Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > A suprema felicidade

A suprema felicidade

 

O que chamávamos de Brasil moderno era uma selva de celebridades inúteis se exibindo numa ociosidade patética. Exatamente como agora

Meu amigo ainda está no comando. Pode até estar perdendo o poder, incapaz de trocar seu grito costumeiro de baixo profundo por um tapa na geringonça, de assolar seu adversário com juras desmedidas, falar de amor quando está com raiva e de raiva quando ainda cultiva um certo bem pelo adversário. Pode até gostar de moribundo, como sempre gostou. Sobretudo se está na porta da União enterrando o sonho impossível, a rima impossível com ação, piração ou quem sabe comunhão.

Só vai dar certo se todo mundo cantar o mesmo samba, quando o samba for um só. Mas, aí então, como rimar com raríssima vocação, como ser João Cabral e falar do mal dessa canção que rima com nação? Na noite em que o poeta morreu e estava exposto em trono horizontal na Academia, ele me convidou para ir lá me despedir, nos despedirmos de seus versos e beijar suas mãos. E não fui porque já tinha me tornado, transformado minha saudade em saudades do Brasil, saudades de tanta coisa que já tínhamos feito e que não sabíamos fazer. Ou tínhamos certeza de que já sabíamos e podíamos fazer mais. Ainda.

E foi assim que geramos de novo a fértil relação entre poesia e revolução, bombas e cultura para manter o poder que não tínhamos e ainda não temos, certamente não teremos, em nome de nossas rimas e contrações. E foi assim que escreveu que Garbosa e Tirolesa correm hoje, passado e presente eram iguais. A Marina era amante do Afranio e o tenente Bandeira matou ele. Ou os dois, não sei. Uma vez, eu vi a filha da Greta Garbo na rua, ela era linda. Em 1918 morreu gente como mosca, eu e Flora escapamos da febre espanhola. E os tiros continuam a pipocar por aí, enquanto houver cultura, enquanto houver política. Isto não tem a menor importância. A menor importância.

Mas deixemos de filosofias e fiquemos na sacanagem. Homens falando em liberdade, deixe de ser alienada, a sexualidade é um ato de liberdade contra a direita, Sartre e Simone, entre um gozo e outro “meu marido odeia comunista”.

Ao som do rock e de bossa nova, éramos assim em 1962. O que chamávamos de Brasil moderno era um coquetel na ilha da revista “Caras”, uma selva de celebridades inúteis, se batendo, se comendo, se exibindo numa ociosidade patética. Exatamente como agora. Temos Ferraris nas ruas e tiroteios em Ipanema. Era como se os pais tivessem saudade de um amor que não havia acontecido. Uma verdade maior, do que o quê?

No perigo e na morte estava uma verdade maior sempre ocultada por pais e professores. Comecei a viver nos becos e buracos de Copacabana, ali só existia a miséria do sexo, o proletariado do desejo. Eu reencontrei a eternidade, é o mar alado partindo com o sol (Rimbaud).

E, por fim, a morte de Nelson. O nosso Nelson, visionário e cheio de ilusões à toa, enquanto construía a imagem bem sucedida de um funcionário de escritório de advocacia a serviço de boas praças revolucionários, que iam balançar o coreto da própria ideia de um escritório de advocacia a serviço de boas praças revolucionários. Nelson morreu com 23 anos de idade. Morreu atravessando a rua, saindo de uma sala de cinema, quando eu estava filmando “Ganga Zumba” no norte fluminense e devia a Deus e o mundo. Inclusive ao banco que ainda ia me ajudar a terminar o filme.

No jornal que leio todo dia, estava escrito que os grandes especialistas afirmam que a cepa Ômicron, a última versão do transmissor da Covid que, se não matar, deixa você muito mal, é o derradeiro veículo do vírus fatal. Depois dele, podemos até ter um descanso, à espera do próximo transmissor do vírus canalha, o canalha do vírus. O fato é que a Natureza não nos deixará em paz por muito tempo.

O Globo, 23/01/2022