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Quase todos pretos

 

É uma pena, mas este ano não teve carnaval. Nem podia ter tido, claro. Qualquer bloquinho já seria uma aglomeração capaz de espalhar Covid pela cidade inteira. Imagine então um blocão de verdade, um desfile completo de escolas de samba, os bailes populares em nossas comunidades. O vírus iria se fartar.

É mesmo uma pena que não tenha havido carnaval esse ano, justamente quando o prestígio internacional do nosso país está tão por baixo. A alegria obrigatória do carnaval podia ter recuperado um pouco de nossa fama de povo alegre e cordial, essa mentirinha que ajudamos a espalhar pelo mundo afora desde o Segundo Reinado, o governo de Dom Pedro II, o inventor das primeiras lendas do Brasil moderno.

Tem sido esse o nosso soft power, nossa marca registrada para estar no mundo, alimentada por nós mesmos, os foliões compulsórios que a sustentamos. Com ela como atração, entramos na lista das nações para as quais é preciso, de vez em quando, voltar um certo olhar, dedicar um pouco de atenção.

Apesar da qualidade do que fazemos, não temos literatura e teatro consagrados como os dos britânicos, nossa música popular não tem o alcance internacional das canções americanas, nossos filmes não são cultuados como os do cinema italiano de qualquer época. Isso sem contar com o que vale mesmo no mundo de hoje — o poder político capaz de influenciar os rumos de uma sociedade que não é a nossa; a capacidade econômica que mantém nossos cidadãos felizes e que compra a solidariedade do outro em dificuldade; o domínio de tecnologias sofisticadas que assombram quem nem sonha com elas; a força militar que assusta e, em último, caso resolve as paradas mais complicadas.

Essas, sim, são as marcas registradas de quem tem valor, o power de quem não precisa ser soft, as características de quem manda no mundo. E nós só temos a oferecer ao mundo a nossa alegria. Uma alegria inventada que sempre ocultou nossos recordes de fome, crimes e assassinatos, em geral produzindo vítimas apenas entre pardos, pretos e quase pretos, os pobres sem emprego, os que não têm nada e por isso são tratados como escória. Nossa famosérrima desigualdade social produz cidadãos cuja existência surpreendeu o próprio governo, quando este decidiu praticar um auxílio de emergência, salário extra para que a população se defenda da pandemia. Essas pessoas, hoje calculadas em cerca de 40 milhões, muitas vezes sem residência ou família, são chamadas pelo próprio governo de “invisíveis”.

Bem que um carnaval faz falta, nem que seja para não lembrar dessa gente que seria melhor a gente esquecer. Ou simplesmente ignorá-la como costumamos fazer, uma invenção de agitadores da oposição, esses comunistas sem alma que ficam aporrinhando o juízo do cidadão.

Enquanto Belo cantava no Parque União e foliões lotavam três andares no Vidigal, podíamos bater no peito com orgulho, mesmo que não estivéssemos fisicamente lá. Porque no fundo estávamos lá, sim, como parte desse povo feliz que aceitou como verdadeira a imagem que criaram dele. Nossa maior contribuição à cultura da humanidade contemporânea é essa alegria que oferecemos ao resto do mundo.

E no entanto é preciso sonhar. É preciso sonhar com nossa verdadeira alegria por estar no mundo, com nossa capacidade de celebrar a vida, nosso poder de driblar o destino, deixá-lo de bunda no gramado em nome dos gols que ainda vamos fazer. Este é o povo que nasceu para inventar uma nova humanidade, sem Daniel Silveira, sem fura-filas e vacinas de vento.

Talvez esteja no passado de nossa formação de violência contra o diferente de nós aquilo que nos impede esse autorreconhecimento. Ou talvez seja apenas a miséria, que tratamos sempre como uma natural fatalidade nossa. Mas um dia, quem sabe, chegaremos lá.

O Globo, 21/02/2021