O discurso do acadêmico, educador e crítico literário Eduardo Portella, ex-ministro da Educação (que cunhou a frase "Não sou ministro, estou ministro"), na cerimônia de minha posse na Academia Brasileira de Letras, sexta-feira, foi uma importante peça de análise política sobre "os tempos nublados da derradeira modernidade", que ele prefere chamar de "baixa modernidade", que estamos vivendo.
Diante de uma plateia que reunia políticos como os senadores José Sarney (PMDB), presidente do Senado e decano da ABL, Lindbergh Farias (PT) e Agripino Maia (DEM), os deputados Alfredo Sirkis (PV) e Chico Alencar (PSOL), o ex-governador José Serra (PSDB) e os ministros do STF Cármem Lúcia e Carlos Ayres Brito, Portella analisou "ruídos e armadilhas imprevisíveis" da democracia de massas, que comparou a uma corrida de obstáculos, chamando a atenção para "a corrida frenética do "hiperpresidencialismo", do parlamentarismo desidratado e dos aparelhos ideológicos de Estado" que a imprensa independente vem conseguindo frear.
Na sua visão, a "tripartição dos poderes, que foi um dia o sonho republicano, não se encontra menos abalada". Ressaltou "passos em falso da política doméstica", lembrando que o sociólogo Francisco de Oliveira já antecipara a "irrelevância da política", que hoje ressoa como "verdade incômoda":
"Quando tudo se confunde, quando os homens e as coisas vão perdendo a singularidade, em meio ao nevoeiro que encobre a cena pública baixa moderna", é o momento em que "a moral privada, ou privatizada, parece substituir a ética pública", lamentou. Portella advertiu que, "a cada dia, somos perigosamente tolerantes com a ausência de delimitação de fronteiras entre o público e o privado". Para ele, a democracia, "mais que um conceito, é o caminho", e a brasileira "vem operando no vermelho".
Sobre a tendência ao autoritarismo, afirmou que, "quando a democracia se mostra infensa aos questionamentos, as taxas de racionalidade se reduzem substancialmente. A morte da opinião, o controle do repertório temático, camuflado ou explícito, conduzirá inevitavelmente à parada cardíaca da democracia representativa".
A própria ideia de representação vai sendo acometida pela "falência múltipla dos seus órgãos". "Apagam-se as diferenças, e promove-se a coalizão das colisões, em meio ao carnaval das impunidades. No lugar de uma sólida democracia representativa, o que se percebe é o baixíssimo nível da representatividade, a produção viciada dos diferentes poderes, apontando para a decisão dos patrocinadores, sejam eles laicos ou religiosos."
A corrupção na democracia e, o que é mais grave, a corrupção da própria democracia, advertiu, "estimulam distúrbios e transtornos de consequências imprevisíveis". Portella lembra que se impõe, "como item prioritário", evitar misturar negociação e negócio. "Porque é comum confundir-se os dois níveis. A negociação é instrumento hábil da democracia, uma via autorizada para a obtenção de consensos livres. Já o negócio tende a resvalar, com licença da palavra, em negociata."
Na sua visão crítica, a organização partidária vem sendo naturalizada, em vez de historicizada. "Vai se tornando natural o uso abusivo do aparelho administrativo público, das licitações fraudadas, do lobismo desfigurado, dos discutíveis, até hoje jamais discutidos, dízimos partidários."
Ele lembrou que em nossa pré-história colonial "houve uma aparição estranha, conhecida como os "bolseiros do Rei", que parece ressurgir". Citou a ação cultural como distribuição de brindes e a Bolsa Família sem monitoramento e avaliação como exemplos, advertindo que "não está de todo descartada a hipótese de uma sociedade saudavelmente de trabalhadores vir a ser, em grande parte, "reduzida a uma sociedade de bolsistas"", ressaltando que falava só "dos bolsistas ociosos, evidentemente".
Ao abordar o tema das ações assistencialistas, ele analisou que "a aceleração inóspita do Estado provedor traz, dentro de si, as ameaças do Estado autoritário, sem os benefícios do Estado-previdência. Enquanto isso o país se apresenta como forte candidato à medalha de ouro na olimpíada internacional da sobrecarga tributária".
Voltando ao tema da "democracia de massas", Portella lamentou que "o tão louvável sufrágio universal, marca registrada do republicanismo, tenha perdido força no expediente retórico de mercadores inescrupulosos e no vazio deixado pela insuficiência educacional".
Advertiu que se equivocam os que concluem "que a economia dispõe, em suas contas bancárias, de todas as respostas para nossos problemas sociais". Com a despolitização da esfera pública e o depauperamento do espaço cultural, destacou que "crescem o vazio e a indiferença", apontando para o que chama de "baixa modernidade". A educação sem qualidade, "no lugar de promover a inclusão social, ferida aberta, realimenta a exclusão, especialmente em tempos globalizados, quando a competitividade adquire contornos mais alarmantes. Logo, a inclusão desqualificada é sinônimo de exclusão".
Portella ligou o nível qualitativo da educação à qualidade da democracia e ao vigor da representatividade política, afirmando que, quando esse nível cai, "sobe o número de eleitores inertes, terreno propício para a prosperidade da propaganda enganosa". Na sua definição, o cidadão "é o homem que fez, acidentada e demoradamente, o trânsito da consciência solitária para a existência solidária", e ele é quem deveria ser o centro da atividade política.
"Por todos os lados, ganha corpo e alma a exigência de democratizar a democracia. A tecnoburocracia deletou o encanto do mundo e, sem matizar, propalou o fim da utopia. Preferiu desconhecer que toda construção que se quer viável necessita recorrer a doses razoáveis do impulso utópico."
Portella admitiu que "muitos consideram essa aspiração como ambição ilusória, completamente desdatada", mas defendeu a tese de que é preciso "confiar na esperança concreta e, a partir dela, e das batidas cardíacas da História, reinventar a democracia, sob o signo do risco e a inteligência serena das ameaças crescentes".
O Globo, 27/9/2011