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Recriando o que copia

 

Até parece que o Brasil inventou alguns desses esportes de origem estrangeira que estão fazendo sucesso e cujas regras a gente nem sempre conhece direito. Por exemplo, o judô, que já deu ao Brasil três das cinco medalhas que ganhou — a de ouro, de Rafaela Silva, e as de bronze de Rafael Silva e de Mayra Aguiar, que no Pan do Rio em 2007, com 16 anos, já conquistara uma prata. Eu, pelo menos, não sei direito até agora qual foi o golpe que a nossa medalhista de ouro usou para derrotar a adversária e sagrar-se como a melhor do mundo. E se aprendi que Mayra aplicou um golpe de braço chamado tai otoshi, imobilizando a cubana com um yuko, e se o Rafael derrubou o hondurenho com um wazari, vencendo com um ippon, descobri não vendo a luta, mas ouvindo o narrador. Já ia dizer que, se é difícil de entender para assistir, imagina para praticar, mas aí me dei conta de que o problema é meu. Acho que, se estivesse na arena, entre os dez mil vibrantes torcedores, seria com certeza o único a perguntar ao vizinho se não teria segundo tempo.

E olha que sou da época em que os Gracie popularizaram outra luta no país, com o nome de jiu-jítsu, que permitia então golpes traumáticos como torção de braços, gravata, estrangulamento. Chamada arte marcial, era muito mais marcial do que arte, muito mais violenta do que é hoje, quando funciona até como instrumento de inclusão social. “Essa medalha vai reverberar, vai incentivar a garotada do instituto”, disse o ex-judoca Flávio Canto, fundador do Instituto Reação, onde Rafaela surgiu aos 7 anos e continua até hoje. Assim como a Olimpíada de Londres em 2012 deu a Sarah Menezes o primeiro ouro de uma judoca brasileira, é de se esperar que Tóquio 2020 conheça outras Sarahs, Rafaelas e Mayras.

Outra importação que dominamos como se a tivéssemos criado é o vôlei, não só o masculino como o feminino, de quadra e de areia, sem falar no caso mais recente do handebol. Como explicar essa tendência a reinventar o que veio de fora, muitas vezes melhorando? O Brasil não inventou o futebol, mas inventou Pelé. Não descobriu o automóvel, mas produziu Ayrton Senna. Quem teria gostado de explicar o fenômeno é o modernista Oswald de Andrade (1890-1954), fundador do movimento antropofágico, que usava como metáfora a deglutição do Bispo Sardinha pelos índios, os quais acreditavam com isso assimilar o que havia de melhor no estrangeiro. A obra principal do grupo é a pintura de Tarsila do Amaral “Abaporu”, um nome indígena que significa “homem que come carne humana”. Oswald fazia afirmações polêmicas: “Só me interessa o que não é meu”. Ou então: “Contra todas as catequeses”. Mas teria razão se tivesse dito, se é que não disse, que o Brasil é capaz de criar até copiando. 

O Globo, 13/08/2016