique Cardoso, dois desses ex-presidentes que mais incisivamente ajudaram a moldar a sociedade que está se organizando em torno de valores democráticos, estiveram em destaque no noticiário justamente pelo reconhecimento internacional de suas atuações à frente do governo brasileiro.

O ex-presidente Lula recebeu o "Prêmio Internacional das Quatro Liberdades" (Four Freedoms Awards 2012), homenagem da fundação holandesa Roosevelt Stichting em referência ao discurso proferido em 1941 no Congresso Americano por Franklin Roosevelt, no qual o presidente dos EUA definiu os tipos de liberdade necessários a um mundo seguro: de opinião e expressão, de culto, liberdade das privações e liberdade dos temores. O Four Freedoms Awards é concedido desde 1982 a pessoas e instituições que se engajaram para proteger a liberdade usando instrumentos pacíficos e já foi dado a Nelson Mandela, ao bispo Desmond Tutu, e ao ex-presidente americano Jimmy Carter.

Já a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, a mais antiga instituição cultural do país, concedeu o prêmio John W. Kluge 2012, considerado o Nobel das Ciências Humanas, ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, "por suas contribuições ao estudo de humanidades e pela liderança na transformação do Brasil".

O prêmio Kluge existe desde 2003, quando foi agraciado o filósofo polonês Leszek Kolakowski, e não tem periodicidade: desde 2008 não era concedido. Normalmente o prêmio de US$ 1 milhão, o mesmo valor do Prêmio Nobel, é dividido entre dois ganhadores, mas desta vez o ex-presidente brasileiro foi premiado sozinho.

O presidente Lula ganhou o Prêmio Quatro Liberdades "por ter demonstrado ao longo de toda a sua vida um compromisso com a justiça social e econômica, e por ter contribuído para promover um clima de paz e conciliação entre as nações do mundo". A Fundação Roosevelt Stichting considerou Lula uma inspiração para a comunidade internacional por sua "ascensão da pobreza abjeta à Presidência do Brasil, e sua determinação em livrar o país da extrema pobreza e da injustiça social que por tanto tempo flagelaram seus cidadãos menos afortunados".

Lula não pode comparecer à cerimônia, que contou com a presença da princesa Beatrix, por causa de sua saúde, mas enviou um vídeo no qual descreve as liberdades de opinião e expressão e a de culto, como "a cúpula de um edifício, devendo assegurar a todos o direito de pensar e crer". Mas salienta que "para levantar-se bem alto, o edifício deve contar com sólidos alicerces", que na imagem do ex-presidente seriam as "liberdades de base", a das privações e a dos temores.

"Estas devem assegurar uma vida digna a todos, acima da penúria, garantindo uma participação justa nos bens materiais".

Fernando Henrique Cardoso foi escolhido para o prêmio John W. Klkuge - um magnata americano do ramo das comunicações benfeitor da Biblioteca do Congresso - porque "aplicou políticas coerentes com seu trabalho acadêmico. Suas análises das estruturas sociais do governo, da economia e das relações raciais no Brasil assentaram as bases para sua liderança como presidente na transformação do Brasil de uma ditadura militar com alta inflação a uma democracia vibrante, inclusiva e com forte crescimento".

Segundo a Biblioteca do Congresso, a profundidade intelectual do ex-presidente, a quem classifica de um dos "maiores líderes do Brasil", fica clara no fato de seus sucessores na presidência terem mantido várias de suas políticas.

"O presidente Cardoso tem sido o acadêmico moderno que combina o estudo aprofundado com o respeito pela evidência empírica. Sua aspiração fundamental é buscar sobre a sociedade a verdade que melhor possa ser determinada, enquanto se mantém aberto à revisão de conclusões diante de novas evidências", disse James Billington, o presidente da Biblioteca do Congresso dos EUA, que considera FH "em termos puramente acadêmicos, o mais destacado cientista político do fim do século XX na América Latina".

Não é mesmo um luxo?

O Globo, 17/5/2012