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Ruth Cardoso

 

Tudo isso que Ruth realçou tem a ver com o enraizamento das práticas que dão vida e substância à democracia


A REFLEXÃO sobre a virtude é parte da tradição clássica da filosofia, e foi nesse âmbito que Aristóteles disse que a virtude é uma disposição adquirida para fazer o bem. A virtude é uma expressão de excelência, e não há dúvida que é mais fácil apreender as virtudes pelo exemplo do que pelos livros.


O percurso de Ruth Cardoso é um exemplo de suas virtudes. Ela ilustra muitas das virtudes arroladas por Comte-Sponville no seu "Pequeno Tratado das Grandes Virtudes": a polidez como uma qualidade; a fidelidade a princípios; a temperança como arte de desfrutar a vida e como exercício de liberdade; a simplicidade como sabedoria; a tolerância como respeito; a pureza como amor sem cobiça; a boa-fé como sinceridade; a amizade como comunidade compartilhada.


Todos os que tiveram o privilégio de com ela conviver e beneficiar-se de sua amizade sabem com um "saber só de experiência feito" a que estou me referindo.


Essa percepção da consistência e firmeza de suas virtudes, no entanto, não se deu apenas na esfera do íntimo ou do privado. A exposição que Ruth teve no espaço público confirmou a percepção de sua qualidade e de sua excelência.


Com efeito, ela ofereceu ao Brasil "o espetáculo cotidiano de suas virtudes", como disse Rui Barbosa de Pedro Lessa. Sei que essa formulação não deixa de ser paradoxal, porque nada mais distante de Ruth do que o gosto pelo espetáculo, pois era uma discreta grande dama de Araraquara.


Faço essa menção a Araraquara pois a experiência da formação em Araraquara era para ela uma referência. Disso tratou, e muito bem, Ignácio de Loyola Brandão no seu artigo em "O Estado de S. Paulo" de 27/6 e no perfil que dela elaborou inserido no livro da memória mítica de sua cidade, "A Altura e a Largura do Nada".


Lembro, nesse sentido, que, mais de uma vez, comentando algo que criticava, dizia-me Ruth com cumplicidade, por causa dos meus laços com a cidade, pois minha mãe nela se criou: isso não está de acordo com os nossos padrões araraquarenses.


Ao transformar-se em figura pública pela força do reconhecimento público, como diria Hannah Arendt, cabe lembrar arendtianamente que "persona" -a máscara que cobria, no teatro romano, o rosto pessoal do ator- tinha uma abertura larga na altura da boca pela qual podia soar a voz própria do ator. "Persona", de "per-sonare", soar por.


O que soava pela figura pública de Ruth foi um dos modos -mas não o único- por meio do qual verteu espírito republicano à Presidência Fernando Henrique, pois desse som transparecia o transitivo e substantivo diálogo entre Ruth e Fernando Henrique. Um diálogo permeado pelo respeito e pelo humor (que é uma qualidade democrática), que contribuiu para a atmosfera política do período, como posso, como tantos outros, testemunhar, tendo vivido de "dentro" o seu governo e, de perto, como amigo e correligionário, sua vida política e também a sua vida acadêmica, na qual esse diálogo foi sempre um componente de peso.


Essa dimensão republicana não é a única pela qual cabe homenagear Ruth, que, como intelectual e pesquisadora, trouxe para a ciência política o olhar de sua formação de antropóloga. Daí a percepção que teve para a relevância da pesquisa do que se passava no âmbito da sociedade civil e o foco que deu aos movimentos sociais, às reivindicações de gênero, ao papel das organizações não-governamentais.


A Comunidade Solidária foi a expressão, em termos de ação, dessa sua visão de pesquisadora e estudiosa do Brasil. Renovou a concepção das políticas sociais no país pela idéia força do "empowerment" como meio de enraizar econômica e politicamente a extensão da cidadania. Trabalhou, assim, a autonomia das pessoas e combateu as tradicionais práticas da política de clientela. Deu seqüência a essa visão nas atividades da Comunitas.


No prefácio que elaborou para o livro de Manuel Castells ("O Poder da Identidade"), Ruth apontou a dinâmica da formação de novos atores sociais e indicou como a criatividade, a negociação e a capacidade de mobilização são instrumentos de grande importância para operar na sociedade em rede em que vivemos.


Tudo isso que Ruth realçou tem a ver com o enraizamento das práticas que dão vida e substância à democracia. Daí a pertinência dessa homenagem no espaço público da palavra e da ação que tentei esboçar, na saudade de uma amiga muito querida e muito especial, cujo conselho tantas vezes busquei na minha vida acadêmica e pública.


Folha de S. Paulo (SP) 10/7/2008