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Que Deus a conserve

 

Por coincidência, foram dois atos carregados de simbolismo que se desenrolaram quase ao mesmo tempo em cenários distintos, um em frente ao outro, segunda-feira em Brasília. De um lado, a promissora posse da ministra Cármen Lúcia na presidência do STF; de outro, a tão protelada cassação do deputado Eduardo Cunha. Um tema esteve presente nos dois ambientes: a corrupção e seu combate. No STF, nos discursos de juízes como o ministro Celso de Mello, que se referiu aos corruptos como “esses infiéis da causa pública, que devem ser punidos exemplarmente”. Na Câmara, poucas horas depois, o exemplo de punição de um dos mais conspícuos deles, num processo que ilustra o que a nova presidente lamentou: a demora em se fazer justiça. No caso, não o Judiciário, mas o Legislativo.

A cassação de Cunha levanta algumas pouco edificantes questões. Como se explica que tenha se arrastado tanto um desfecho tão previsto e esperado? Como foi possível driblar a lei e o regimento interno da Câmara durante 11 meses diante de tantas evidências e provas? A resposta revela a parte tenebrosa da política hoje, a de um balcão de negócios escusos. Cunha só ficou impune esse tempo todo porque governo e oposição de ontem e de hoje foram coniventes com ele em algum momento. Chamado de “gênio do mal”, ele conhecia como ninguém não só os desvãos da Casa, como as fraquezas morais de colegas aos quais distribuía favores nem sempre confessáveis, com a certeza de que um dia seriam pagos com juros. Uma das denúncias é de que teria uma suposta folha de pagamento de 260 membros de sua tropa de choque ou cordão dos “rabos presos”. No entanto, caiu melancolicamente solitário, amparado apenas por dez de seus aliados.

Arrogante, ele superestimou seu poder e esqueceu o cidadão, lembrado por Cármen Lúcia como a “autoridade suprema de todos nós, senhor do poder da autoridade democrática”. Aliás, a presidente inovou não apenas ao inverter o protocolo e se dirigir primeiro ao “povo”. Inovou também na qualidade literária de seu discurso, que, confesso, foi o que mais apreciei, talvez porque tivesse entendido tudo. Sem jurisdiquês e clara como suas ideias, sua fala fez jus aos conterrâneos que citou — Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos — mostrando que é tão boa de leitura quanto de escritura.

Religiosa, ex-aluna de colégio interno de freiras, Cármen Lúcia, ou melhor, Lúcida, não mistura fé e jurisprudência, como já provou em diversos episódios. Em homenagem à madre superiora que ela carrega dentro de si, os meus votos são para que Deus a conserve assim.

O Globo, 14/09/2016