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Rio banhando praia

 

Glauber Rocha era o mais indignado de todos nós. E fazia questão disso, uma espécie de documento de identidade

Entre tantas lições que nos deixou, Glauber Rocha nos ensinou que o cinema, em nenhum momento ou lugar do mundo, se fez ou se fará em paz. Ele também podia nos ter dito o mesmo a propósito da criação artística de um modo geral. A arte é um mundo em que se cria para além do concreto, como uma reação contra o que se passa no mundo real. Quando o futuro lhe dá razão, o artista se torna um deus criador de um mundo que nunca existiu antes dele. Embora não seja, entre nós o único, Glauber é um destes, no pensamento e na ação criadora.

Quando viu “Arraial do Cabo”, de Paulo Cesar Saraceni e Mario Carneiro, não titubeou: “O Cinema Novo é assim, um cinema livre como Arraial”, porque nosso cinema devia ser “a expressão de uma cultura em transe”. E daí parte a comparar certas condições da Grécia de 700 anos atrás às do nosso nordeste recolonizado pelas famílias e Arraes. Ou seja, a Grécia milenar e Pernambuco de ontem eram muito parecidos, quase a mesma coisa, viu.

“Nossos filmes devem ser como cabezas em transe numa tourada comandada pelos poderes da América, a quem temos que vencer. Nós precisamos gritar que, apesar de tudo, maiores são os poderes do povo”. E aí as cabeças que devem rolar de fato rolarão no transe da tourada. A Folha de SP: “Cabeças em transe numa tourada de Glauber”. Pronto, a imprensa estava bem preparada para nos identificar.

Ele era o mais indignado de todos nós. E fazia questão dessa indignação, uma espécie de documento de identidade revolucionário. Há quanto tempo não ouvimos mais estas palavras em relação a nós mesmos? Indignados... O que foi que nós fizemos que podiam nos identificar como indignados? Não fizemos nada do que já não estava previsto que podíamos fazer. E, no entanto, o que foi dito ficou. Como ficou também, do outro lado dessa cerca, o contrário do que foi dito. Fizemos então as pazes, nos entendemos bem com aqueles que não nos entendiam.

Esse é o melhor momento na vida de quem diz o que diz e o que bem quiser. O momento em que o outro, cansado de se explicar, finalmente cede às nossas explicações, quase sempre bem ordenadas, mais bem traçadas. E como se comporta bem ao encontrar primeiro, do outro lado, uma sombra à sua semelhança! Aí é tão fácil a conquista do emissor que é quase como se tornássemos aquilo que é só ideia em fulgurante exemplo do que somos capazes de inventar. Esses seres tão diferentes se encontram por fim, na necessidade de se encontrarem, apenas isso. E como fica bela a vida dos dois lados!

Não podemos deixar de nos dirigirmos a todos que estão do lado de cá da cerca. Mas não podemos tampouco deixar de cortejar aqueles que, como nós, não suportam mais a dor da mentira e da traição, a faca nas costas de quem tenta ser leal, o hábito do engano sistemático, tudo o que faz com que aquele ideal seja visto apenas como mais um elemento a nos afastar da realidade concreta que todos sabem observar. E aí pagarmos o preço da ilusão ou da pura maldade do outro.

Nós, os indignados, acreditamos na democracia, no direito de quem não concorda se manifestar. Aprendemos com Glauber Rocha isso também. Quem fala mais alto, com mais força e reserva de munição, não é necessariamente quem tem razão. Esses talvez possam manipular seu discurso para parecer correto, mas a prioridade do resultado será aquela da lógica acertada num discurso em torno do qual todos se reuniram. Aí encontraremos quem tem razão e compreenderemos em nome do que se pode legislar.

O Globo, 19/12/2021