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Shakespeare e nós

 

Embora não seja a motivação central do livro, “Ele, Shakespeare, visto por nós, os advogados”, da Edições de Janeiro, a ser lançado amanhã, traz em dois de seus 18 textos reunidos reflexões sobre os dias atuais de nossa crise política, fazendo paralelos com “o complexo quadro das paixões, motivações, comportamentos, e grandeza e a mesquinhez humana”, abordado na obra de Shakespeare segundo definição do editor José Luis Alqueres, que organizou o livro juntamente com o advogado e professor José Roberto Castro Neves, um bardólatra assumido, que o considera “possivelmente o melhor intérprete da humanidade”.

Miguel Reale Júnior trata de Ricardo III, cuidando do mal e do poder. Luís Roberto Barroso apresenta Júlio César, com uma inquietante apreciação acerca do poder. Andréa Pachá manda uma carta para William. Francisco Müssnich tira reflexões sobre as desventuras do mundo contratual do Soneto 87. José Roberto de Castro Neves fala dos canalhas nas peças de Shakespeare — e de como eles nos são familiares.

O jurista e professor Tercio Sampaio Ferraz Junior Brasil fala sobre o embate em torno da legitimidade no exercício do poder, referindo-se ao processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, que levou ao poder seu vice Michel Temer, “(...) girando em torno de mecanismos inerentes à ordem constitucional: uma vitória eleitoral inconteste contra o impeachment nela previsto. Um debate que, porém, excedeu os limites jurídicos. Na tela de fundo de uma tragédia anunciada — uma crise econômica sem precedentes —, a luta pelo poder legítimo refletia o argumento do governante eleito, mas incapaz de dar conta dos desafios, contra o argumento da necessidade de um governo suficientemente preparado, política e tecnicamente, para enfrentá-los.

“Um jogo entre legitimidade de origem e legitimidade de eficiência. Em Shakespeare, a tragédia costuma tomar um sentido próprio quando fincada na relação de poder, um núcleo sensível que repousa na capacidade de mandar e ser obedecido. (...) Aqui aparece, porém, um sentido irônico da tragédia, de então e atual, favorável à ambiguidade, em que se embaralha o que é com o que parece ser. (...)

“Esse mecanismo maquiavélico, que Shakespeare personifica na forma de fortuna e virtú, reúne os critérios justos de legitimidade e os critérios factuais de eficácia nos critérios jurídicos de legalidade. Trata-se de uma reminiscência da doutrina dos dois corpos do rei, (...) trazida para os dias de hoje, o corpo da corrupção alastrada, a minar as bases de acerto técnico de decisões politicamente angustiantes”.

Já o jurista Joaquim Falcão, da FGV-Direito do Rio, aproxima o drama de Macbeth dos dias atuais, desmontando um antigo mote jurídico que garante que o que está fora dos autos não está na vida: “O que está feito não pode ser desfeito: Macbeth, Moro e Teori” é o título de seu ensaio.  

Macbeth, então Barão de Glamis e Barão de Cawdor, assassina Duncan, Rei da Escócia, à noite, instruído e estimulado por sua própria esposa, Lady Macbeth. “Aqui começa o reinado da perseguição da memória. (...) E a tentativa de apagá-la. Mas a conquista criminosa do poder não poderá mais ser afastada da memória de ambos, Macbeth e Lady Macbeth. A memória do crime perseguirá Macbeth. Vai fazê-lo perder o trono. Em batalha, morrer. Enlouquecerá Lady Macbeth. Morrerá”.  

Joaquim Falcão traz a tragédia Macbeth, escrita entre 1606 e 1607, para os nossos dias, no processo da Lava Jato, relembrando o caso   da interceptação telefônica do diálogo entre Dilma e Lula, combinando a assinatura do termo de posse de Lula como ministro da Casa Civil, “que lhe asseguraria a irresponsabilização processual”.
Falcão relata: “Para Moro, como juiz, era mais um indício de que Lula e seus advogados pretendiam e estavam tentando dificultar, interferir nas investigações.

Para Lula, como investigado, garantiria o foro privilegiado. Para Dilma, como presidente, seria a evidência de obstrução de justiça. Juntada aos autos, Teori Zavascki declarou ilícita a gravação. Fora prova indevidamente colhida”.
Mesmo depois de vista, ouvida, transcrita e juntada aos autos, o ministro Teori ordenou que a gravação fosse “deletada da memória do processo”. Pergunta o jurista: O ato jurídico processual desfaz o fato social e mental? (...) O que foi realmente feito poderá ser judicialmente desfeito? O acontecido pode ser “desacontecido”? O existente, inexistente? O sangue que dá vida ao processo é sua validade jurídica. Retirar a validade do ato de Moro estanca hoje o sangue de amanhã. Mas, e o de ontem? É possível estancar sangue já derramado? Apagar a memória dos autos?”

Escreve Joaquim Falcão: “O palco está então completo para nossa analogia: Macbeth e Lady Macbeth, Teori Zavascki e Sérgio Moro, Dilma Rousseff e Lula. Macbeth e Lady Macbeth perseguidos pela memória dos assassinatos. Lula e Dilma Rousseff, perseguidos pela memória das gravações. A memória dos assassinatos estará presente na vingança dos barões. A memória da gravação estará presente no impeachment de Dilma. (...) Em outra passagem, Shakespeare afirma que as mãos sujas de sangue, mesmo depois de lavadas, não ficam limpas. Continuam sujas”.
 

O Globo, 27/08/2017