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Questão de DNA

 

A disputa aberta de poder em que o vice-presidente Hamilton Mourão está envolvido, não por acaso, não tem paralelos históricos pela violência das palavras empregadas por Olavo de Carvalho e seus pupilos, entre eles Huguinho, Zezinho e Luisinho, como passaram a ser conhecidos no meio político os filhos de Bolsonaro, que ele denomina carinhosamente como 01, 02 e 03, como se recrutas fossem.  

São os seus recrutas, “ sangue do meu sangue”, e nada também acontece ali por acaso. Bolsonaro fala através de seu filho Carlos, o 02, especialista nas mídias sociais a quem Bolsonaro atribui grande parte de sua vitória. Quando Bolsonaro estava internado, depois da tentativa de assassinato que sofreu ainda na campanha eleitoral, Carlos já evidenciou o que achava de Mourão.

Tuitou afirmando que a morte do pai interessava não apenas aos inimigos declarados, mas a quem está por perto, principalmente após a posse. De lá para cá a disputa só fez escalar, inclusive porque Mourão assumiu o papel de moderador de um governo que vive de intrigas e embates permanentes como estilo de fazer política.

A paranóia familiar é alimentada pela história, pois nada menos que oito presidentes foram substituídos por seus vices desde o início da República, por motivos variados, desde a morte do titular até o afastamento por impeachment.

Desde o primeiro presidente, Deodoro da Fonseca, cujo vice Floriano Peixoto assumiu com sua renúncia e, em vez de convocar eleições, governou sob estado de sítio, até Temer, que, recusando o papel de “vice decorativo”, comandou uma conspirata política para assumir o lugar de Dilma, quando esta se enfraqueceu pelo fracasso econômico e se expôs ao cometer crimes de responsabilidade fiscal, a escolha dos vices sempre foi problemática.

Uma disputa aberta como a atual, mas não tão pouco sutil, aconteceu quando o general Figueiredo teve que viajar para a Clínica Cleveland para colocar pontes de safena. O político mineiro Aureliano Chaves assumiu o governo e fez o mesmo contraponto de Mourão em relação a Bolsonaro. Chegava cedo ao Palácio do Planalto, e saía altas horas da noite, a salientar a fama de preguiçoso de Figueiredo. O entorno do ditador não escondia a irritação, e acusava Aureliano de deixar a luz acessa no gabinete presidencial para dar a impressão de que trabalhava.

A eleição presidencial deste ano teve uma característica especial: o protagonismo de candidatos a vice. Os dois primeiros colocados nas pesquisas ficaram fora da campanha, um definitivamente, outro temporariamente. Lula por estar condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro, tornando-se inelegível pela Lei da Ficha Limpa. Bolsonaro por ter sofrido um atentado a faca que quase o matou.

Muitos consideravam alguns candidatos a vice melhores que os titulares, como era o caso de Mourão, que já chamava a atenção por declarações polêmicas, mas com a fala mansa e o jeito de quem desejava a pacificação política.

Admitiu intervenção militar mesmo fora da Constituição, falou até em autogolpe. Curioso é que sua escolha foi comemorada por Eduardo Bolsonaro, o 03, que disse que foi bom ter escolhido um candidato “faca na caveira” - referindo-se ao símbolo do Bope - para não valer a pena pensar em impeachment.

No discurso pouco antes de ir para a reserva, que lhe valeu uma advertência do comandante do Exército, general Villas Bôas, que ele chama de VB, seu amigo de infância, disse sobre o governo petista: “Os Poderes terão que buscar uma solução. Se não conseguirem, chegará a hora que nós teremos que impor uma solução”.

De lá para cá, Mourão vem afinando o tom, se aproximando do pensamento médio do cidadão de classe média, condenando a censura à imprensa, por exemplo,  ou avaliando que a saída do ex-deputado Jean Wyllys era ruim para a democracia, com bom-senso e sem a visão tosca do grupo bolsonarista comandado por Olavo de Carvalho, que chamou Mourão de “moleque analfabeto” ao ser definido pelo vice como “astrólogo”.

Perguntado recentemente sobre as razões dessa mudança, Mourão disse que se devia à compreensão do papel institucional do cargo para o qual foi eleito. Estar na vice-presidência pelo voto, aliás, foi citado por ele como uma diferença fundamental com os militares do período ditatorial.

Que, aliás ele não renega, dizendo que era um momento de guerra. E também, assim como Bolsonaro, considera o torturador Brilhante Ulstra “um herói”, embora tenha se abstido de falar no assunto ultimamente.

O Globo, 25/04/2019