Entrei no primeiro estágio. É assim que se chamam, na excelente rede de hospitais Sarah, as conhecidas UTIs, unidades de terapia intensiva que, em situações extremas, buscam evitar a morte. Ia com minha mulher cumprir a graça de Deus de poder assistir nossas velhas até seus últimos e longos anos.
É uma escola onde se avalia a fragilidade do viver, a dor eterna do corpo e da alma. Médicos e enfermeiras que ali trabalham, na contramão do que se pode pensar, não absorvem a rotina do sofrimento, mas se envolvem com cada doente, numa luta de sensibilidade humana que arrasa sentimentos e emoções.
Ali não entram os enfeites de Natal, bolas e estrelas prateadas, anjos dourados e luzes que alegram todas as outras dependências do hospital e se derramam pendurados nos corredores e salas. O silêncio branco das paredes esterilizadas somente é quebrado pelas campainhas de alarme, que acusam a todo instante a queda de pulsações, de pressão arterial, de oxigenação, do nível programado das máquinas de gotas, dos respiradouros e temperaturas. Trabalha-se no nível de urgência das tensões. De uma vacilação, pode-se perder uma vida. Os olhos estão grudados nos sofisticados aparelhos digitais. Os passos são rápidos; os nervos e movimentos, frenéticos.
Meus olhos se fixam numa menina de seus 12 anos. Sua palidez é de uma tonalidade branco-azul, com as cores do adeus. Seu olhar me fita alongado numa profunda mensagem de sofrimento. Fica parado em mim. Perturbo-me. Devo-lhe uma mensagem de esperança. Vou até seu leito, aperto-lhe a mão. "Você vai ficar boa." Responde-me: "Estou sofrendo muito, é uma dor que não passa. Eu o conheço". A enfermeira pergunta quem é: "É o Sarney", ela diz. Abriu no seu rosto um sorriso de bondade e ternura. "Deus te ajude e proteja, que tenha um bom Natal". "É Natal?", perguntou-me. "Sim, estamos próximos das festas do Natal, vou trazer-lhe um presente. O que você quer?" "Quero que o senhor mande consertar a carroça do meu pai, que caiu numa ribanceira, perdeu o cavalo e ela quebrou. É com ela que ele dá comida a meus irmãos." Comecei a chorar com a garganta, o que aprendi nos longos anos de vida pública, que nos impõe a restrição de não deixar que vejam nossas lágrimas. Tomo-lhe o endereço, um povoado distante do Maranhão.
A médica me explica que a menina tem câncer ósseo, não teve sucesso a quimioterapia, metástase generalizada, invadindo todos os órgãos. Nem a morfina que lhe aplicam em altas doses vence as crises agudas de dor intensa. Saio arrasado.
Dois dias depois, volto ao primeiro estágio. Trago uma boneca e uma estrela para pendurar em sua cama. O leito 5 está vazio. "Onde está a menina?" "Deus a levou de madrugada", responde a enfermeira-chefe.
Nunca é dispensável, mesmo nos feriados de alegria, pensar sobre o mistério da existência e de Deus.
Na visão do Natal, não me sai da lembrança o olhar daquela menina branca e azul que pensava na carroça do pai, num cavalo morto e na dor alucinada que percorria seus ossos. Mundo, vasto mundo, que segredos escondem teus caminhos?