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Por que não liguei?

 

Não pensem que foi por estar próximo ao final de ano, quando se diz que é hora de fazer revisões ou mudanças. Nada disso. De repente, me deu aquilo que o povo chama de “cinco minutos”, repentino ataque de coragem e joguei fora papéis, recortes, cadernos, fotos, anotações, caixinhas, vidrinhos, bibelôs que nem sabia ter. Há dias, olhei para uma caixa e me perguntei: o que tem ai? Abri e dei com pacotes de papel pardo, embrulhinhos, envelopes. 

Na hora, lembrei-me de meu pai que mantinha uma velha cesta de Natal de vime em cima do guarda-roupa. Um dia, ele chamou a mim e ao meu irmão Luis Gonzaga e abriu a cesta. De dentro, jorraram recortes de jornais, fotografias, santinhos, cartas para minha mãe, páginas datilografadas. “São contos que escrevi. Tem uma poesia do meu pai, feita aos 21 anos. Isto vai ficar para vocês, depois que eu morrer.” Um dos contos e a poesia do meu avô, recolhi. Os resto desapareceu, sabe-se lá como. Pessoas e memórias se dissolvem. Quanto a este avô, José Maria, ele é o personagem de meu livro Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos. A escrita serve para recuperarmos pessoas e coisas.

Assim, abri minha caixa. Dela, saltaram pacotes, pacotinhos, envelopes. Os pacotes, lembrei-me, são de primeiras edições de livros meus, embalei para que não fossem atingidos pelo tempo, por roedores, poeira, umidade. Como se roedores recuassem diante de uma folha de papel pardo!

Achei um envelope enviado por um senhor chamado Livio Euler de Araujo, assessor técnico em metalurgia. Datado de 2011, há um bilhete: “Sou seu leitor assíduo, tenho 87 anos e me considero em fim de vida. Sou amante de aviões, locomotivas, trens e carros. Sou apreciador de Araraquara, que frequentei durante vários anos, a serviço. Moramos na mesma região e tenho imenso prazer em convidá-lo para um papo sobre os assuntos comuns aos dois. Faço uma bela caipirinha preparada com um blend de cachaças de variada procedências.” Vinha o telefone para marcar o encontro que nunca se deu. 

Porque esta carta ficou perdida em meio a outros envelopes, papéis, contas, rascunhos, marketing, folhetos. Liguei para o número. Tocou, tocou. Nada. Liguei de novo à tarde. Nada. Foi na semana anterior ao Natal. Talvez a família tivesse viajado. Agora, estou apreensivo. O telefone toca até cessar de repente. Mas subitamente Livio me liga. Ou não mais. Se, em 2011, ele tinha 87, pode estar hoje com 96. 

Nestes esquecimentos ou deixar para amanhã, tenho tido baques, como dizia minha mãe. Eu era fã da atriz Gilda Nery, que fez sua carreira na Cinematográfica Vera Cruz. Mais que isso, paixão. Um dos sonhos quando vim para São Paulo era conhecê-la. Namorá-la. Nos vimos em estreias, festivais de cinema, no Gigetto, onde todos se reuniam. Tímido, nunca me declarei. Os anos passaram, não soube mais dela. Mudou-se para o Rio. Um dia, consegui o telefone, não liguei. Anos depois, chamei. Ela tinha morrido em 2004, aos 69 anos.

Outra a quem fui ligado fortemente foi Ruth de Souza. Mulher altiva, engraçada, bonita, excelente atriz. Premiada em Veneza com Sinhá Moça. Nos festivais de cinema do interior, estávamos sempre juntos, quando nos pediam autógrafos. A mim, não sei porque, mas, como jornalista, estava no meio de artistas, deviam achar que eu também era. Então, eu assinava Ruth de Souza ou Norma Bengell ou Marlene França. Hoje, não se pedem autógrafos, se fazem selfies. Norma era engraçada. Quando chegava um chato que gruda, ela assinava o nome completo na cadernetinha: Norma Aparecida Almeida Pinto Guimarães d’Áurea Bengell. Depois que Ruth mudou-se para o Rio, perdemos contato. Pouco tempo atrás, um jovem, Ygor Kassab, apareceu em casa fez uma entrevista, estava escrevendo a biografia de Ruth, então com 98 anos. Deu-me o telefone dela. Chamei? Antes que eu ligasse, ela morreu. Custava ela ouvir a voz de um amigo de juventude tão próximo?

Desta caixa, saltou um envelope recheado de bilhetes. “Ligue-me urgente. Lucia Camargo.” Ela foi secretária de Cultura em Curitiba, teve grande atuação em sua época. Respondi? O que ela queria? Onde está Lucia? Outro, escrito à mão, meio apressado. “Em Morretes, desça do trem, venha comer um Barreado. Assinado Douglas Brito.” Lembro-me que tomei o trem em Curitiba rumo a Paranaguá, na época eu que escrevia a biografia de Avelino Vieira, fundador do Bamerindus, início dos anos 1990. Desci em Morretes, comi o famoso Barreado, adorei, peguei o trem e voltei a Curitiba, nem fui a Paranaguá. Mas estava sozinho. Quem é o Douglas? 

Cartões e mais cartões de visita. De Gilbert Aca, do Poder Judiciário. O que fiz? De Evangelina Novaes, tabeliã de notas de Pato Branco, Paraná. O que fui fazer lá? Bilhete de Wilson Bueno: “Me ligue logo, estou no 225-71-17”. Nossa, ele morreu em 2010. Liguei, nos encontramos

Finalmente, um mistério. Um cartão do Hotel Buci Latin, de Paris. “Te esperei até às oito, você não veio, fui embora. Nunca mais”. Assinatura ilegível. O hotel conheci, era um duas estrelas, barato. Mas o Google me diz que agora é um quatro estrelas, fechado temporariamente pela pandemia. Quem me esperou e se foi? Olho o montão de caixas. O que há nelas? Outros pequenos e insignificantes mistérios? Ou significantes? Um deles teria mudado minha vida?

O Estado de S. Paulo, 01/01/2021