NÃO HÁ SANTOS nesse episódio do confronto entre a Geórgia e a Rússia. O Cáucaso, onde se encontra a República da Geórgia, é uma colcha de retalhos de etnias, e suas altas montanhas sempre serviram de fronteira natural entre impérios rivais que convergiam naquele canto do mundo, como a Pérsia, os otomanos e a Rússia. Ali, o argumento da força sempre foi mais ouvido do que os apelos de paz, e a história eslava é uma sucessão de relatos sangrentos, como mostra Hélène Carrère d’Encausse no seu famoso livro sobre o sangue na história da Rússia.
Repete-se o destino na Geórgia de hoje. Enquanto procura controlar a Ossétia do Sul e a Abkházia, duas regiões que são formalmente parte de seu território, mas que nada têm em comum com a etnia georgiana, o país vive à sombra do gigante russo e vai se equilibrando entre a realidade de pertencer à esfera de influência de Moscou e a aspiração de se unir ao Ocidente moderno e livre.
Independente desde 1991, a Geórgia aproveitou a abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim para tentar retomar pela força a Ossétia do Sul. Talvez tenha caído numa armadilha da Rússia, que protege os sul-ossetas e abcásios, estava concentrando tropas do seu lado da fronteira e, semanas antes do início do conflito, já atacava sítios georgianos na internet _a chamada ‘cyberwar’.
O fato é que a aposta do presidente Mikheil Saakashvili saiu pela culatra: os russos reagiram pela via militar, retomaram a Ossétia do Sul e invadiram a Geórgia, numa clássica aplicação prática do provérbio ‘quem com ferro fere, com ferro será ferido’, ou conferido. Os dois lados alegam que o outro cometeu atos de violência contra civis, inclusive de limpeza étnica. Milhares de refugiados e centenas de feridos sobrecarregam os serviços de emergência da região.
O mais preocupante de tudo não é saber de quem é a culpa. Uma Rússia inebriada pela sua recuperação econômica e política, movida aos preços altos do petróleo, considera a região como uma varanda sua e não está disposta a ver antigos satélites cooptados pelo Ocidente. Os Estados Unidos, desde a independência da Geórgia, utilizam este país para cutucar os russos, chegando a patrocinar a sua entrada na Otan, coisa que não aconteceu graças a cabeças européias mais ponderadas que a de Bush. A ocupação da Geórgia é uma mensagem do Kremlin típica da Guerra Fria, quando as superpotências se comunicavam por meio de dentes arreganhados.
E, para confirmar as ironias da história, Stálin nasceu na Geórgia. Para os que achavam que a história havia acabado, ela manda dizer que vai muito bem, obrigado.
Graças a Deus, há quem corra para apagar o fogo.
Folha de S. Paulo (SP) 22/8/2008