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Simulacros e arremedos

 

Por que será que o presidente Lula se considera no direito de fazer de Guido Mantega — ministro da Fazenda do desastroso governo Dilma Rousseff, responsável pela fracassada “nova matriz econômica” — presidente da Vale? Será que ele não se lembra de que a Vale é uma empresa privada? Será que não sabe que os fundos de pensão das estatais são sócios minoritários, sem força para eleger o presidente da empresa? Será que não se convenceu de que os fundos de pensão de estatais não podem ser manipulados politicamente, pois acabam prejudicando os trabalhadores aposentados?

Até hoje há aposentados de estatais, como a Petrobras, que sofrem desconto do que recebem para compensar o prejuízo causado pelo petrolão. Claro que Lula sabe dessas coisas, e muito mais. Sabe que a vida da Vale pode virar um inferno se o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) ou a Agência Nacional de Mineração (ANM) quiserem boicotar a empresa nas concessões de licenças ambientais e de mineração.

O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, segundo relato de Lauro Jardim, está ligando para os acionistas revelando que Lula não se contenta com uma vaga no conselho, quer Mantega na presidência. Trata-se de atitude autoritária de um governo que quer controlar as estatais com nomeações políticas. Até mesmo a Vale, que não é mais estatal, entra na dança.

É mais uma parte do filme “De volta ao passado” que Lula cisma rever. Em 2008, ele já havia comandado uma campanha contra o então presidente da Vale, Roger Agnelli, que acabou saindo em 2011. O uso político das estatais é tamanho, que agora mesmo a Caixa Econômica demitiu nada menos que sete vice-presidentes para substituí-los por indicações políticas. Até o PL de Bolsonaro indicou um dos novos vices.

Toda essa movimentação começou com a mudança na Lei das Estatais que abriu brecha à nomeação de políticos, retomando um hábito que deu no mensalão e no petrolão. As nomeações de indicados por políticos para altos cargos nas estatais são, até o momento, as únicas consequências de um governo de “frente ampla” que derrotou o bolsonarismo em 2022. Mas não significam que haja realmente um projeto político que possa ser chamado de “união nacional”.

Na campanha de 2022, o apelo era pela frente ampla, a ida de Geraldo Alckmin para a Vice-Presidência foi uma manobra inteligente, que deu um lustro na chapa. Na prática, o governo de “união nacional” não é o que acontece — a frente ampla vem sendo engolida pelo Centrão, que perdeu a eleição presidencial, mas ganhou a do Congresso. Há quem diga que foi apenas um golpe de Lula, apesar de Simone Tebet e Alckmin estarem no governo.

A frente ampla que os dois grupos anunciam para a eleição de São Paulo não existe. O PT é chapa puro-sangue com Marta e Boulos; é PSOL e PT, é a esquerda. A outra é uma frente de direita que tem o apoio de Bolsonaro. O que Lula diz agora, que será uma disputa entre ele e Bolsonaro, é a realidade e o que ele quer. Provavelmente também o que Bolsonaro quer. A disputa pela Prefeitura de São Paulo será o lugar mais definido nessa polarização.

Quando se firma uma polarização entre candidatos com definições ideológicas claramente distintas, é difícil abrir brecha para o centro político entrar. A deputada federal Tabata Amaral, sem experiência administrativa, não terá sucesso.

À medida que vai perdendo terreno no Congresso, Lula tenta exercer seu poder em outros setores que independam de negociações com parlamentares. Da mesma maneira que o Congresso abusa de seu poder político para chantagear o governo em troca de cada vez mais verbas de emendas, também Lula abusa de seu poder político para impingir às estatais, e até a empresas privadas que ele considera que não deveriam ter sido privatizadas, pessoas de seu grupo político. O Congresso é um arremedo de poder democrático, enquanto o governo é um simulacro de “frente ampla”.

O Globo, 25/01/2024