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Sinal de alerta

 

Raramente terá ficado tão óbvia a necessidade de esclarecer uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) como agora, sobre a possibilidade de punir os meios de comunicação por uma afirmação inverídica de um entrevistado. O Supremo tem à sua disposição um instrumento perfeito para isso, os “embargos de declaração”, que, em teoria, prestam-se apenas a esclarecimentos ou interpretação da sentença, mas na prática possuem efeitos infringentes, que podem até mesmo alterar a decisão já tomada pela maioria da Corte.

O ideal nesse caso seria que a decisão fosse alterada, acabando com um debate que, a se acreditar na boa-fé dos ministros - e, quanto à liberdade de expressão, não há razão para se duvidar dela, pelo histórico da Corte - não deveria nem mesmo ter sido motivo de pronunciamento do STF. A vantagem dessa polêmica é a introdução do conceito de “malícia”, a intenção de prejudicar o outro, para que o veículo de comunicação seja punido. Nos Estados Unidos, a “absence of malice” ( inexistência de má-intenção) é fundamental para uma decisão sobre liberdade de imprensa.

Como faremos para, em uma entrevista ao vivo, impedir que um entrevistado acuse alguém indevidamente? Vamos interrompê-lo, exigir provas imediatas? No caso da famosa entrevista do Pedro Collor, denunciando seu irmão, então presidente, por corrupção, como publicá-la com essa decisão? As muitas dúvidas, se não esclarecidas imediatamente, farão com que a autocensura nos impeça de fazer jornalismo.

O que acontecerá se uma denúncia se provar verdadeira anos depois, e o veículo já tiver sido punido? Existem leis no país para punir crimes de imprensa. Não há necessidade de mais essa que, além de tudo, servirá para que juízes autoritários ou venais em todos os níveis tentem impedir denúncias contra seus apaniguados e cúmplices. Em conversas informais, os ministros do STF dizem que a decisão só vale para “casos excepcionais”. Qualquer juiz mal-intencionado usará a lei contra o jornalismo. E a autocensura será uma realidade no nosso cotidiano. O que serão "casos excepcionais"?

Em documento denominado “Informação à sociedade”, o Supremo esclarece algumas dúvidas, reafirmando seu compromisso com a liberdade de imprensa. Um dos pontos mais importantes, e por isso deve constar dos embargos de declaração, é que “Como regra geral, se um jornal divulga entrevista em que uma pessoa, sem ter provas, diz que outra praticou um crime, eventual indenização devida ao ofendido deve ser paga por quem fez a acusação falsa, não pelo veículo de comunicação. Em situações muito excepcionais, porém, a empresa jornalística pode ser condenada a pagar a indenização, desde que comprovada a má-fé (dolo efetivo) ou culpa grave do jornal na divulgação da entrevista. Para que isso ocorra, é preciso que a pessoa falsamente acusada de crime comprove que, na época da publicação da entrevista, o jornal (1) já sabia das fortes evidências de que a acusação era falsa e (2) não adotou os cuidados para divulgar aos seus leitores que a acusação do entrevistado é duvidosa”.

Afirma também que “As liberdades de expressão e manifestação de pensamento não devem sofrer limitações antecipadas, como a censura. No entanto, as pessoas podem ser responsabilizadas posteriormente por divulgar informações manifestamente falsas com o objetivo de prejudicar a reputação de alguém, porque esses conteúdos violam os direitos constitucionais à privacidade, à honra e à imagem”.

Qualquer empresa jornalística que se preze tem o “devido cuidado” para divulgar informações, mas como definir essa atitude na prática, para que não restem brechas para os mal-intencionados de todos os lados, o entrevistado, o entrevistador e o juiz ? E o que serão “fortes evidências”? Todos esses pontos necessitam ser esclarecidos pelo STF nos embargos de declaração para que não reste dúvida de que a liberdade de imprensa é realmente intocável no país.

 

O Globo, 03/12/2023