Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Questão delicada

Questão delicada

 

O novo relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), em substituição ao falecido ministro Teori Zavascki, que deve ser conhecido nos próximos dias, vai ter uma questão delicada pela frente: a possibilidade de o presidente da República, Michel Temer, vir a ser investigado devido à citação de algum dos executivos da Odebrecht.

Voltará a discussão, que aconteceu ainda no governo Dilma, sobre se o presidente da República pode ser investigado por fatos ocorridos fora do mandato presidencial, já que não há dúvida de que só pode ser processado por fatos que tenham relação com a função presidencial que exerce.

A principal proteção, razão pela qual o Procurador-Geral da República Rodrigo Janot já recusou investigar Dilma no início da Operação Lava-Jato, é a chamada "relativa e temporária irresponsabilidade" pela prática de atos estranhos ao exercício de suas funções, como está previsto no art. 86, § 4º da Constituição.

Nesse caso, há uma discussão teórica sobre se a proibição de o Presidente ser "responsabilizado" por atos estranhos a seu mandato inclui a investigação do crime. Há juízes que consideram que o Presidente não pode ser condenado no exercício do cargo, mas pode ser investigado.

Outros afirmam que a proteção à figura do Presidente da República existe em diversos países para impedir que uma eventual investigação que o considere culpado produza uma crise institucional. O ministro Teori Zavascki acatou essa tese, apoiando Janot.

O Procurador-Geral insiste em que a jurisprudência do STF diz que o presidente não pode ser nem mesmo investigado, no que é contestado por vários ministros, como Gilmar Mendes, que na ocasião do debate garantiu que já existe jurisprudência no Supremo permitindo a investigação.

Ele se referia a um acórdão do ministro Celso de Mello, na época em que Fernando Collor era presidente da República, em que dizia o seguinte: não pode ser processado a não ser por atos praticados durante seu mandato. No caso, o fato delituoso denunciado à época pelo PT teria sido praticado quando ele era mero candidato, incidindo a favor dele a imunidade penal temporária.

A decisão do plenário foi unânime, acatando o voto de Celso de Mello. Mas ele advertia: isso não impede que o presidente seja investigado, mesmo porque muitas vezes a prova se dilui com o passar do tempo, testemunhas morrem, documentos são destruídos.

Essa regra surgiu pela primeira vez no Brasil durante o regime do Estado Novo de Getulio Vargas na carta autocrática de 1937. As demais constituições republicanas jamais contemplaram a imunidade penal temporária, de tal modo que sob todas as outras constituições, o presidente da República poderia ser processado até por fatos estranhos ao desempenho do mandato presidencial.

A Constituição de 1988 trouxe de volta esse dispositivo que é compatível com a lógica autoritária do Estado Novo, inspirado por sua vez no Estado Novo português de 1933, quando já surgia na política de Portugal a figura dominante de Salazar. No entanto, outras constituições de outros Estados democráticos também conferem ao chefe de Estado essa imunidade. Na França, só é permitido que se instaure processe criminal contra o presidente da República na hipótese de crime de traição.

Essa questão certamente voltará a ser debatida durante a análise das delações premiadas dos executivos da Odebrecht. Com o novo relator, vamos retomar essa discussão, pois já foi revelado que seu nome aparece no acordo de delação de Cláudio Melo Filho, ex-vice-presidente de Relações Institucionais da Odebrecht.

Segundo Melo, parte de R$ 10 milhões repassados ao PMDB para a campanha de 2014 foi entregue no escritório de José Yunes em São Paulo, um dos assessores mais ligados a Temer, que pediu demissão de suas funções no Palácio do Planalto devido a essa citação.

Como, no entanto, o Ministério Público é o senhor da ação penal, a iniciativa normalmente deve caber a ele, e se a posição do Procurador-Geral Rodrigo Janot não mudar, dificilmente vai haver um pedido de investigação. Mas nada impede que a questão seja debatida, aumentando o incômodo de uma eventual delação que atinja o presidente Michel Temer.    

O Globo, 28/01/2017