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Só até a beira

 

Assim como a velhice pode ser considerada uma boa situação levando em conta a alternativa, que é a morte, também o presidente Bolsonaro ter vendido a alma ao Centrão pode ser uma boa alternativa para ele, diante da ameaça do impeachment. Nesse primeiro momento, a simbologia da provável vitória dos dois candidatos que apoia, na Câmara Arthur Lira, e Rodrigo Pacheco no Senado,  indica que Bolsonaro está dono da situação.

Negociou verbas, nomeações, prometeu cargos, está estudando uma reforma ministerial para o Centrão. Um dos atingidos pode até mesmo ser o General Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, que vem fazendo a negociação política do Palácio do Planalto.

O Centrão está de olho em ministérios com poder político, como também o Gabinete Civil, ocupado por outro General, Braga Neto. Mas querem outros ministérios estratégicos, como o da Cidadania, que coordena o Bolsa Família e o provável novo auxílio emergencial, e o da Indústria e Comércio, que seria recriado, desmontando o espírito do ministério da Economia, onde Paulo Guedes centraliza as ações econômicas.

Se Guedes engolir mais essa, é previsível que venha a enfrentar desafios à sua orientação, como já acontece com Rogério Marinho no ministério do Desenvolvimento Regional. Mas como se trata do Centrão, não se pode dizer que o presidente da República estará permanentemente blindado, protegido. Além de ter a goela grande, que vai exigir do governo mais e mais vantagens à medida que a situação política piore, há a corrida presidencial que já começará a se delinear  a partir segundo semestre.

Até lá saberemos se o ex-presidente Lula, como é provável, terá sua condenação no caso do triplex anulada por decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), se Luciano Huck deixará a Globo para se assumir candidato, dois marcos importantes para a definição do quadro. Lula terá que batalhar ainda pela anulação de outra condenação em segunda instância, a do sítio de Atibaia, mas ganhará força política se se confirmar a primeira anulação.  

Vamos ver no decorrer da campanha eleitoral, ainda este ano, como ficará a popularidade de Bolsonaro nas pesquisas, que servem de parâmetro para o mundo político analisar a chance de cada um. Se começar a perder popularidade, se a economia não decolar e a crise social aumentar, a situação vira, e ele fica refém do Centrão e nas mãos dos dois presidentes que elegeu. É uma jogada de risco, mas tinha que ser feita, dentro do critério que adotou, a velha política do toma lá, dá cá, o velho hábito do Congresso brasileiro.

O presidente Bolsonaro não tem capacitação para liderar um governo com bases em programas, valores éticos que inibam os clientelistas. Ao contrário, quando tentou se livrar dos políticos, acusando-os de fomentarem a corrupção, o que queria era ficar livre dos controles institucionais, desmobilizar o Congresso. Quando ameaçou o Supremo Tribunal Federal (STF), através de suas turbas amestradas, tinha o mesmo objetivo, colocar-se acima das instituições.

Como não deu certo, pois as instituições mostraram-se resilientes, ele deixou o sistema de pesos e contrapesos para fazer o mesmo que os governos anteriores que criticava: criar um ambiente propício aos interesses fisiológicos. A diferença dessas eleições para a anterior é que naquela, como Bolsonaro estava com a proposta de não depender dos partidos, e criticava muito a velha política, rejeitando acordos com o Congresso, a Câmara e o Senado votaram pela independência, pela autonomia.

No Senado, Davi Alcolumbre derrotou velhas lideranças tradicionais como Renan Calheiros e José Sarney, apresentando-se como a cara nova da nova política. No decorrer  do mandato, vimos que não havia novidade nenhuma, era exatamente a mesma coisa, seis por meia dúzia. Mas, de qualquer maneira, o espírito daquela vez era de confrontação com o palácio do Planalto, em defesa do Legislativo. Agora, estamos vendo uma submissão ao governo federal em troca de vantagens pessoais. Mas uma conhecida frase política é que "ninguém vai segurando o caixão até dentro da sepultura. Vamos até a beira”.

O Globo, 30/01/2021